Cooperação internacional na cobrança de créditos tributários – parte II

JOTA.Info 2021-06-18

Neste segundo texto dedicado à cooperação internacional na cobrança de créditos tributários, focaremos nossa atenção na possibilidade de se ampliar a localização de ativos ocultos por diligências realizadas no exterior.

O sistema de rastreamento de ativos pelas Fazendas Públicas domésticas evoluiu significativamente nos últimos anos, culminando no recentíssimo sistema integrado de bloqueio online de ativos financeiros denominado Sisbajud[1]. O esforço combinado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e o Banco Central do Brasil (BCB) permite, inclusive, a pesquisa sobre contratos de câmbio, extratos bancários simplificados e faturas de cartão de crédito internacionais ligados aos executados, possibilitando a localização de ativos financeiros no exterior por remessas de câmbio e o custeio de despesas vinculadas a bens igualmente localizados no exterior.

De posse dessas informações, a Fazenda Pública poderia exercer seu direito creditório sobre potenciais bens existentes em outras jurisdições. No entanto, como podem as autoridades identificar esses ativos e exercer atos de expropriação em outro estado soberano?

Não é segredo que existe um limite de recursos para a fiscalização doméstica direcionar esforços nas diligências afetas a lançamentos de ofício brasileiros, o que não é censurável. Todavia, é importante notar que, com o passar dos anos, a internacionalização das relações negociais que torna a economia ainda mais multilateral e os meios e recursos aplicáveis à constatação de fuga à legislação deverão seguir esse inevitável curso além-fronteiras.

É nesse particular que os tratados internacionais, como fontes de Direito Internacional, legitimam a cooperação com a execução forânea de atos de interesse doméstico em outras jurisdições.[2]

No primeiro texto em que trouxemos o tema, registramos a possibilidade do Brasil subscrever o módulo da Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária (CMAAT) relativo à assistência à cobrança de créditos tributários e medidas cautelares respectivas, especialmente ao dirigir uma reflexão sobre as vantagens de sua adesão na perspectiva de liquidação de créditos tributários com base em informações sobre ativos financeiros e demais bens e direitos no exterior de conhecimento da Fazenda Pública.

O módulo de compartilhamento de informações a pedido (upon request) foi objeto de adesão brasileira à CMAAT, referendando a opção nacional de concentrar seu interesse nas trocas de informações automáticas e a pedido, inclusive relativas ao intercâmbio automático de informações bancárias pelo Common Reporting Standard (CRS).

De fato, o intercâmbio automático de informações financeiras entre jurisdições permite a identificação de omissões de patrimônio e rendimentos de interesse fiscal nacional no exterior, e o uso dos dados financeiros pela autoridade fiscal brasileira, notadamente no seu cruzamento com informações obtidas a partir de obrigações acessórias do próprio contribuinte pessoa física ou jurídica, ou de terceiros que tenham o dever de prover informações sobre contribuintes para a Receita Federal.

Dados sobre os ativos financeiros e despesas no exterior obtidos por trocas automáticas ou sob demanda são relevantes não apenas para fiscalização dos contribuintes – de modo a verificar o cumprimento de suas obrigações (principal e acessória) –, mas também podem ser utilizadas para identificar a real capacidade de um contribuinte de fazer frente às suas dívidas tributárias, sub judice ou não.

Assim, uma vez revelada a existência (potencial ou efetiva) de ativos no exterior cujo beneficiário seja o contribuinte nacional (diretamente ou por meio de entidades/estruturas no exterior, como, por exemplo, International Business Companies para investimentos financeiros) pelo CRS, as autoridades podem realizar a solicitação de informações adicionais a pedido (Exchange of Information on Request – EIOR), para buscar maiores detalhes dos ativos financeiros cujo beneficiário seja residente no Brasil, bem como buscar identificar a existência de outros ativos além dos financeiros.

O EIOR prevê a possibilidade de solicitação e fornecimento de quaisquer informações previsivelmente relevantes para a administração ou aplicação da legislação tributária nacional de um parceiro da CMAAT. Dentre as informações intercambiáveis, a autoridade de um país pode solicitar à autoridade do outro país os registros relativos a contas bancárias, dados financeiros e informações transacionais de ativos financeiros, incluindo dados sobre os beneficiários finais das contas informadas,[3] existência de ativos não-financeiros em nome ou cujo beneficiário seja seu contribuinte, participação desse mesmo sujeito em empresas localizadas no outro país etc.

No caso de empresas, o EIOR permite a requisição dos registros contábeis de entidades relacionadas com o contribuinte nacional, inclusive a possibilidade de exibição de demonstrações financeiras e documentação suporte (faturas, contratos etc.) que reflitam detalhes de (i) recursos recebidos e gastos, e as justificativas para tanto, (ii) todas as vendas e compras e outras transações relacionadas ao contribuinte ou entidades a ele ligadas e (iii)  ativos e passivos da entidade conectada ao contribuinte nacional.

Além do EIOR, a CMAAT prevê também a possibilidade de fiscalizações simultâneas (simultaneous tax examinations), nas quais fiscos de dois ou mais países fiscalizam simultaneamente um mesmo contribuinte, grupo econômico ou fatos, e trocam informações sobre os resultados das inspeções, assim como de fiscalizações no exterior (tax examinations abroad), nas quais a autoridade tributária de um país pode autorizar a entrada de auditor-fiscal de outro  para que ele participe das buscas das informações solicitadas.

Com o acesso pleno a informações no exterior – por troca automática, complementada por troca sob demanda de informações –, é possível identificar, por exemplo, estruturas conhecidas como “blindagem patrimonial”, em que se busca evitar, de forma lícita ou ilícita, dependendo do caso, que credores – incluindo o fisco – tenham acesso a seus ativos.

Outro exemplo, no contexto de uma diligência em solo estrangeiro, recairia sobre a identificação de despesas debitadas de contas bancárias estrangeiras para custeio de outros ativos não declarados para as autoridades tributárias, eventualmente em nome de terceiros (“laranjas”), como fato indiciário de ocultação de valores da autoridade fiscal brasileira.[4]

As formas de cooperação internacional em matéria fiscal estão encampando novas oportunidades de localização de fontes de arrecadação, especialmente em momento de crise fiscal global pós-Covid-19, como no exemplo citado pela OCDE no uso de EIOR, que permitiu a cobrança de cerca de 10 bilhões de euros em receitas fiscais adicionais apenas no ano de 2020, com destaque para Rússia, Uganda e Senegal. As iniciativas regionais estimularam novos avanços no compartilhamento de dados para fins fiscais, fazendo surgir novas ferramentas e abordagens inovadoras pelos seus membros, especialmente durante a pandemia.[5] Destaque-se que, entre 2009 e 2019, segundo a OCDE, foram mais de 300 mil trocas de informações a pedido.[6]

A requisição de informações ao fisco de outros países impõe a reciprocidade em caso de solicitação de diligências em território brasileiro, o que significa dizer que pode haver custos para contar com a assistência forânea de interesse brasileiro.

A identificação de ativos localizados no exterior cujos beneficiários sejam contribuintes nacionais tem uma dupla função no contexto brasileiro: além de permitir às autoridades tributárias a identificação de evasão fiscal pela omissão de renda e patrimônio, ainda permite a localização de ativos que podem servir como fonte de satisfação do crédito tributário, seja por medidas judiciais colaborativas entre países, seja por meio da assistência à cobrança de créditos tributários e medidas cautelares, atualmente excetuada pelo Brasil na CMAAT.

Cabe lembrar, como destacamos no nosso artigo anterior, que a adesão a esse importante instrumento de colaboração fiscal internacional – auxílio na arrecadação de tributos – poderá ser mais eficiente e eficaz do que o uso de cartas rogatórias por cooperação jurídica internacional, via sabidamente mais estreita de execução de atos eminentemente judiciais e que se encontra em permanente risco de recusa de execução pela autoridade judiciária estrangeira – mais um reforço para que, nesse cenário multilateral que referimos o uso do EIOR seja estimulado como fator de conformidade fiscal e de simetria entre o tratamento fiscal e responsabilidade social de contribuintes com renda doméstica e estrangeira nesse novo milênio.

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[1]BRASIL. SISBAJUD: novo sistema de penhora on-line de ativos de devedores será lançado em 25 de agosto. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2020/sisbajud-novo-sistema-de-penhora-on-line-de-ativos-de-devedores-sera-lancado-em-25-de-agosto. Acesso: 14.mai.2021.

[2] O encerramento de executivos fiscais sem a localização de ativos penhoráveis é indicado como um dos fatores da pouca eficiência do atual sistema de cobrança judicial, com uma taxa de recuperação que gira em torno de 1%, segundo dados da PGFN em 2016.

[3] OCDE. Exchange of Information on Request – handbook for peer reviews 2016-2020. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/transparency/global-forum-handbook-2016.pdf . Acesso: 17.mai.2021.

[4] Em relação às demais jurisdições aderentes à CMAAT, a OCDE ampliou a racionalização no compartilhamento de dados entre jurisdições, com a edição da versão 2.0 do Sistema de Transmissão Comum (CTS) de troca de informações e atos de colaboração internacional de fiscalização e cobrança tributária. Assim, a execução e recuperação de tributos em cobrança, seja por meio de requerimento, seja por informação espontânea entre jurisdições, assim como os dados sobre fiscalizações simultâneas e força-tarefa internacional de inteligência, são cadastrados em um sistema de controle global que torna mais célere sua execução e compartilhamento de dados entre as jurisdições.

[5] O trabalho de capacitação do Fórum Global da OCDE se expandiu e 68 jurisdições receberam assistência fiscal em 2020 e o nível de satisfação avaliado foi 4,5 de 5, contando com mais de 6.800 funcionários de 157 jurisdições com treinamento, quase exclusivamente remotamente.

[6] OECD. Tax Transparency and Exchange of Information in Times of COVID-19 – 2020 Global Forum Annual Report. Paris: 2020. Disponível em https://www.oecd.org/tax/transparency/documents/global-forum-annual-report-2020.pdf