Planos diretores, o Supremo e uma avalanche de ilegalidades

JOTA.Info 2021-06-18

Para aqueles que acompanham a política municipal, não há outra pauta com maior centralidade do que as revisões de planos diretores das grandes capitais. O plano diretor é o instrumento básico da política urbana, estabelece critérios para o cumprimento da função social da propriedade e também projeta a cidade para o futuro.

As dificuldades de fazer cumprir os calendários de revisão, estabelecidos quando ninguém nem mesmo poderia sonhar com uma pandemia da proporção que estamos vivendo, ocupam o ainda pequeno debate da nossa esfera pública, voltada predominantemente – e com boas razões – para questões federais. Dois argumentos são mobilizados pela sociedade civil. Em primeiro lugar, a impossibilidade de levar adiante um processo participativo da envergadura do plano diretor em meio à pandemia. Em segundo, as dificuldades de saber o quanto os efeitos da pandemia nas cidades vão perdurar, impedindo que haja um planejamento sólido com base em tendências e dados.

Ainda que estas questões sejam relevantes, quero chamar atenção para um ponto cego no debate público. Vou pedir licença aos leitores para tratar de uma questão aparentemente menor de burocracia municipal e para falar apenas sobre São Paulo. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de outubro de 2020, sobre conselhos e sua atuação na elaboração e monitoramento de políticas urbanas, mudou o jogo. E provoca uma avalanche: a decisão do Supremo tem efeito dominó em São Paulo, atingindo em cheio o procedimento legal para a revisão do plano diretor.

Em 2004, a então prefeita Marta Suplicy sancionou a Lei n.13.881/2004, que criava o Conselho de Representantes. A ideia era que São Paulo tivesse conselhos de participação social descentralizados no território, a partir das subprefeituras, para acompanhar políticas públicas – como o plano de metas e o plano diretor – e monitorar a adequada aplicação do orçamento municipal, entre outras funções.

A lei regulamentou os artigos 54 e 55 da Lei Orgânica do Município, que havia previsto a instauração deste Conselho. O Ministério Público entendeu que a medida era inconstitucional. O principal argumento era o vício de iniciativa parlamentar, com interferência no campo de atuação do Executivo. Segundo o raciocínio, haveria violação do princípio da separação de poderes, uma vez que o artigo 61, §1º, II, “e” da Constituição de 1988 dispõe que a criação de órgãos da administração pública é de iniciativa privativa do chefe do Executivo. Neste caso, tínhamos um Conselho de Representantes criado pelo Legislativo.

A controvérsia chegou ao STF em 2010 e, nove anos depois, em 2019, foi reconhecida a repercussão geral do Recurso Extraordinário 626.946 de São Paulo, no Tema 1040. A decisão foi tomada em plenário virtual no ano passado, com placar acirrado. O voto do relator, o ministro Marco Aurélio Mello, foi acompanhado por quatro ministros. O voto divergente, do ministro Alexandre de Moraes, foi acompanhado por outros quatro. Diante da ausência do ministro Celso de Mello, o então presidente Toffoli desempatou em favor de Marco Aurélio.

Marco Aurélio entendeu não haver inconstitucionalidade na criação do conselho, principalmente por não se tratar de órgão integrante da administração direta ou autárquica. A Lei Orgânica inclui o Conselho de Representantes como parte da estrutura do Legislativo. Além disso, os cargos não são remunerados e nem preveem exercício de função pública em sentido estrito. A própria Lei Orgânica prevê, em seus artigos 14, XXI e 37, §1º, que cabe privativamente à Câmara disciplinar o funcionamento de conselhos. Um dos argumentos centrais do gira em torno da ideia de que conselhos encarnam a democracia participativa – ou o “espírito de 1988”, nas palavras de Marco Aurélio.

Assim, o STF decidiu que é constitucional a lei de iniciativa parlamentar que crie conselho de representantes da sociedade civil, integrante da estrutura do Poder Legislativo, com atribuição de acompanhar ações do Executivo. Para além do placar apertado, que grande controvérsia poderia estar pressuposta aqui?

Desde 2004, a instauração do Conselho de Representantes ficou suspensa em São Paulo, aguardando a Justiça. O conselho com participação territorial descentralizada nunca foi implementado nestes moldes. No entanto, uma proposta bastante parecida foi levada adiante na gestão do então prefeito Fernando Haddad. A lei n. 15.764/2013 criou os Conselhos Participativos Municipais (CPMs), um para cada subprefeitura da cidade, com representantes eleitos pela sociedade civil. As atribuições eram muito semelhantes às do Conselho de Representantes. Mas, desta vez, tratava-se de iniciativa do chefe do Executivo municipal. O reconhecimento da pendência judicial é expresso no art. 35, §2º: “Os Conselhos de que trata o caput subsistirão até que os Conselhos de Representantes de que tratam os arts. 54 e 55 da Lei Orgânica possam validamente existir e estarem em funcionamento”. Em outras palavras: Conselhos Participativos Municipais só existem para preencher o vazio do Conselho de Representantes, cuja legalidade estava em suspenso. Os CPMs já foram criados com prazo de validade.

Dezesseis anos depois da contestação de constitucionalidade, o STF reconheceu a legalidade do Conselho de Representantes. O que significa, simplesmente, que, desde novembro de 2020, não há mais base legal para que os CPMs possam existir. Como o prazo de validade expirou, o poder público deveria ter começado a planejar a transição para que não haja vazios de participação social.

E é aqui que entra a avalanche. Espero conseguir guiar os leitores em um labirinto de siglas e de arenas decisórias da política municipal paulistana. Hoje, há 28 CPMs em toda a cidade de São Paulo, com representantes eleitos pela população. Para além das atribuições de acompanhamento de políticas em seus territórios, o conjunto de CPMs ocupa 8 vagas em outro conselho, o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU). O CMPU, por sua vez, tem como atribuição fundamental monitorar as políticas urbanísticas, com especial destaque ao plano diretor, cuja revisão está prevista para este ano em São Paulo.

A discussão sobre a revisão do plano diretor está acirrada. Na última reunião do CMPU, conselheiros manifestaram que não havia paridade a sociedade civil e o poder público. A principal razão estava no fato de que as 8 vagas que vinham dos CPMs não haviam sido preenchidas pelo poder público. Nem mesmo o cronograma da revisão do plano diretor pode ser votado em razão deste problema de composição.

No dia 11 de junho, o poder público nomeou os 8 representantes dos CPMs ao CMPU (sim, são muitas siglas). O procedimento para a eleição está sendo contestado, tanto por conselheiros quanto pelo Ministério Público. Mas nada disso tem base na legalidade. O prazo de validade legal dos CPMs expirou em outubro de 2020, o que significa que precisarão ser desfeitos, em uma transição para os Conselhos de Representantes.

A solução não é simples nem fácil. Voltar ao Conselho de Representantes significa, também, discutir uma mudança substantiva: o arranjo anterior previa 18 vagas para a sociedade civil e outras 9 para os partidos políticos com representação na Câmara. Não se trata de simplesmente desfazer, mas de mudar critérios. Se a decisão do STF for levada a sério, cabe ao poder público e à sociedade civil iniciarem uma discussão pública sobre o melhor arranjo destes conselhos diante da experiência temporária dos CPMs, em que não havia representantes de partidos.

Diante da expiração do prazo de validade, como ficam as 8 cadeiras do CMPU? Sua composição também terá que ser alterada por lei. Dificilmente o CMPU poderá deliberar sobre qualquer tema de política urbana – o que inclui, principalmente, a revisão do plano diretor. Fechar os olhos para a decisão do Supremo é conduzir um processo eivado de ilegalidades, é começar a colocar tijolos para a construção de um edifício em meio a uma avalanche.

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