Acordos de colaboração, Pacote Anticrime e (ir)retroatividade da norma penal

JOTA.Info 2021-06-18

Apelidada de “Pacote Anticrime”, a Lei nº 13.964/2019, que entrou em vigor há mais de um ano, ainda provoca debates e reflexos que vêm sendo submetidos ao Poder Judiciário. Enquanto no campo processual as inovações surpreendentemente ampliaram as garantias do acusado (maior regulamentação das prisões preventivas, juiz de garantias e cadeia de custódia da prova, entre outras), já em relação ao direito material penal ocorreu evidente endurecimento da legislação, sobretudo o alargamento das penas cominadas a alguns delitos.

No cenário atual, em que claros excessos cometidos nos últimos anos de lavajatismo vêm sendo objeto de crítica revisão pelo Judiciário, ganha extrema importância revisitar a boa e velha vedação à retroatividade da lei penal mais severa – assim como a garantia da ultratividade da norma penal benéfica.

Tais garantias são extremamente relevantes à análise dos efeitos das mudanças legislativas implementadas pelo Pacote Anticrime sobre um dos institutos mais controversos do direito penal, a colaboração premiada. Essa matéria, inclusive, foi levada recentemente à apreciação da Corte Constitucional por meio de agravo regimental, ainda não julgado.

As colaborações premiadas no Brasil, ao contrário do que se pensa, não são novidade no ordenamento jurídico. Apesar de as primeiras notícias datarem das Ordenações Filipinas, a produção legislativa sobre o tema sob a égide da Constituição Federal de 1988 teve início com a Lei de Crimes Hediondos em 1990.

Ao longo desses últimos 30 anos foram editadas diversas leis com previsões expressas de redução de pena aos acusados que levassem ao conhecimento das autoridades os detalhes de infrações penais de sua co/autoria. Há dispositivos dessa natureza desde a lei de crimes hediondos (de 1990) até a lei 12.850/2013 (recentemente alterada), passando pela Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613), a qual, em seu art. 1º, §5º, além do benefício da redução de um a dois terços na pena, faculta “ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos” no caso de colaboração espontânea do acusado.

A possibilidade de modificação nos regimes de cumprimento e mesmo de substituir a sanção por medidas restritivas de direitos catalisou a celebração de acordos. Segundo o Ministério Público Federal, o primeiro acordo de colaboração premiada clausulado da história brasileira foi assinado em 2003, com o doleiro Alberto Youssef, no caso do Banestado. A partir dessa colaboração, considerada por muitos procuradores umas das mais frutíferas da história, diversas investigações foram aprofundadas. Foram firmados mais de 20 acordos de colaboração, recuperando-se aproximadamente R$ 30 milhões só com esses acordos subsequentes[1].

A Ação Penal nº 470/DF do Supremo Tribunal Federal, que ficou conhecida como “Mensalão”, teve sua origem na colaboração do então deputado federal Roberto Jefferson, a qual foi reconhecida pela Corte, que reduziu um terço de sua sanção.

Muitos acordos penais vêm sendo pactuados desde então; os últimos e de maior repercussão, na rumorosa operação Lava Jato, continham inclusive previsões de cumprimento de pena em regimes diferenciados – como, por exemplo, regimes aberto e semiaberto diferenciados.

O Supremo Tribunal Federal, instado em diversas oportunidades a chancelar acordos com cláusulas dessa natureza, entendeu que tais tratativas entre Ministério Público e colaborador eram legais e mereciam endosso do Poder Judiciário.

Como exemplo, podemos citar as colaborações celebradas entre o Ministério Público Federal e Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa, Renato Pereira, José Adelmário Filho (Leo Pinheiro), Marcelo Odebrecht, Emílio Odebrecht, Bruno e Jorge Luz, dentre muitos outras, todas com cláusulas as quais estabelecem regimes híbridos de cumprimento de pena.

A colaboração premiada, no que tange ao benefício sancionatório ofertado ao acusado/investigado, tem evidente natureza de causa especial de redução de pena, matéria de direito penal substantivo. Não se ignora, entretanto, que sob perspectiva da acusação, o negócio jurídico celebrado torna possível e decerto tem a finalidade de ser novo meio de obtenção de provas, as quais, pelas vias tradicionais, em determinados tipos de criminalidade, dificilmente poderiam ser produzidas.

Nessa linha, é inegável a natureza heterotópica – adjetiva e substantiva – das normas que disciplinam os acordos de colaboração, a depender do dispositivo analisado. O colaborador admite a prática criminosa e compromete-se a auxiliar a persecução penal em troca de benefícios à sua pena, ou seja, o negócio jurídico da colaboração premiada atua como causa especial de diminuição de pena do colaborador e, ao mesmo tempo, um importante meio de obtenção de provas.

Em linhas gerais, as regras de direito processual penal, aí incluídas aquelas pertinentes à produção de provas, devem ter sua aplicabilidade regida pelo art. 2º do Código de Processo Penal – tempus regit actum – e, portanto, sua incidência ocorre a partir da publicação da lei que as institui.

É o caso, por exemplo, do procedimento interno na autoridade com atribuição para negociar o acordo, previstos pelos arts. 3-A, 3-B e 3-C da Lei 12.850/2014, instituídos pela Lei nº 13.965/19. Tais disposições, de índole processual, vêm corretamente sendo implementadas desde o início da vigência do Pacote Anticrime.

Ocorre que, simultaneamente, o Pacote Anticrime inseriu à disciplina das colaborações premiadas inovações de caráter material, as quais restringem consideravelmente as reduções de pena a serem avençadas.

Foi proscrita do âmbito negocial a definição de regimes “diferenciados” para cumprimento da pena imposta por uma condenação criminal, algo antes, como já dito, absolutamente corriqueiro na celebração dos acordos de colaboração da Lei nº 12.850/13, que agora dispõe serem “nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena” e também nulas “as regras de cada um dos regimes”.

Sem aqui tecer considerações sobre a conveniência da nova vedação legal, é indubitável que ela deverá incidir sobre acordos que versem sobre fatos ocorridos a partir da data de vigência da Lei nº 13.964/19. Novos colaboradores não poderão, em seus acordos com os órgãos persecutórios, transigir sobre o regime de cumprimento da reprimenda e suas regras.

Entretanto – aqui o ponto nevrálgico –, como tratar as colaborações que se referem a fatos anteriores à vigência do Pacote Anticrime? E, mais ainda, como tratar réus/investigados que já estavam em processo de negociação quando do termo inicial de vigência da Lei nº 13.964/19?

Considerando que diversos acordos com previsões específicas sobre regimes de pena diferenciados ao colaborador foram homologados pelo Supremo Tribunal Federal, é natural concluir que tais benefícios eram inteiramente lícitos. Não por acaso, foi necessária a edição de uma nova lei pelo Congresso Nacional para, de maneira específica, vedar a concessão por meio de colaboração premiada de alguns benefícios de direito material.

Parece claro, nessa toada, que a vedação imposta pelo artigo 4º, § 7º, da Lei 12.850/2013, não deverá retroagir para prejudicar o colaborador que narrar fatos anteriores à vigência do dispositivo. Tratando-se de norma sobre regime de cumprimento de pena, questão de direito penal material por excelência, a norma mais grave não poderá alcançar o colaborador, sob pena de flagrante violação ao art. 5º, XL, da Constituição Federal.

A questão é particularmente grave em relação aos investigados/acusados que já tenham iniciado suas tratativas com o órgão acusatório antes da publicação da Lei nº 13.965/19. Ao que tudo indica, a proscrição de determinados benefícios de direito material no curso da negociação não apenas violaria o disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal, como, também, poderia vulnerar a segurança jurídica necessária à celebração de negócios processuais, mormente na seara penal.

Importante mencionar que matéria semelhante está em discussão no Supremo Tribunal Federal nos autos do habeas corpus nº 185.913/DF, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

O referido feito foi afetado ao Plenário da Corte, por entender o relator que, pela natureza heterotópica do art. 28-A do Código de Processo Penal, instituído também pela Lei nº 13.964/19, sua possível aplicação a casos já em andamento deve ser analisada à luz do art. 5º, XL, da Carta Republicana.

Resta saber se os ventos das transformações soprarão para uma era de maior respeito aos princípios basilares do direito penal.

É certo que o desfecho desses julgamentos conterá lições importantes à análise da questão posta no presente artigo.

new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm(); setTimeout(function(){ const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n") const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knhwxg2c") btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; check.addEventListener("click", function() { if (check.checked){ btn.disabled = false; btn.style.opacity = 1; } else { btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; } });}, 3000); —————-

[1] http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato/faq