ICMS na base do PIS/Cofins: Limites da modulação dos efeitos pelo STF

JOTA.Info 2021-06-18

Nosso objetivo aqui é trazer uma sequência de artigos sobre o grande tema tributário da atualidade: a chamada “Tese do Século”, cujo julgamento foi concluído no ultimo dia 13 de maio. Pretendemos aprofundar questões teóricas decorrentes do referido julgamento, analisar casos hipotéticos com uma abordagem pragmática e multidisciplinar.

A conclusão do julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário – EdRE nº 574.706 dirimiu controvérsias relativas ao cálculo do imposto estadual a ser subtraído da base imponível das contribuições sociais sobre a receita bruta, bem como relativas à eficácia da decisão no tempo vis-à-vis o pedido de modulação dos efeitos apresentado pela Fazenda Nacional.

Quanto ao primeiro ponto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o montante de ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS é o imposto destacado em nota fiscal. Sobre a modulação dos efeitos, o julgado ascendeu intenso debate sobre as consequências da decisão sobre os processos futuros e em curso, bem como sobre os seus próprios fundamentos, tanto processuais quanto materiais. Fato é que o STF aderiu, por maioria qualificada, ao voto da Relatora, Min. Carmen Lúcia, no sentido de modular os efeitos do julgado para atribuir-lhe eficácia ex nunc a partir de 15 de março de 2017, data em que foi julgado o mérito do RE nº 574.706 e fixada a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para efeito de incidência do PIS e da COFINS”.

Isso significa que, ressalvadas as pretensões judiciais e administrativas propostas até o átimo referido, os contribuintes poderão pleitear a restituição ou a compensação apenas dos valores de PIS e COFINS posteriores a 15 de março de 2017, com a incorporação definitiva no erário público dos montantes recolhidos a maior anteriormente a essa data.

De tal decisão, que restringiu no tempo a eficácia da declaração da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, decorrem múltiplas análises e reflexões. É evidente a frustração dos contribuintes que têm no Supremo Tribunal Federal o guardião da Constituição e que são surpreendidos por uma decisão que reconhece e chancela, por razões técnicas, mas também econômico-financeiras, uma exigência tributária declarada inconstitucional.

A decisão do STF no julgamento dos EdRE nº 574.706 tutelou decerto a segurança jurídica do Fisco ao acatar parcialmente o pedido de modulação dos efeitos apresentado pela Fazenda Nacional. O que dizer da segurança jurídica do contribuinte e do próprio sistema jurídico, que encontra sua expressão máxima na força normativa da Constituição? Como construir o sentido desses valores, não apenas para analisar criticamente a decisão do STF, mas também para projetar a sua concretização nos casos movidos por cada contribuinte, a serem apreciados pelo Poder Judiciário? Como pode atuar o contribuinte para otimizar a sua segurança jurídica individual diante da decisão do STF? Essas são algumas questões que vamos tentar endereçar nos breves comentários que faremos sobre esse julgamento que está concentrando de tal forma a atenção do mercado, da comunidade jurídica em geral e da jurídico-tributária em especial neste primeiro semestre de 2021.

O conceito de segurança jurídica, como todo princípio, é dotado de elevada abstração e, consequentemente, indeterminação.

Para além da dimensão estritamente semântica, porém, o princípio da segurança jurídica adquire, de forma única, uma dimensão pragmática que é transversal ao sistema jurídico, porque toca a própria função do Direito como subsistema social. Como engenhosamente demonstrou Niklas Luhmann, a função que diferencia o sistema jurídico do ambiente social é a manutenção e a estabilização de expectativas normativas[i]. Que o Direito se dispõe a manter expectativas mesmo diante de desapontamentos significa que o sistema jurídico não se rende à ditadura do fato consumado, colocando em operação seu instrumental simbólico e coercitivo para conduzir as interações sociais na direção das prescrições normativas.

A segurança jurídica se apresenta como verdadeiro sobreprincípio, operando não apenas para efetivar os valores de previsibilidade, estabilidade e certeza nas diversas vertentes da conduta humana e sua regulação, mas também para assegurar a concretização, ao longo de todo o ordenamento, dos valores e princípios constitucionais, que, no processo de construção permanente do sentido do Direito, na sua criação e na sua aplicação, busca projetar. Nas palavras de Regina Helena Costa, a segurança jurídica não é só direito fundamental, mas sobretudo uma garantia ao exercício de outros direitos fundamentais[ii].

Das múltiplas possibilidades de construção e aplicação do vetor da segurança jurídica, aquela prestigiada pelo STF no julgamento dos EdRE nº 574.706 ressaltou uma dimensão dinâmica ou diacrônica e formal ou processual do princípio. De fato, ao adotar, nos termos da Min. Relatora, uma “modulação dos efeitos de julgamento por modificação na orientação jurisprudencial dominante”, o tribunal objetivou mitigar a ruptura de expectativas consolidadas ao longo do tempo (aspecto dinâmico), a partir de uma efetivação do princípio que parte de critério que não é substancial, de concretização de um conteúdo específico da própria Constituição, mas sim processual, de mudança na atuação do órgão jurisdicional (aspecto formal).

Essa dimensão da segurança jurídica decorrente da atividade do Poder Judiciário foi incorporada, para o controle difuso de constitucionalidade, no art. 927, §3º do Código de Processo Civil de 2015. O dispositivo prevê que, “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Reconhecer o status constitucional da segurança jurídica utilizada como fundamento para a modulação dos efeitos empreendida pelo STF no julgamento dos EdRE nº 574.706 significa adotar a Constituição como fundamento para a restrição de normas constitucionais, quiçá sua violação. Como registrou Barroso em parecer elaborado para o RE nº 377.457, a “modulação implica um congelamento parcial da eficácia da norma constitucional violada, que deixa de produzir um de seus efeitos normais por algum tempo (…). Trata-se, portanto, de medida grave”. Aplicar a segurança jurídica como fundamento para reprimir outro princípio ou norma constitucional não é algo trivial e requer técnica hermenêutica específica. Mais uma vez, nas palavras de Barroso: “está-se diante de uma ponderação entre a norma constitucional violada pela lei ou ato normativo declarado inválido e a segurança jurídica[iii].

Ao optar pela tutela da dimensão formal da segurança jurídica (confiança e estabilidade da jurisprudência dominante) em detrimento da dimensão substancial deste mesmo princípio (força normativa da Constituição), o STF tomou uma decisão interpretativa, de fato, grave, de grande ressonância no ordenamento. Aqui a decisão pela modulação dos efeitos no leading case da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS fica aberta ao escrutínio, tanto da comunidade jurídica em geral, quanto das partes em processos que envolvam a matéria: a constatação do risco à segurança jurídica pela modificação jurisprudencial, para motivar os efeitos ex nunc do julgado, deve ponderar os riscos contrapostos, de comprometimento à força normativa da Constituição pela chancela de uma lei inconstitucional.

A ponderação, a que se refere o Min. Barroso em seu já citado parecer, nada mais é, como se sabe, do que técnica empregada dentro de um juízo de proporcionalidade, que é o método hermenêutico a ser empregado no controle das intervenções estatais promovidas em direitos fundamentais, princípios e normas constitucionais em geral. O postulado da proporcionalidade, à luz do quadro de referência que nos legou, dentre outros, Robert Alexy, opera aplicando técnica de ponderação e sopesamento para harmonizar os vetores constitucionais, que, por sua complexa natureza, estão em estado de conflito latente e permanente[iv].

A opção pela segurança jurídica formal compromete a segurança jurídica substancial. A tutela da realidade consumada diante de alteração da jurisprudência dominante, que baseia a modulação de efeitos, implica vergar a Constituição nos princípios tripudiados pelo ato normativo declarado inconstitucional, princípios estes cuja efetividade o postulado da segurança jurídica também visa assegurar.

Essa constatação, que se sustenta em todos os campos de incidência do princípio da segurança jurídica, aplica-se de forma especial no direito tributário. Trata-se de ramo do Direito que surgiu e se consolidou a partir de um arcabouço normativo de proteção do direito de propriedade em face da soberania tributária do Estado. Estar a segurança jurídica incrustada na raison d’être e na racionalidade do direito tributário faz, portanto, com que a aplicação da modulação de efeitos ganhe contornos complexos e específicos em matéria tributária, em relação à qual o princípio da segurança jurídica se apresenta não apenas via valores e fins abstratos, mas também via normas que, mesmo na Constituição, ganham sentido e eficácia concreta e definida.

É nesse contexto que se deve proceder à ponderação entre a segurança jurídica formal abraçada pelo STF no julgamento dos EdRE nº 574.706 e os princípios constitucionais comprometidos pela mesma decisão, especialmente aqueles derivados da segurança jurídica em sua dimensão material.

A tutela da segurança jurídica formal, manifestada na estabilidade da jurisprudência dominante e no estado de confiança dela decorrente, é garantia que está aberta a todos os litigantes. Daí que, em princípio, como afirmou a Relatora Min. Carmen Lúcia no caso em análise, a modulação de efeitos também pode ser aplicada aos julgados em que a modificação na orientação jurisprudencial ocorra em desfavor do Estado. Evidência disso é não apenas a jurisprudência do próprio STF sobre a modulação de efeitos, mas também o microssistema normativo dedicado, no Código Fux, à resolução de casos repetitivos, à uniformização e à estabilização das decisões judiciais, que não distingue entre particulares e o Estado, tampouco impõe a este qualquer restrição.

Diferente se dá com a segurança jurídica substancial em matéria tributária. Os princípios constitucionais tributários de proteção à segurança são voltados sistematicamente à garantia do contribuinte contra o exercício do poder tributário do Estado. Desde o princípo da segurança jurídica em nível abstrato, passando por vetores dele derivados, como a legalidade tributária, a irretroatividade tributária, a anterioridade tributária, a rígida repartição de competências tributárias e a capacidade contributiva, opera a segurança jurídica em matéria tributária para assegurar que o exercício do poder impositivo se dê dentro dos parâmetros do Estado de Direito, não apenas formal, mas também e principalmente material. Daí porque, afirma Humberto Ávila, a segurança jurídica em matéria tributária tem como destinatário o contribuinte, nunca o Estado, que, investido do poder tributante e emissor das normas impositivas, não se coloca aí como titular da confiança tutelada pelo Direito, mas sim fonte da insegurança que as normas constitucionais visam mitigar[v].

Falar, portanto, em modulação de efeitos em matéria tributária para proteção à segurança jurídica implica ponderar em que medida a tutela da confiança gerada a partir da jurisprudência dominante pode justificar a violação dos princípios constitucionais tributários promovida pela norma declarada inconstitucional. O ataque que a modulação dos efeitos desfere sobre os princípios constitucionais tributários deve ser adequado, necessário e proporcional (em sentido estrito) para produzir a tutela da segurança jurídica manifestada na jurisprudência dominante.

Poderíamos discorrer largamente sobre se a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc é adequada para tutelar a confiança nas normas tributárias ou se, do contrário, induz o Estado a exigir tributos reconhecidamente inconstitucionais. Poderíamos analisar se a modulação dos efeitos é necessária para proteger as expectativas de arrecadação do Fisco consolidadas ao longo dos anos ou se haveria medidas alternativas menos gravosas, como o contingenciamento dos recursos arrecadados, que permitissem incorporar o resultado do julgamento no planejamento financeiro do erário. E poderíamos, por fim, ponderar se a proteção da segurança do Estado quanto à legitimidade da cobrança do PIS e da COFINS mediante a inclusão do ICMS na sua base de cálculo é tão ou mais relevante do que a gravidade do ataque à segurança do contribuinte expressa nos princípios constitucionais tributários violados pela tributação inconstitucional. Esse não é, porém, o objetivo desse texto.

Nem nos parece necessário. O juízo de proporcionalidade é exercício interpretativo que supõe a contingência de construir as diversas possibilidades de sentido para normas que são inerentemente complexas e potencialmente antagônicas. Concretizá-las pressupõe otimizar a sua aplicação selecionando as possibilidades interpretativas que mais atendam ao sentido da unidade da Constituição, endereçando o conflito através da solução dotada da melhor relação custo-benefício para a força normativa da Lei Maior. Para além do sentido abstrato da segurança jurídica, porém, há diversas manifestações do princípio que encontram na Constituição Federal sentido específico e determinado para a sua aplicação. A rigidez constitucional aliada à sua exaustividade em matéria tributária, que compõem uma realidade tipicamente brasileira, traz uma constelação em que diversas manifestações do princípio da segurança jurídica já encontram seu sentido mínimo objetivado no texto constitucional.

Normas como a anterioridade tributária, a irretroatividade tributária, a legalidade tributária e a repartição material de competências tributárias detêm decerto um nível de concretude que impõe ao intérprete um conteúdo específico. Quando direitos fundamentais são protegidos por normas constitucionais de eficácia plena, o conteúdo essencial do direito fundamental corresponde ao próprio conteúdo da norma referida, cuja aplicação não admite então qualquer restrição fora das hipóteses previstas na Constituição[vi].

A aplicação do teste de proporcionalidade, acompanhada da identificação e da proteção do núcleo essencial do princípio constitucional em jogo, para aferir a constitucionalidade da modulação dos efeitos na forma determinada no RE 574.706, leva à conclusão de que a proteção da segurança jurídica formal expressada na estabilidade da jurisprudência dominante não é hábil a legitimar a violação das competências tributárias nos moldes incorridos por via da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS. Pode-se afirmar que qualquer investida contra a legalidade e a materialidade de competências esbarra no núcleo essencial do princípio da segurança jurídica em matéria tributária.

A decisão do STF no EdRE nº 574.706, como se sabe, excepcionou da modulação dos efeitos apenas os contribuintes que apresentaram pleito judicial ou administrativo até a data do julgamento do mérito do recurso, ou seja, até 15 de março de 2017. Tal ressalva, malgrado baseada também no princípio da segurança jurídica, não mitiga, porém, o prejuízo daqueles que, conforme as estatísticas oficiais, compõem a maior parte dos contribuintes, formada por quem ajuizou sua pretensão após essa data ou ainda irá fazê-lo.

Cabe aos contribuintes potencialmente atingidos pela modulação dos efeitos no RE nº 574.706 utilizar-se de todos os meios jurídicos para confrontar tal decisão, que, lembremos, foi proferida em sede de controle difuso e, portanto, ainda haverá de repercutir, ou não, nos processos ajuizados em todo o país. Nos casos individuais, isso significa invocar todos os argumentos jurídicos em prol da tutela dos direitos fundamentais do contribuinte, inclusive a própria segurança jurídica, nos termos aqui expostos. Nos casos coletivos, abre-se ainda a possibilidade de aderir a entidade de classe que tenha ajuizado, antes de 15 de março de 2017, pretensão com esse objeto.

É combatendo a tributação inconstitucional que evitaremos que ela passe de um fato consumado e se torne um estado consolidado no ordenamento jurídico brasileiro. Só assim asseguraremos que a segurança jurídica cumpra efetivamente o seu papel, que em matéria tributária é de garantir os direitos fundamentais e de assegurar a máxima efetividade da Constituição Federal.

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[i] LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2013. p. 134

[ii] COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 62.

[iii] BARROSO, Luís Roberto. Modulação dos efeitos temporais de decisão que altera jurisprudência consolidada. Quórum de deliberação. Brasília, 2008.

[iv] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015, p. 257. Cf. Ainda ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 42 e ss. Para a aplicação do princípio da proporcionalidade no direito tributário, cf. TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: RT, 2012. p. 636 e ss.

[v] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 158.

[vi] Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado, v. 4, p. 46, 2006.