Monetizando dados pessoais

JOTA.Info 2020-06-06

É inegável que no “novo normal” o uso da tecnologia é intensificado. E com isso, aumenta a quantidade de dados pessoais – informações atribuídas a pessoas naturais identificáveis – tratados pelas empresas que oferecem soluções para home office, video chamadas e mensagens instantâneas. Foi o que ocorreu com o Zoom, um dos aplicativos mais utilizados nesse período. No início de abril, o FBI apontou que a plataforma não protegia suficientemente a privacidade dos usuários, o que teria culminado no vazamento de dados de milhares de indivíduos [1].

Muitos dizem que “dados são o novo petróleo” [2]. De fato, do ponto de vista patrimonial e para além das relevantes discussões sobre dados como direitos fundamentais, eles se tornaram um dos principais ativos detidos por empresas como o Zoom e outras companhias web based. E naturalmente, o uso dessas informações na condução de suas atividades as permite lucrar.

Cada vez mais, dados possuem impacto no valuation de sociedades que lidam direta e principalmente com eles (data driven). Vale ressaltar que o valuation, isso é, o preço total atribuído à empresa através da análise de seus resultados financeiros, deve levar em consideração, principalmente, o fluxo de caixa futuro esperado ou o patrimônio líquido da entidade, composto pelos seus ativos e passivos.

Por exemplo, em 2016, a Verizon adquiriu o Yahoo, um grande servidor de buscas, por US$ 4,8 bilhões. Esse preço, porém, foi reduzido em US$ 350 milhões algum tempo depois, em razão da divulgação de um vazamento de dados pessoais detidos pelo Yahoo que teria afetado bilhões de usuários [3].

No mesmo ano, o LinkedIn, rede social em que estão armazenadas inúmeras informações a respeito da vida profissional e acadêmica das diversas pessoas cadastradas, foi adquirido pela Microsoft por US$ 26,2 bilhões, em uma das operações mais caras já realizadas pela compradora. Esses são apenas alguns dos cases que corroboram a noção de que dados, sem prejuízo de sua esfera extrapatrimonial, podem ser vistos como ativos extremamente valiosos.

De fato, é difícil definir um valor para os dados pessoais. Em primeiro lugar, vale destacar que, enquanto identificáveis, controlados e capazes de gerar riquezas para a empresa – o que certamente é um conceito amplo -, esses ativos podem ser considerados bens intangíveis, pelas normas contábeis brasileiras e internacionais [4]. Trata-se de ativos incorpóreos, que não possuem natureza física, mas apresentam valor econômico.

Desde 2008, com a entrada em vigor da Lei nº 11.638/07, que alterou a Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), nas demonstrações financeiras das sociedades, os bens intangíveis devem ser contabilizados separadamente do ativo imobilizado – que é formado por tudo aquilo que é corpóreo e necessário para a manutenção das atividades empresariais -, mas na categoria de ativos não circulantes, que engloba a integralidade dos bens e direitos destinados à operação da sociedade. Os ativos intangíveis devem ser mensurados de acordo com seu valor de aquisição e eventuais custos decorrentes de sua manutenção e impactam diretamente a capacidade de geração de riquezas (aumento do fluxo de caixa) das empresas que os detém [5], utilizado para o valuation.

Existem, porém, algumas iniciativas que vêm se dedicando a encontrar elementos objetivos que permitam identificar o valor aproximado desses dados. O jornal Financial Times lançou uma calculadora interativa que permite estimar o valor dos dados pessoais de um usuário a partir de uma série de perguntas [6], elaborada com base em um agregado de pesquisas referentes à avaliação desses ativos. De acordo com tal ferramenta, os dados de um norte-americano usualmente estariam avaliados em menos de US$ 1,00. Contudo, a importância econômica desses ativos poderia ser identificada quando se leva em conta que redes sociais como o Facebook possuem bilhões de usuários.

Nesse sentido, vale destacar também o estudo “What’s is your data worth?”, publicado em 2017 na revista MIT Sloan Management Review, segundo o qual a avaliação dos dados pessoais dependeria basicamente da análise de três fatores, quais sejam: (i) a expectativa de geração de riquezas decorrentes daqueles dados; (ii) o valor atrelado ao uso desses ativos; e (iii) o valor inerente aos dados, gerado com sua possível monetização [7].

Conforme ensinam Barbara H. Wixom e Jeanne W. Rossem, essa monetização pode ocorrer através de uma internalização ou externalização dos dados pessoais pelos agentes de tratamento. O primeiro caso corresponde às hipóteses em que a própria empresa que os controla faz uso desses dados, melhorando seus processos de gestão – adequando a tomada de decisões às necissidades de seu público, de acordo com as informações que obtém sobre ele – ou implementando-lhes na elaboração de novos produtos. Já a segunda hipótese diz respeito a uma possível alienação de tais ativos no mercado [8].

Essa última modalidade de monetização, no entanto, deve atender a alguns requisitos, tendo em vista que, de acordo com a doutrina, a geração de valor através de dados pessoais não pode se sobrepor aos interesses privados e à dignidade humana de seu titular, que deve ter o controle dos seus dados [9], o que foi consagrado pelas normas legais.

No caso da legislação brasileira – notadamente as Lei No. 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e No. 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD), esta ainda em vacatio legis [10], de fato não há uma vedação expressa à comercialização de dados, em linha com o General Data Protection Regulation – GDPR da Europa. Apesar disso, de acordo com esses diplomas, o compartilhamento dos dados pessoais a título oneroso somente poderá ocorrer mediante consentimento específico do titular para esse fim, sendo que esse indivíduo terá direito ao acesso facilitado a informações refentes ao uso compartilhado e poderá revogar esse consentimento a qualquer momento [11].

Ademais, de acordo com a LGPD, a transmissão de dados sensíveis, tais como aqueles relacionados a saúde, ao posicionamento politico, flisofico ou religioso e os biométricos, que seja realizada com o objetivo de obter vantagem econômica poderá ser controlada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, órgão regulador de proteção de dados pessoais ainda a ser criado.

Por outro lado, em se tratando da administração pública – incluindo, portanto, as empresas públicas e as sociedades de economia mista – os dados pessoais obtidos podem ser compartilhados sem o consentimento do titular, desde que essa difusão seja necessária para a execução de políticas públicas respaldadas em leis, regulamentos ou contratos. Apesar de tal flexibilidade garantida pela legislação brasileira, os dados pessoais obtidos por esses agentes também não poderão ser indiscriminadamente vendidos.

Nesse sentido, vale ressaltar que, em 2018, a Comissão de Proteção de Dados Pessoais do Ministério Público do Distrito Federal (MP-DFT) iniciou uma investigação em face do Serviço Federal de Processamento de Dados – SERPRO, empresa pública brasileira de tecnologia da informação, para averiguar a legalidade e a extensão de um potencial esquema de venda de dados coordenado pela SERPRO que movimentaria mais de R$ 270 milhões [12]. Posteriormente, outras investigações do mesmo escopo foram abertas em face de outros entes, públicos e privados, pelo mesmo órgão.

Finalmente, destaca-se que um tratamento adequado de dados pessoais não somente contribui com a geração de valor para as empresas, mas também evita que elas venham a contrair passivos decorrentes do uso indevido desses ativos. Isso porque, no Brasil, por exemplo, a partir da vigência do art. 52 da LGPD, esperada para 2021, a ANPD poderá aplicar penalidades às entidades públicas e privadas que não estiverem adequadas às condições de tratamento de dados previstas em lei. Dentre as possíveis penas aplicáveis, destacam-se eventuais multas que podem chegar a valores significativos, de 2% do faturamento das empresas infratoras, limitadas a até R$ 50 milhões de reais [13].

Na sociedade da informação, o tratamento de dados pessoais é inevitável para sociedades não apenas da área de tecnologia da informação, mas de todos os setores, e é inegável que esses dados representam ativos extremamente relevantes, inclusive em uma perspectiva econômica. Com o desenvolvimento da internet, principalmente a partir da década de 1990, os ativos intangíveis já correspondem a mais de 80% do valor das empresas, conforme verificado em estudo divulgado pela consultoria de propriedade intelectual Ocean Tomo em 2015 [14].

Além disso, de acordo com o levantamento da Forbes, as líderes do ranking de marcas mais valiosas do mundo hoje (Microsoft, Apple, Amazon, Google e Facebook) são do setor de tecnologia e absolutamente data driven [15]. Cabe, portanto, aos administradores e demais agentes envolvidos nas companhias, independentemente da indústria em que atuam, prezar pelo tratamento adequado desses dados, de acordo com as normas sobre proteção de dados pessoais que vêm se desenvolvendo, tendo em vista a geração e manutenção do valor de suas empresas, em momentos de crise ou não.

REFERÊNCIAS

[1] MCMILLAN, Robert; TILLEY, Aaron. Zoom CEO: “I Really Messed Up” on Security as Coronavirus Drove Video Tool’s Appeal. The Wall Street Journal, 2020. Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/zoom-ceo-i-really-messed-up-on-security-as-coronavirus-drove-video-tools-appeal-11586031129>.

[2] A expressão foi utilizada pela primeira vez em artigo da The Economist. (THE ECONOMIST. The World’s Most Valuable Resource is No Longer Oil, but Data. 2017. Disponível em: < https://www.economist.com/leaders/2017/05/06/the-worlds-most-valuable-resource-is-no-longer-oil-but-data>).

[3] GOEL, Vindu. Verizon Will Pay US$350 Million Less for Yahoo. São Francisco: The New York Times, 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/02/21/technology/verizon-will-pay-350-million-less-for-yahoo.html>.

[4] Pronunciamento CPC 04 (R1), de 05.11.2010, disponível em: < http://www.cpc.org.br/CPC/DocumentosEmitidos/Pronunciamentos/Pronunciamento?Id=35> e IAS 30 do International Financial Reporting Standards, disponível em: <https://www.ifrs.org/issued-standards/list-of-standards/ias-38-intangible-assets/> e <https://www.bcb.gov.br/content/estabilidadefinanceira/Documents/convergencia_normas/IAS_38_Ativos_Intangiveis.pdf>.

[5] SCHIAVO, Fabienne T. Avaliação de Empresas por Fluxo de Caixa Descontado: O Impacto dos Ativos Intangíveis no Valor da Empresa. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008. p. 186. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/3540>.

[6] Ferramenta disponível em: <https://ig.ft.com/how-much-is-your-personal-data-worth/>.

[7] SHORT, James E; TODD, Steven. What’s Your Data Worth? In MIT Sloan Management Review, vol. 58, No. 3. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2017. Disponível em: <http://ilp.mit.edu/media/news_articles/smr/2017/58331.pdf>.

[8] WIXON, Barbara H; ROSS, Jeane W. How to Monetize your Data. In MIT Sloan Management Review, vol. 58, No. 3. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2017. Disponível em: <http://ilp.mit.edu/media/news_articles/smr/2017/58310.pdf>.

[9] BIONI, Bruno R. Proteção de Dados Pessoais: A Função e os Limites do Consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 217, e LEONARDI, Marcel. Tutela e Privacidade na Internet. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 67 e ss.

[10] A entrada em vigor da LGPD permanece sendo amplamente discutida. No dia 19 de maio de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 1.179/20, que mantém sua validade para agosto deste ano, com exceção das penalidades. Isso após a Medida Provisória 959, de 29 de abril, caducar, pois esta adia a entrada em vigor da lei para maio de 2021.

[11] O que está expressamente consagrado no Art. 7º, §5º e Art. 9º, V da LGPD.

[12] TADINI, Giovana W. MP Investiga SERPRO por Venda de Dados Pessoais de Brasileiros. São Paulo: O Estado de São Paulo, 2018. Disponível em: <https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,mp-investiga-serpro-por-venda-de-dados-pessoais-de-brasileiros,70002333929>.

[13] Mais informações sobre a ANPD e sua futura atuação sancionadora: DE TEFFÉ, Chiara S; VIOLA, Marcos (org.). Proposta para a Criação da Autoridade Brasileira de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade, 2018. Disponível em: < https://itsrio.org/wp-content/uploads/2018/12/autoridade-protecao-de-dados.pdf>.

[14] OCEAN TOMO. Intangible Asset Market Value Study. 2015. Disponível em: <https://www.oceantomo.com/intangible-asset-market-value-study/>.

[15] FORBES. The World’s Most Valuable Brands. Disponível em: < https://www.forbes.com/powerful-brands/list/>.