As duras lições de um show de realidade

JOTA.Info 2021-05-15

Inteligente e com boas tiradas, Juliette Freire, a campeã da edição mais recente do reality show Big Brother Brasil (BBB), fez sucesso nas redes socias e em outros meios de comunicação desde o seu ingresso na casa mais vigiada do Brasil.

A paraibana, formada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e já tendo passado na disputada prova da OAB, estava, até ingressar no BBB, estudando para um concurso público. Contudo, como forma de se sustentar, ganhava a vida como maquiadora.

Em um dos momentos durante a sua trajetória no reality, Juliette afirmou que “a maquiagem é a coisa que transformou a minha vida, é o que me possibilita lutar pelos meus sonhos, eu só consigo estudar para concurso público, só consigo ser quem eu sou, por conta da maquiagem. Vocês não imaginam a quantidade de renda, de emprego, de história que isso proporciona. (…) O poder da maquiagem para a mulher, vocês não imaginam o quanto isso transforma e a força que dá. A maquiagem é a comunicação do amor, quando uma pessoa usa a maquiagem ela quer comunicar algo”.

Na internet, muitos indagaram como Juliette podia atuar em duas áreas tão distintas: o Direito e a beleza. Estavam enganados. Direito e beleza são dois temas que dialogam há muito tempo, embora discretamente.

Segundo o Professor Marcílio Franca, da mesma Universidade Federal da Paraíba em que estudamos Juliette e eu, o tema da beleza (nas cidades, nas paisagens, na indústria cosmética, das roupas e nas pessoas) é um tema que vem preocupando o Direito desde a Grécia antiga, até chegar aos dias atuais.

No entanto, dentro das múltiplas interações possíveis entre Direito e beleza, existe uma interseção entre esses dois conceitos, o chamado direito à beleza, que merece ainda mais atenção depois daquela fala de Juliette. É o que gostaria de tratar neste artigo.

Mas afinal, o que é o direito à beleza? O direito à beleza tem como um dos seus principais precursores o cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1923-2016), que publicou, em 1984, um livro com esse mesmo título e inovou ao discutir a beleza não sob um viés de futilidade, frivolidade ou vaidade tola, mas sim sob um enfoque de um verdadeiro direito humano ou fundamental[1].

O famoso cirurgião começou a estudar sobre esse termo quando trabalhou no hospital carioca da Santa Casa da Misericórdia, durante a década de 60. Nesse hospital, ele tratou muitas vítimas de um incêndio que ocorreu em um circo, em Niterói, em 1961, o qual deixou diversas crianças desfiguradas com queimaduras.

A partir desse acontecimento, Ivo Pitanguy passou a enxergar a importância da aparência para o bem-estar emocional. Ao publicar seu livro, em 1984, Dr. Ivo afirmou que a cirurgia estética era um remédio para aqueles que sofriam de baixa autoestima e que, na verdade, o objeto do procedimento estético não era o corpo e sim a mente do paciente.

Ao falecer, Pitanguy deixou como legado intelectual uma visão mais humanista e menos naïf da cirurgia plástica[2] e também o direito à beleza como um verdadeiro direito humano, visto que é um meio de proporcionar alguma dignidade à pessoa humana traumatizada.

Na nossa vida cotidiana cada vez mais visual, em situações como uma entrevista de emprego, os padrões estéticos – ou mínimos estéticos existenciais – assumem um papel importante. Claro que, em uma seleção profissional, os aspectos a serem levados em consideração são a formação do candidato, as experiências, dentre outros tópicos óbvios.

Contudo, a imagem contribui para essa avaliação e a aceitação do(a) candidato(a). Como? De acordo com o chamado “efeito halo”, detectado pela sociologia, quando um indivíduo identifica uma primeira característica positiva em outro indivíduo, ele tende a identificar vários outros atributos positivos nesse mesmo indivíduo, e isso também vale para impressões negativas.

Assim, como preceitua o ditado popular “a primeira impressão é a que fica”, como a aparência é a primeira coisa que conseguimos identificar de uma pessoa quando a conhecemos, tendemos a nos influenciar a partir dela para julgar todos os outros atributos de determinada pessoa. Isso contribui para a construção do estigma social.

É duro, mas é o que dizem sociólogos da moda, filósofos da estética e semióticos visuais. Numa conferência recente sobre o “direito à beleza”, no Centro de Estudos Europeus e Alemães da UFRGS/PUCRS, o prof. Marcílio Franca tratou desse perverso fenômeno.

O sociólogo canadense Erving Goffman discutiu sobre o estigma social[3], as causas e os efeitos que decorrem desse tratamento. Um dos tipos de estigma, segundo Goffman, é o referente às supostas “deformidades” (?) do corpo, como a deficiência física, obesidade, calvície ou cicatrizes.

O estigma surge da expectativa social em relação a comportamentos e estereótipos que certo grupo de pessoas deveria ter. Seus efeitos são falta de confiança, perda de reputação e segurança e isolamento social.

A beleza (ou melhor, um mínimo estético existencial), torna-se então, além do aspecto psicológico, uma forma poderosa de inclusão social diante de algumas situações de preconceito.

Voltando a Juliette, percebemos que o seu trabalho como maquiadora, além de ter proporcionado seu próprio sustento, também não deixa de ser um meio de possibilitar o chamado direito fundamental à beleza, propiciando autoestima e autoconfiança a seus clientes, para que possam conseguir se relacionar socialmente sem que sejam marcados pelos “estigmas” que supostamente carregam.

Dessa forma, a advogada, mesmo que não esteja atuando propriamente na área jurídica quando estava maquiando, acabava por não se desvincular totalmente da justiça. Maquiar, em certos casos, pode ser uma ferramenta de “defesa estética” de certos direitos, em que se substitui a beca jurídica pelo guarda-pó e a espada e a balança pelos pincéis e estojos de maquiagem.

A própria Juliette, naquele seu discurso mencionado no começo deste artigo, ressaltou a importância da maquiagem como uma ferramenta de transformação, de empoderamento, de comunicação do que uma pessoa deseja dizer ao mundo exterior.

Um projeto social que também atua nesse exato viés é a ONG francesa L’Association Joséphine, que há 10 anos tem apoiado mulheres refugiadas em situação de grande fragilidade a recuperar a autoconfiança, oferecendo-lhes gratuitamente maquiagem e cabelereiro.

Ao lhes apresentar uma viagem única em torno de tratamentos de beleza e bem-estar, a ONG Joséphine permite que essas mulheres recuperem o poder sobre suas vidas, além da autoestima e o orgulho. A iniciativa já virou até documentário.

Juliette, durante a sua participação no BBB, acabou por propiciar, de forma indireta, o debate sobre um tema pouco ainda discutido: o direito à beleza. Sim, temos direito à beleza! Porém, a qual beleza temos direito? Não sei.

Pra começar, não há uma só beleza, há belezas. Esse é um conceito difícil, que vai sendo construído aos poucos, com camadas constantes de conteúdos sociais. Como o próprio conceito de dignidade humana.

Em todo caso, essa beleza difícil de definir é fundamental – já dizia o poeta Vinícius de Moraes! Quem vai dizer que não há fundamentalidade, por exemplo, no ato de doar uma peruca a uma paciente quimioterápica?

Ou que inexiste fundamentalidade numa cirurgia plástica de uma senhora que foi obrigada a fazer uma mastectomia após um câncer de mama? Como diz outro poeta, o Fabrício Carpinejar, se a vida é um sopro, que pelo menos ainda consigamos assoviar.

*** Agradeço ao prof. dr. Marcílio Franca pelos ensinamentos, pela orientação e pelo diálogo que resultaram neste texto.

new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm(); setTimeout(function(){ const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n") const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knj7ibbg") btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; check.addEventListener("click", function() { if (check.checked){ btn.disabled = false; btn.style.opacity = 1; } else { btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; } });}, 3000);


[1] BHATTACHARYA, Surajit. Dr. Ivo Pitanguy: Strived for a ‘human right to beauty’. Indian Journal of Plastic Surgery. v. 49, n. 3, 2016, p. 300-301.

[2] EDMONDS, A. A Right to Beauty. Taylor & Francis Group, Anthropology Now, vol.4, n. 1 (April 2012), pp. 3-9. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/10.5816/anthropologynow.4.1.0003>. Acesso em: 8 de maio de 2021.

[3] GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. LTC, 1981.