Uma casa sitiada chamada Brasil

JOTA.Info 2021-06-18

A literatura ajuda a entender a realidade. Sufocante a realidade brasileira (não só em Manaus, um dos exemplos mais mórbidos do ousado descalabro da antipolítica pública gestada em Brasília), a literatura dá algum fôlego para ver as coisas com outros ares. E Lydia Davis, em pouquíssimas linhas escritas há mais de 30 anos, tratou de uma certa casa sitiada (In a House Besieged. Break it Down.  Em The Collected Stories of Lydia Davis, 1986. Trad. Joca Reiners Terron): “Em uma casa sitiada viviam um homem e uma mulher. Ali de onde se encolheram na cozinha, o homem e a mulher ouviram pequenas explosões. “O vento”, disse a mulher. “Caçadores”, disse o homem. “A chuva”, disse a mulher. “O exército”, disse o homem. A mulher queria ir para casa, mas ela já estava em casa, lá no meio daquele país, em uma casa sitiada”.

Aqui no Brasil, a contragosto de parlamentares – e evidentemente nem se diga do ocupante do cargo de presidente da República e seus zeros à esquerda (zero um, zero dois, zero três…) em ministérios paralelos, de ódio ou sabe-se lá qual – existe uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar possível responsabilidade penal no âmbito do combate à disseminação da Covid-19.

No morticínio que vivenciamos diária e impunemente, a tal CPI investiga, eis que há fundamentos constitucionais para tanto (art. 58, § 3º), possíveis responsabilidades por crimes comuns ocorridos no âmbito da pandemia. Não estamos falando da política criminógena estimulada irresponsável e sorridentemente pelo presidente da República a propósito de se armar a população convidando-nos a todos para participar de um imenso filme de faroeste. Falamos, propriamente, de possíveis crimes de periclitação da vida e saúde (art. 132), crimes contra saúde pública (art. 267), infração de medida sanitária preventiva (art. 268), lesão corporal (art. 129) ou quem sabe até homicídios mesmo (art. 121). São todos crimes do Código Penal.

Na putrefação do trato da doença que é a expressão melhor para ver como o órgão central (Ministério da Saúde) lidou com o tema, primeiro se pensava em responsabilização criminal de um militar, o tal general Eduardo Pazuello. E eis que novamente a literatura nos tira e traz à triste – no caso brasileiro, bem mórbida – realidade. Sim, porque em Asco, Horácio Castellanos Moya (Ed. Rocco, Trad. Antonio Xerxenesky, 2013) tece duríssimas críticas a acólitos militares que, tal como carrapatos ou imagem mais asquerosa, grudam no aparato público, tingindo o que seria possível governo civil com as cores da obediência e subserviência irracional em El Salvador. Isso e o desprezo às políticas de educação pública, desestímulo à leitura e outros reptos contra o amesquinhamento da civilização.

No Brasil, então, a CPI começaria com a hoje inquestionável responsabilização por crimes comuns atribuíveis ao general. Ele era, emblematicamente, quem deteria a “última palavra decisiva” em matéria de compra de vacinas (no passado, da Pfizer) e insumos imunizantes; era ele quem deveria ter a atribuição de centrar esforços não em medidas taumatúrgicas ou curandeiras como ‘tratamentos precoces’, mas sim em pesquisas amparadas em estudos científicos para o combate à disseminação do vírus. Ele, Pazuello, sabia – e os depoimentos de autoridades públicas já ouvidas na CPI indicam isso fora de dúvida – do iminente colapso em Manaus dias antes de se tornar imagem de filme apocalíptico.

Mas como o brasileiro é, diria Sérgio Buarque de Hollanda (justiça seja feita ao intelectual brasileiro em tempos tão canhestros como os atuais, isso é uma pura ironia), cordial… Ele, Pazuello, há menos de um mês, já em pleno andamento da CPI e mesmo depois de seu interrogatório, foi convidado pelo ex-chefe (sim, o presidente da República) a participar de uma festiva “motonata” no Rio de Janeiro. E ali se noticiou – com fotos e vídeos – que ambos, com ou sem palanque para os perdigotos disseminadores do vírus, desfilaram sem máscara em meio à aglomeração que era o propósito do festejo.

Numa palavra: a conduta mais simples, mais pedestre, contra a disseminação do vírus, foi como outras vezes – antes ou depois – a primeira a ser descartada: Bolsonaro não usa a máscara. Houve, ali, situação de crime em flagrante (art. 268, CP), que deveria ensejar até a prisão.

Mas somos cordiais demais, e dormimos todos nós (menos cerca de 2 mil brasileiros por dia, sem contar as subnotificações e tudo apesar da censura que fez com que os dados nem sejam mais oficiais, mas sim informados à população a partir de consórcio de veículos de imprensa) com mais uma evidência de crime comum, agora praticado por Pazuello, “o gestor”, como também pelo presidente da República, “o capo”.

Na irracionalidade governamental cuja percepção aumenta diariamente, como se a aposta na impunidade por crimes comuns e de responsabilidade já estivesse ganha à partida, Bolsonaro, que primeiro arremetia contra entidades federativas mais preocupadas com importação de insumos, que dizia que se cuidava de uma “gripezinha”, que se vangloriava por não importar insumos, chegou recentemente a publicar mensagem falsa a propósito de informação do Tribunal de Contas da União sobre número de brasileiros infectados e mortos.

Há, então, de se cogitar além dos crimes inerentes à responsabilização direta da exposição da vida e saúde de brasileiros e brasileiras do presidente (arts. 129 e 132, CP) em inúmeros eventos públicos sem proteção, estimulando a disseminação de vírus e em afronta às determinações sanitárias, também em eventual participação em falsidade ideológica (297, CP). Isso porque o fim, como prova a disseminação de notícia falsa em seu próprio proveito, é sim jurídica e politicamente muito relevante a partir de documento público.

Mas o que dizer, como a CPI tem comprovado e os jornais divulgado, dos gastos com produção de cloroquina em massa? Não há como ir contra a evidência da malversação do recurso público diante desse exemplo, para disfarçar chamando de temeridade o que é um absurdo com propósito diversionista claro. Não há como dizer se uma decisão dessa magnitude, que envolve recursos financeiros, inclusive, não ultrapassa o mero (por si acintoso) ato de culpa ou incompetência gerencial, para adentrar no frio ato intencional. Aqui, mesmo que não seja o âmbito de apuração da tal CPI, o que há é, além dos crimes comuns diagnosticados, crime de responsabilidade.

Instituir “Ministério paralelo”, destinar recursos para esse estranho “puxadinho”, separar parcela de orçamento da Saúde para estímulo a pesquisas e compras de medicamentos de cloroquina (e teve também gasto com viagem a Israel atrás de um milagroso ‘spray’, protagonizado pelo filho do Presidente, pago com o meu e o seu dinheiro, leitor e leitora), são elementos de improbidade administrativa (art. 85, V, Constituição Federal; art. 4º, V, Lei 1079/50). Isso, sem falar que essas condutas que implicam crime de responsabilidade, a depender do que a CPI venha a investigar, podem adquirir inclusive o colorido de outro crime comum, de prevaricação (art. 319, CP) a depender de provas sobre interesses pessoais (políticos ou não) no calamitoso desvio de rota de recursos e esforços. E aqui vai mais um exemplo, agora de um executivo da Pfizer, ouvido na CPI, sobre a omissão do governo brasileiro em sequer tentar negociar preços de insumos, ainda em 2020, para o combate da doença.

Nós, brasileiros, talvez já estejamos na casa sitiada e não percebemos, surdos pelos festejos e buzinas do inimputável presidente, entorpecidos pela maldição governamental, e desatinados com o tamanho da tragédia. No meio desse tempo tormentoso, há o futebol, há a alegoria, há também a milícia, há a ameaça de não termos eleições ano que vem. Não é bom “jair se acostumando”. Não há como se acostumar.

Se, com relação estritamente às notícias da CPI, a conclusão seria que ao fim e ao cabo o processamento por crimes comuns redundaria na atribuição de algum bom senso por parte do procurador-geral da República para processar quem deve ser processado, já ao pensar nos crimes de responsabilidade, o espírito cívico esperado estaria nos ombros dos congressistas, a começar pelo presidente da Câmara.

De um lado, há reverência constrangedora que se comprova em investidas com irascibilidade bolsonarista como se vê do afã de processar criminalmente quem diz verdades contra Augusto Aras e arquivar inquéritos contra quem se sintoniza com o chefe (ver o posicionamento da Procuradoria-Geral da República no Inquérito 4828). De outro lado, não se sabe se é espírito de coalizão política (o que o Bolsonaro gritou que iria acabar enganando os incautos), com o imorredouro “centrão”, ou medo de que o Chefe do Executivo pule do cercadinho para fechar o Legislativo e alterar a composição do Supremo Tribunal Federal, como fizeram seus saudosos amigos em passado recente. Quase não sofreremos de nostalgia, leitores e leitoras.

Joca Reiners Terron, com insuportável senso de realidade n“O Riso dos Ratos” (Todavia, 2021), diz que a calamidade dá seus primeiros sinais do esfacelamento da justiça. Ele diz também que não haverá futuro se não se toma o presente à força.

A casa está sitiada.

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