Saas: perspectivas em relação à tributação dos valores remetidos ao exterior

JOTA.Info 2021-05-04

A estrutura da Convenção Modelo OCDE prioriza a tributação nos Estados de residência dos fornecedores de serviços e detentores de capital, ou seja, nos países desenvolvidos exportadores de tecnologia, em detrimento dos Estados fonte da renda (jurisdições de mercado), geralmente países em desenvolvimento.

Isso fica claro na regra geral de tributação dos lucros das empresas no Estado de residência (artigo 7º), excepcionada apenas se o beneficiário da remessa possuir estabelecimento permanente no Estado fonte.[1]

Ocorre que a evolução da economia digital possibilitou que empresas – cujas atividades evolvem negócios virtuais de bens intangíveis – se estabeleçam formalmente em países de tributação favorecida, aparentemente sem qualquer elemento de conexão para a tributação nos países desenvolvedores de tecnologia e detentores do capital[2] ou nos Estados fonte, onde estão localizados os consumidores.

Nesse contexto, o desafio do presente ensaio é projetar expectativas quanto à tributação dos valores remetidos ao exterior em contraprestação ao acesso e uso de softwares e aplicativos hospedados “na nuvem” (Softwares as a Service) a partir das Convenções para evitar a bitributação assinadas pelo Brasil e do entendimento manifestado pela Receita Federal na Solução de Consulta COSIT nº 191, de 23/03/17, mas sob a lente focal da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da não incidência de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre os pagamentos realizados a prestadores de serviços estrangeiros que não possuem estabelecimento permanente no Brasil.

O que é cloud computing?

A oferta de recursos tecnológicos “na nuvem” comporta essencialmente três modelos: Infrastructure as a Service (IaaS), Plataform as a Service (PaaS) e Software as a Service (SaaS).

No caso da Iaas, o usuário utiliza espaço para armazenamento de dados “na nuvem” sem exercer qualquer controle sobre a infraestrutura. Já na Paas, o usuário utiliza estrutura operacional “na nuvem” para desenvolvimento, teste e implementação de softwares e aplicativos, exercendo controle apenas sobre esses. Finalmente, no Saas o usuário acessa e utiliza software ou aplicativo hospedado “na nuvem”, sem a necessidade de aquisição de licença ou mesmo de download e não exerce qualquer controle sobre a plataforma ou sobre as aplicações.[3] Normalmente o Saas é disponibilizado para acesso concomitante por múltiplos usuários, que pagam pelo direito de uso periodicamente.

No ambiente do cloud computing, o provedor é responsável pela instalação e manutenção de toda a estrutura “na nuvem”. O desenvolvedor utiliza a plataforma virtual mantida pelo provedor para criar e armazenar as aplicações que serão disponibilizadas para uso próprio e principalmente de outros usuários.

Os usuários armazenam dados na infraestrutura mantida “na nuvem” pelos provedores e usam os softwares e aplicativos disponibilizados on-line pelos desenvolvedores.[4] Esses três players do cloud computing não precisam estar próximos fisicamente.

Muito pelo contrário, até por uma questão de segurança, os servidores ficam espalhados pelo mundo e, como os recursos tecnológicos são disponibilizados on-line, desenvolvedores e usuários podem acessá-los de qualquer lugar.

Nesse contexto, os provedores e desenvolvedores podem se fixar formalmente em um país de tributação reduzida e “vender” recursos tecnológicos “na nuvem” ao mundo inteiro sem ter estabelecimento permanente em qualquer Estado fonte e, portanto, sem criar nenhum nexo com as jurisdições de mercado.

Por isso não é nada fácil qualificar juridicamente as transações internacionais realizadas no ambiente do cloud computing para tributá-las adequadamente. As utilidades negociadas são imateriais e os limites das jurisdições envolvidas indeterminados. O legislador brasileiro ainda não elaborou normas para regular essa nova realidade, mas a Receita Federal já deu um primeiro passo.

A solução acenada pela Receita Federal

Um contribuinte do ramo do “comércio, manutenção e desenvolvimento de sistemas de processamento de dados” formulou consulta formal à Receita Federal solicitando esclarecimentos acerca da tributação na fonte de remessas aos EUA em pagamento à aquisição de “autorizações para acesso e uso remoto” de dois Saas a serem revendidas para usuários brasileiros:

O primeiro oferece proteção para rede de usuários contra vírus, spam e demais ameaças. O segundo permite a realização de conferências, reuniões, treinamentos e projetos por meio da internet e compartilhamento de informações em tempo real.”

A COSIT entendeu que a consulente adquire do desenvolvedor norte-americano autorizações de uso remoto dos Saas para revendê-las, por meio de senhas de acesso, a usuários brasileiros, e não o direito de comercializar ou distribuir os próprios softwares no mercado brasileiro, cuja remuneração se caracterizaria como royalty, sujeito apenas ao IRRF sob a alíquota de 15% (quinze por cento), segundo a Solução de Divergência COSIT nº 18, de 27/03/17, haja vista a isenção à Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) concedida pelo artigo 2º, § 1º-A, da Lei nº 10.168/00.

A Receita Federal também rechaçou o enquadramento das transações como compra e venda de software-produto, caso em que teoricamente estariam livres da incidência de IRRF e CIDE-Royalties pois, tratando-se de Saas, “se comercializa o direito de os clientes (usuários) acessarem os programas e os bancos de dados, que se encontram hospedados em locais indeterminados, chamados de ‘nuvem’”, “os softwares permanecem sob a administração da empresa estrangeira, que recebe pagamentos mensais como prestação decorrente do uso dos programas à distância, por meio da internet” e “o tratamento das informações é feito pela empresa que desenvolve os softwares no exterior e permanece responsável por todas as funcionalidades desenvolvidas”.

Segundo a Solução de Consulta, as funcionalidades dos Saas analisados caracterizam-se como serviços. Mas a COSIT foi além e, com base no conceito amplo previsto no artigo 17, § 1º, II, “a”, da Instrução Normativa (IN) da Receita Federal do Brasil (RFB) nº 1.455/14 – que será objeto de análise adiante – ainda as qualificou como serviços técnicos.

“Pois dependem de conhecimentos especializados em informática e, além disso, conforme se depreende da sistemática relatada pela consulente, os serviços decorrem de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico, que os usuários acessarão à distância para usá-los nas sua atividades empresariais, cabendo ao fornecedor do serviço prover a manutenção e o suporte técnico para o funcionamento dos aplicativos disponibilizados.

Assim, a Receita Federal respondeu à consulta afirmando que incidem, sobre as remessas, (i) IRRF à alíquota de 15% (quinze por cento), de acordo com o artigo 3º da Medida Provisória nº 2.159-70/01, e (ii) CIDE-Royalties sob à alíquota de 10% (dez por cento), conforme artigo 2º, § 2º, da Lei nº 10.168/00.

A COSIT não considerou a eventual aplicação de Tratado contra a dupla tributação pois o beneficiário do caso objeto da Consulta é residente nos EUA. Mas se o fornecedor do Saas fosse sediado em país com o qual o Brasil possui Acordo cujo Protocolo equipare serviços técnicos a royalties, provavelmente a Receita Federal enquadraria a remessa no artigo 12 da respectiva Convenção, por força do entendimento veiculado no Ato Declaratório Interpretativo (ADI) RFB nº 5, de 16 de junho de 2015 e do Parecer da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) nº 2.363/13.

Contratos de know-how x serviços comuns x serviços técnicos e de assistência técnica – o “mantra” repetido pela doutrina brasileira

Na Convenção Modelo OCDE, nesse ponto seguida pelos Acordos assinados pelo Brasil, royalty é geralmente definido como remuneração paga pelo uso ou pela concessão de uso de direitos autorais sobre obras literárias, artísticas ou científicas, de patentes, marcas de indústria ou de comércio, desenhos ou modelos, planos, fórmulas ou processos secretos, bem como pelo uso ou concessão de uso e equipamentos industriais, comerciais ou científicos e por informações correspondentes à experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico (conforme artigo 12).

Ou seja, na Convenção Modelo OCDE, royalty não qualifica apenas as remunerações correspondentes às formas de propriedade intelectual, mas designa principalmente uma outra realidade ligada à transferência de tecnologia: a prestação de informações correspondentes à experiência adquirira (know-how). [5]

Por meio dos contratos de know-how, o licenciante transmite informações tecnológicas pré-existentes (materializadas em plantas, manuais, desenhos industriais etc) e sigilosas, mediante cessão temporária ou definitiva de direitos, para que o contratante as explore por conta própria.[6]

Aqui, o objeto dos contratos é a própria transferência de tecnologia. São remunerados por royalties, rendimentos sujeitos à tributação na fonte segundo os artigos 710 do RIR/99 e 12 dos Tratados assinados pelo Brasil.

Já nos contratos de prestação de serviços comuns, o fornecedor emprega sua habilidade, experiência e conhecimentos especiais, mas não os transfere ao tomador. Eventualmente, o prestador do serviço pode, inclusive, aplicar tecnologia, mas não a cede ao cliente.

Aqui o objeto dos contratos é a obrigação de fazer propriamente dita. Nas palavras de Alberto Xavier, “No contrato de know-how, transfere-se tecnologia; no de prestação de serviços, aplica-se tecnologia[7].

Por fim, os contratos de prestação de serviços técnicos e de assistência técnica são aqueles cuja prestação não é autônoma e independente, mas sempre complementar ou acessória à outra transação que envolva transferência de tecnologia.

Quando a transmissão das informações tecnológicas – objeto de um contrato de know-how – não se esgota com a simples cessão de direitos corporizados em plantas, manuais, desenhos, fórmulas etc, é complementada mediante a prestação de serviços técnicos e de assistência técnica.

Esse entendimento, capitaneado pelo professor Alberto Xavier, foi repetido como um “mantra” pela doutrina brasileira. A título de exemplo, Sérgio André Rocha[8], Heleno Taveira Torres[9] e Gilberto Ulhôa Canto[10] o reverberaram sem maiores questionamentos.

Consequentemente, também é praticamente uníssona[11] na doutrina a crítica ao conceito de serviço técnico previsto no artigo 17, § 1º, II, “a”, da IN RFB nº 1.455/14 – que, a título de lembrança, sustentou a conclusão veiculada na Solução de Consulta COSIT nº 191/17.

Ocorre que a diferenciação entre serviços comuns e técnicos tem repercussão fiscal das mais relevantes pois, dos 36 Tratados já assinados pelo Brasil, apenas quatro (Áustria, Japão, França e Finlândia) não possuem Protocolo que submeta esses últimos ao regime tributário dos royalties, imposto pelo artigo 12.

Isso significa que, segundo o atual entendimento da Receita Federal, os valores remetidos ao exterior em contraprestação ao acesso e uso de Saas devem ser tributados como royalties, conforme o artigo 12, na esmagadora maioria dos casos em que o beneficiário está localizado em país com o qual o Brasil possui Acordo contra dupla tributação.

Ocorre que, no entendimento de Alberto Xavier, “é precisamente o caráter complementar da assistência técnica relativamente à transmissão da informação resultante de experiência adquirida que levou os Protocolos relativos a certas Convenções a submeter a respectiva remuneração ao mesmo regime tributários da remuneração da própria transmissão da informação, ou seja, a equipará-la a royalty. Mas este mesmo fato, ou seja, a qualificação da remuneração por ‘assistência ou serviços técnicos’ como royalty, por complementariedade ou acessoriedade, leva também a concluir que somente pode, ser qualificados como de ‘assistência e serviços técnicos’, para efeitos das Convenções, aqueles contratos que – seja qual for a sua denominação – tenham caráter complementar ou instrumental de contratos de transferência de capital tecnológico, não podendo, de modo algum abranger os contratos em que o objeto principal seja a prestação de serviços, ainda que de conteúdo técnico, pois a remuneração destes não é, por natureza, royalty, mas rendimento de trabalho autônomo (tratando-se de serviços pessoais) ou preço constitutivo de lucro de empresa (tratando-se de serviços não pessoais[12].

Nessa mesma linha, Marco Aurélio Greco e Sérgio André Rocha defendem que “em nenhum caso, a prestação isolada de serviços técnicos sem a transferência de tecnologia poderia gerar a equiparação a royalties eventualmente prevista no protocolo de convenção celebrada pelo Brasil[13].

Até 2014, a Receita Federal entendia, com base no Ato COSIT nº 01, de 05/01/00, que as remessas ao exterior em contrapartida a serviços técnicos prestados sem transferência de tecnologia (o que, diga-se de passagem, é conceitualmente impossível para a doutrina) deveriam ser tributadas pelo IRRF com base no artigo 21 da Convenção Modelo OCDE, relativo a “rendimentos não expressamente mencionados”.

Ocorre que o STJ enquadrou no artigo 7º da Convenção Modelo as remessas para pagamento de serviços que não impliquem em transferência de tecnologia prestados por empresas sem estabelecimento permanente no território nacional.

O Tribunal concluiu que, quando o artigo 7º prevê que “os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse Estado”, não está se referindo ao lucro real (apurado somente ao final do exercício financeiro), como defendia a Fazenda Nacional, mas sim ao lucro de cada operação de prestação de serviço (lucro operacional).

Assim, o STJ afastou a pretensão da Receita Federal de tributar as operações em comento na fonte.

Diante desse posicionamento e da intenção da Finlândia de denunciar o Acordo com o Brasil, a Receita Federal editou o já citado ADI nº 05/14, que revogou o Ato COSIT nº 01/00, determinando que as remessas ao exterior para pagamento de serviços técnicos sem transferência de tecnologia sejam tributadas segundo o artigo 7º, caso não exista Protocolo equiparando-os a royalties.

Mas o STJ efetivamente enfrentou a controvérsia relativa à diferenciação entre serviços comuns e técnicos? Chegou a afastar o conceito amplo de serviço técnico previsto no artigo 17, § 1º, II, “a”, da IN RFB nº 1.455/14? Analisou a validade da equiparação de serviços técnicos a royalties via Protocolo, independentemente da vinculação a contrato de know-how? É o que passamos a analisar na segunda parte do artigo.

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[1] ROLIM, João Dacio; LARA, Daniela Silveira. A Tributação de IRRF na importação de cloud computing no Brasil e as soluções analisadas na Ação 1 do BEPS. In MONTEIRO, Alexandre, FARIA, Renato e MAITTO, Ricardo (Coords.). Tributação da Economia Digital: Desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva. 2018. p. 72.

[2] Ibid. p. 72.

[3] NETO, Luiz Flávio; PARO, Giácomo. Com a cabeça nas nuvens e os pés no chão? A tributação internacional da renda no ambiente do cloud computing. In MONTEIRO, Alexandre, FARIA, Renato e MAITTO, Ricardo (Coords.). Tributação da Economia Digital: Desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 161-162.

[4] Ibid. p. 162.

[5] XAVIER, Alberto. Direito Tributário internacional do Brasil. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 618.

[6] Ibid, p. 621.

[7] Ibid, p. 622.

[8] ROCHA, Sérgio André. Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 285.

[9] TORRES, Heleno Taveira. A Qualificação dos Serviços não Técnicos como Lucros de Empresas nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação. In: ROCHA, Sergio André; TORRES, Heleno (Coords.). Direito Tributário Internacional: Homenagem ao Professor Alberto Xavier. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 258-262.

[10] CANTO, Gilberto Ulhôa. Temas de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Alba, 1964. p. 213-214.

[11] Nesse sentido, XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 513-514; ROCHA, Sergio André. Política Fiscal Internacional Brasileira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 97-104; SCHOUERI, Luis Eduardo. Royalties e Assistência Técnica ao Exterior – Exigência da CIDE. Revista de Estudos Tributários, vol. 37. Porto Alegre: Síntese, 2004; p. 144; TORRES, Heleno Taveira. Regime Tributário da Propriedade Industrial e Transferência de Tecnologia nos contratos de serviços técnicos e assistência técnica. In: TORRES, Heleno (Coord.). Comércio Internacional e Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 649.

[12] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 927.

[13] GRECO, Marco Aurélio e ROCHA, Sérgio André. Manual de Direito Tributário Internacional. São Paulo: Dialética, 2012. p. 353-354.