A dinâmica da segurança jurídica e a superação da jurisprudência pelo RE 574.706

JOTA.Info 2021-05-04

Acompanhando muitas lives sobre a polêmica possibilidade de superação de precedente da vedação à inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, tenho a impressão de que se quer depositar no Poder Executivo federal uma capacidade de saber o futuro, como se tivéssemos chegado a estado semelhante ao do filme Minority Report.

Decepcionado cheguei a ver professor insinuando que os Procuradores da Fazenda Nacional teriam sido irresponsáveis em manter a discussão deste recurso extraordinário, dizendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) teria definido a matéria pelo RE nº 240.785/MG, em 2006.

O emotismo deste verdadeiro Flamengo e Palmeiras, com torcidas organizadas de lado a lado, deu as caras na cena tributária e atualmente é quase um acinte analisar o tema sob agir comunicativo, e não estratégico, mostrando dúvidas teóricas razoáveis neste verdadeiro caso difícil em discussão. Precisa-se escolher um lado.

Permito-me, porém, analisar o tema sem a carga emotiva que carrega e embora já o tenha feito em dois textos anteriores, senti-me instigado a mais uma vez analisá-lo para falar sobre a dinâmica da segurança jurídica e mostrar que irresponsabilidade não houve.

No excelente conto de Philip K. Dick, que virou filme em 2002, o Estado consegui criar um aparato biopsicológico para que se soubesse previamente quais seriam os crimes cometidos no futuro, prendendo quem seria potencialmente autores dos delitos.

Mas estamos no século XXI, como ele é, não como muitos achavam que ele seria, e do ponto de vista de precedentes, engatinhamos na doutrina e na jurisprudência nacionais. E engatinhamos porque pensar em precedentes, dentro de um sistema tradicional de civil law, é disruptivo.

René David, em seu clássico “Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo”, cuja primeira edição é de 1986 e a quarta, ora citada, de outubro de 2002, assentava que o papel criador da jurisprudência nos países da família romano-germânica, como o Brasil, “dissimula-se sempre ou quase sempre através de uma interpretação da lei. Só excepcionalmente os juízes se afastam deste hábito e os juízes reconhecem francamente o seu poder criador de regras de direito”[2].

A aproximação entre os sistemas de civil law e common law, já cantada em verso e prosa por processualistas como Barbosa Moreira, em escritos da década de oitenta, veio junto com uma mudança na teoria do direito e na jurisprudência constitucional brasileira da década de 90 e do início dos anos 2000.

Com o uso dos princípios, a invocação de proporcionalidade e razoabilidade, com atraso de décadas na teoria do direito, no Brasil se começou a discutir melhor as diferenças entre texto normativo e norma jurídica, percebendo-se que há ao menos um papel reconstrutor na interpretação do direito levada a cabo pelo Judiciário.

Sintomático disso é que, no também já clássico livro do professor Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, cuja primeira edição é 2003, logo no início ele invoca como importante para diferenciar princípios e regras a distinção preliminar entre texto e norma[3].

Uma diferenciação louvada por Eros Roberto Grau, e que já estava em sua obra, e que no prefácio do livro de Humberto indica que ele estaria indo na contramão da banalização dos princípios, fenômeno da época.

Eros Roberto Grau, aliás, enquanto esteve Ministro, chegava a dizer, com fina ironia, que se surpreendia como os juízes brasileiros interpretaram/aplicavam o Direito brasileiro antes da “proliferação à brasileira da principiologia”, termo que cunho aqui.

Permito-me um relato pessoal: entrei como estudante na Faculdade de Direito da UFJF em 1999, dela saindo formado em 2003, e me lembro bem que nesses cinco anos de estudo a menção à jurisprudência ainda era tímida, estudo mais relegado para quem queria seguir carreira pública. Logo quando formei comecei a ver a mudança de statusda jurisprudência como fonte admissível do direito no Brasil. Por estes tempos também a TV Justiça surgiu, e todos, da área jurídica ou não, puderam passar a ver sessões do STF.

O tempo foi passando, veio a Emenda Constitucional nº 45 e daí em diante começamos a falar em repercussão geral, espécie de efeitos erga omnes para processos subjetivos no Supremo Tribunal Federal, matéria regulamentada apenas em 19 de dezembro de 2006, quando a Lei Federal n. 11.418 introduziu os artigos 543-A e 543-no Código de Processo Civil de 1973.

Somente posteriormente com o Código de Processo Civil de 2015, houve uma resposta institucional de que há autêntico sistema de precedentes entre nós, quando ainda se incorporou a superação de precedentes no artigo 927 do novo diploma legal.

O recurso extraordinário RE nº 574.706/PR foi protocolado em 13 de dezembro de 2007, não pela União, mas pelo contribuinte, e o RE 240.785/MG teve voto do Ministro Marco Aurélio em 24 de agosto de 2006, somente terminado o julgamento em 08 de outubro de 2014[4].

Antes de se admitir o conhecimento do RE n. 240.785/MG, ambas as turmas do Supremo Tribunal Federal em 2005 afirmavam que se tratava de matéria infraconstitucional[5]. Por isso, é digno de nota que os Ministros discutiram na sessão de 24 de agosto de 2006 se o recurso poderia ser conhecido, porque, conforme a Ministra Cármen Lúcia, invocando magistério do Ministro Carlos Velloso “a questão que diz respeito ao conceito de faturamento não ostenta as galas de questão constitucional”[6].

O Ministro Marco Aurélio mostrou discordância dizendo que haveria um precedente em sentido contrário, não em relação ao mérito, mas a preliminar de conhecimento, pois o STF já teria enfrentado a elucidação do que é salário, “interpretando o artigo 195, inciso I, da Constituição Federal”[7].

Ao final, naquela sessão, decidiu-se conhecer da matéria, com os votos contrários da Ministra Cármen Lúcia e do Ministro Eros Grau, e no mérito, deram provimento ao voto, os Ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto, César Peluso e Sepúlveda Pertence, com pedido de vista do Ministro Eros Grau.

Formou-se maioria, não se discute. O Ministro Sepúlveda Pertence antecipou o voto, às vésperas de sua aposentadoria, que seria em 17 de agosto de 2007, mas 2006 era uma quadra histórica em que não se tinha a repercussão geral regulamentada, nem se consolidava a objetivação do controle difuso.

Havendo controvérsia jurídica e sem ainda se cogitar de objetivação do controle difuso, a União entrou com a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 18, que era o único expediente à época possível, fora uma Adin, para se definir que o STF teria decidido com eficácia erga omnes a questão da inclusão ou não do ICMS na base de cálculo.

Em 14 de maio de 2008, o Ministro Eros Grau disse que teria condição de apresentar seu voto-vista no recurso extraordinário, e o Ministro Marco Aurélio afirmou que, a seu juízo, o recurso extraordinário deveria ter prelazia de julgamento, quanto mais por não apreciado ainda o pleito de concessão de medida acauteladora na ADC. Mas se entendeu que a precedência deveria ser da ADC, tendo o Ministro Marco Aurélio pedido vista dos autos no processo objetivo em curso.

Apenas 08 de outubro de 2014, o Tribunal encerrou o julgamento do recurso extraordinário, com o Ministro Ricardo Lewandowski, presidente, marcando que “não votaram os Ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux e Dias Toffoli, por sucederem, respectivamente, aos Ministros Ayres Britto, Cezar Peluso, Eros Grau e Sepúlveda Pertence”

Pela dinâmica da segurança jurídica, sequer era possível cogitar de repercussão geral em 24 de agosto de 2006, antes da promulgação da Lei Federal n. 11.418, nem em 04 de maio de 2008, quando o Tribunal reafirmou a precedência da ADC nº 18.  E mesmo no julgamento em 08 de outubro de 2014, o Tribunal rechaçou dar repercussão geral ao recurso extraordinário, com o presidente da Corte, frisando que “se trata de um recurso extraordinário, sem repercussão geral, de interesse apenas subjetivo, inter partes, portanto, sem qualquer efeito erga omnes”[8]

Isso derruba a tese de que os contribuintes já sabiam qual a posição do STF e, ao mesmo tempo, alegação de eventual irresponsabilidade da União em manter a discussão, que fez em outras ações, como a que deu origem ao RE nº 574.706/PR, a não ser se, utópica ou distopicamente, pudesse se saber os votos da nova composição da Corte, no julgamento do RE nº 574.706/PR que esse sim foi sob a sistemática da repercussão geral.

Está-se diante de um hard case, pois se lida com a interpretação do artigo 195, I, da Constituição e com julgados dados em três momentos distintos: 1. de 1999 a 2006, quando do voto do Ministro Marco Aurélio no RE 240.785/MG, em que se admitia timidamente o perfil criador da jurisprudência; 2. de 2007 a 2014, quando terminado o julgamento do recurso e iniciada a fase de aproximação maior do sistema brasileiro ao uso de precedentes da tradição do common law; 3. e de 2014 em diante, contexto da criação do sistema de precedentes pelo CPC de 2015 e julgamento do RE n º 574.706.

O que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) poderia ter dito para o Ministro da Fazenda da época do voto do Ministro Marco Aurélio no RE 240.785/MG, além de mencionar que havia um caso subjetivo em que o relator tinha votado pela inconstitucionalidade da inclusão da BC do ICMS no PIS e na COFINS, que era a primeira vez que se via alguma sinalização contrária a essa sistemática tradicionalmente aceita e que, como o processo tinha efeito apenas inter partes, poder-se-ia propor uma ADC, ante a controvérsia estabelecida?

Alguém vê irresponsabilidade? Alguém vê segurança sobre o que o STF teria decido em 2006? Para mim dois sonoros não são as respostas, já que sigo crendo que Minortiy Report é tão-só uma ficção. Embora pudesse ainda discutir mais que o próprio STF analisou sim a matéria do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS com base na Constituição de 1988, conforme a transcrição de votos feita, espero que a carga emotiva saia da discussão e que, analítica e racionalmente, veja-se que estamos diante de um hard case com um desacordo razoável sobre a existência ou não de precedente e sobre a aplicação ou não do artigo 927, do CPC, para não dizer sobre a dimensão dos votos.

Advogados públicos ou privados lidam com teses. Muitos já criticaram castelos acadêmicos criados, sob a lógica de que quem não segue a cartilha merece excomunhão. Em tempos tão difíceis, é bom reafirmar que ciência não deve ser questão de fé, nem de argumento de autoridade.

Uma homenagem final aos professores Arthur Ferreira Neto, Pedro Adamy e Daniel Mitidiero, que discordam da tese da União e da minha análise sobre o tema aqui, mas que me permitiram um diálogo muito proveitoso, dialético e republicano em evento recente do IET. Do encontro reafirmei posições e tive algumas dúvidas. Ciência não é assim em hard cases?

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[2] DAVI, René. Os grandes sistemas no Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 4ª edição, 2002, p. 149.

[3] ÁVIIA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª edição, 2004, pp. 22-23;

[4] BRASIL, STF, Pleno, 240.785/MG Rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.10.2014. disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630123. Acesso em: 01º de maio de 2021.

[5] STF, RE 391.371 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 08/03/2005, DJ 08-04-2005 PP-00035 EMENT VOL-02186-03 PP-00518 RTJ VOL-00194-01 PP-00370; STF; RE 399.979 AgR, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 01/02/2005, DJ 25-02-2005 PP-00024 EMENT VOL-02181-03 PP-00408

[6] Idem, p.9.

[7] Ibidem.

[8] Idem, p.48.