Caso sofosbuvir e a inefetividade da regulação de preços de medicamentos no Brasil

JOTA.Info 2021-06-18

Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 71 milhões de pessoas estejam cronicamente infectadas pelo vírus da hepatite C (VHC) em todo o mundo e que a epidemia dessa doença seja responsável por cerca de 400 mil mortes por ano. Somente no Brasil, a estimativa é que existam aproximadamente 700 mil pessoas cronicamente infectadas e que, entre os anos 2000 e 2018, dos 74.864 óbitos por causas básicas associadas às hepatites virais, 57.023 (76%) estejam associadas à hepatite C.

Diante desse grave cenário, a “Estratégia Global para as Hepatites Virais”, apresentada pela OMS em 2016, definiu como metas que 90% das pessoas infectadas pelo VHC no mundo sejam diagnosticadas e que 80% delas sejam tratadas até 2030. Nesse mesmo sentido, o “Plano para Eliminação da Hepatite C no Brasil”, apresentado pelo Ministério da Saúde em 2018, prevê o tratamento de 657 mil pessoas até 2030 e, consequentemente, a eliminação da doença como problema de saúde pública no país.

Entretanto, um dos maiores desafios a serem enfrentados para o alcance desses ambiciosos objetivos é garantir amplo acesso aos tratamentos com Antivirais de Ação Direta (AAD). Esses medicamentos, além de apresentarem taxas de cura acima de 90%, possibilitam a realização de tratamentos orais, mais seguros e de curta duração — com melhor adesão pelo paciente —, em comparação às alternativas terapêuticas que existiam antes de sua introdução no mercado. Mas o preço exorbitante cobrado por essa nova classe de medicamentos pode ser considerado o principal obstáculo ao acesso da população à cura da hepatite C, sujeitando diretamente milhões de pessoas ao risco de insuficiência hepática e câncer.

Como exemplo mais emblemático deste problema, no final de 2013, o tratamento de 12 semanas com o medicamento sofosbuvir, tido como a espinha dorsal dos tratamentos com AAD atuais, foi lançado no mercado estadunidense por US$ 84 mil, o que correspondia a mil dólares por comprimido e a um valor cerca de 67 vezes mais alto que o seu peso equivalente em ouro.

Graças à titularidade dos direitos de patente sobre o sofosbuvir e à falta de regulação de preços de medicamentos nos Estados Unidos, a companhia biofarmacêutica Gilead Sciences Inc. (Gilead) se viu completamente livre para fixar os preços que maximizam o lucro de seus acionistas, mesmo que isso tornasse o tratamento severamente inacessível para a população em geral.

Embora mais de sete anos tenham se passado desde o lançamento do sofosbuvir no mercado e, de fato, o preço do medicamento, em diversos locais, por diversos fatores, tenha se reduzido consideravelmente, o acesso ao tratamento para hepatite C continua sendo bastante restrito no mundo.

No Brasil, ao se considerar as compras públicas levantadas por um um estudo da Universidade de São Paulo que foram realizadas no período entre 16/01/2015 e 22/06/2019, o preço médio por comprimido dos medicamentos que contêm sofosbuvir como princípio ativo e que são registrados pela Gilead (Epclusa, Harvoni e Sovaldi) chegou a R$ 986,57. Esse quadro se mostra ainda mais grave quando se calcula o custo total de um tratamento de 12 semanas com algum desses medicamentos, que pode chegar a um preço médio de até R$ 82.871,88.

Além de possibilitar a prática de preços exorbitantes no mercado brasileiro, os direitos patentários concedidos à Gilead também possibilitam que a companhia altere abruptamente o preço sobre os seus medicamentos. Antes da concessão da patente, período em que houve concorrência entre Gilead e Blanver/Farmanguinhos (02/07/2018 até 15/01/2019) para fornecimento do sofosbuvir ao Ministério da Saúde, o preço médio por comprimido dos medicamentos da empresa estadunidense que contêm o sofosbuvir chegou a ser R$ 64,84. Entretanto, após a concessão do monopólio patentário para a Gilead (15/01/2019), em um intervalo de apenas 43 dias (16/01/2019 a 28/02/2019), ocorreu uma elevação de 1.421,55% no preço unitário médio desses medicamentos, os quais passaram a custar, em média, R$ 986,57 por comprimido.

Mais recentemente, em abril de 2020, os efeitos do monopólio sobre o sofosbuvir continuavam a ser gravemente sentidos pelos cofres públicos. Após a Gilead, como única participante do pregão 56/2020, apresentar uma proposta de preços exorbitantes para os medicamentos Epclusa e Harvoni, o certame teve que ser declarado fracassado e só pôde ser retomado quando o Ministério da Saúde se sujeitou às condições impostas pela empresa.

Contudo, diferentemente dos Estados Unidos, há, no Brasil, uma política de regulação de preços de medicamentos e um teto de preços estabelecido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, a CMED. Diante disso, uma importante questão é levantada: como é possível, então, que os preços dos medicamentos que contêm o sofosbuvir possam ser tão altos e possam variar tanto no mercado brasileiro?

Uma pista para responder a essa questão pode ser encontrada ao se verificar o teto de preços mais baixo estabelecido pela CMED para compras públicas desses medicamentos em 2021, isto é, os Preços Máximos de Venda ao Governo (PMVG) por comprimido, isentos de ICMS, do Epclusa (R$ 764,47), do Harvoni (R$ 1.597,24) e do Sovaldi (R$ 1.729,30). Os tetos de preço podem ser considerados tão elevados que nem mesmo os preços mais altos pagos pelo Estado brasileiro por cada um desses medicamentos – embora possam ser considerados excessivos – ultrapassam os limites de preços fixados pela CMED.

Nesse sentido, no caso dos medicamentos da Gilead que possuem o sofosbuvir como princípio ativo, os preços máximos estabelecidos pela CMED são tão elevados que não são capazes de impedir a fixação e nem a variação exorbitante de preços pela indústria farmacêutica, configurando-se como uma política pública inefetiva para barrar abusos mercadológicos e auxiliar na garantia da assistência farmacêutica e, portanto, incapaz de alcançar os seus propósitos iniciais estabelecidos por lei.

Assim, embora seja verdade que no Brasil exista uma política de controle de preços de medicamentos e que ela possa ser considerada historicamente um avanço regulatório, dada a sua inefetividade prática, ela não tem se mostrado capaz de limitar o exercício abusivo dos detentores de monopólios sobre medicamentos e nem de ampliar o acesso da população aos tratamentos que utilizam o sofosbuvir.

Diante desse preocupante cenário, no dia 21 de outubro de 2019, a Defensoria Pública da União (DPU) e mais 9 organizações (entre elas, a UAEM Brasil), protocolaram uma representação junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), na qual denunciam a prática de preços abusivos e o abuso de posição dominante praticado pela Gilead, assim como objetivam corrigir esta grave distorção do mercado concorrencial brasileiro. No âmbito dessa representação, essas entidades pedem a aplicação da pena de multa à companhia e a imposição do licenciamento compulsório da patente sobre o sofosbuvir.

O acionamento do Cade, neste caso, além de estar perfeitamente alinhado à missão institucional da autarquia e complementar a atuação da CMED, apresenta-se como uma medida inovadora e extremamente importante para garantir o acesso da população à cura da hepatite C. No entanto, já se passaram mais de 600 dias desde a data de protocolo da representação e o Cade não tomou qualquer tipo de decisão a respeito — negando-se, inclusive, a efetivamente iniciar uma investigação sobre o caso.

Diante da inércia das autoridades competentes e de um contexto de cortes orçamentários na saúde, a inefetividade da regulação de preços de medicamentos no Brasil torna-se ainda mais grave e merece atenção redobrada.

Por isso, mais do que nunca, é fundamental ressaltar a existência de importantes iniciativas que têm surgido com o intuito de alterar esse cenário, como a campanha “Remédio a Preço Justo”, promovida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Essa campanha visa a aprovação do Projeto de Lei 5.591/2020, de autoria do senador Fabiano Contarato, e aposta em uma nova regulação de preços baseada em quatro eixos principais: (i) preço justo para a população; (ii) sustentabilidade do mercado; (iii) transparência da indústria; e (iv) participação social na CMED.

No entanto, para que essa iniciativa seja bem sucedida e para que seja possível ampliar radicalmente o acesso a medicamentos em nosso país, é importantíssima a participação da população brasileira. Afinal, como demonstrado no caso do sofosbuvir, a união entre um sistema de patentes desequilibrado e uma política inefetiva de regulação de preços de medicamentos pode resultar em uma combinação letal para o orçamento público nacional e, sobretudo, para milhares de pessoas que estão condenadas a sofrer as duras penas de uma doença para a qual já existe cura.

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