A qual juízo cabe julgar as causas sobre registro e identificação civil do imigrante?

JOTA.Info 2021-08-02

A Lei de Migração, Lei nº 13.445/2017, inova de forma ampla em relação ao Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/1980, pois, expressamente, estabelece como pilares da política migratória brasileira diversos princípios e diretrizes que se harmonizam aos direitos humanos e direitos fundamentais constituídos pela Carta Constitucional de 1988.

Essa nova ótica da política migratória, porém, não retira a obrigação de cuidado que deve ter a União em relação à organização, manutenção e gestão dos processos de identificação civil do imigrante, que, de acordo com a legislação de migração atual, caberá à Polícia Federal. É importante que não se confunda com a organização, manutenção e gestão dos processos de identificação civil dos detentores de vistos diplomáticos, oficial e de cortesia, que ficará a cargo do Ministério das Relações Exteriores. No que diz respeito ao imigrante, não raro surgem situações em que se requer alterações de assentamento ou retificação do nome do imigrante estrangeiro. Nesses casos, a própria legislação traz procedimentos que deverão correr no âmbito da Polícia Federal, já que este é a autoridade de migração competente para gerir essas informações, conforme dispõe o art. 58, do regulamento da Lei de Migração, o Decreto nº 9.199/2017.

Há, porém, situações que acabam sendo submetidas ao crivo do Poder Judiciário. A partir daí surge o seguinte questionamento: qual seria o juízo competente para analisar os processos judiciais atinentes ao registro civil do migrante? À primeira vista, a solução parece fácil, concluindo-se pela competência da Justiça dos Estados. Observando com mais cuidado, contudo, veremos que a questão demanda uma análise mais aprofundada para que se chegue a uma resposta adequada e coerente com a legislação nacional.

Em primeiro lugar, é importante analisar cuidadosamente o conceito de “registros públicos”, ou seja, quais os assentamentos que podem ser assim denominados de acordo com a legislação brasileira.

A Lei nº 6.105, de 31 de dezembro de 1973, a Lei de Registros Públicos, estabelece no art. 1º, § 1º o rol de registros a serem considerados como tal, sendo estes (i) o registro civil de pessoas naturais; (ii) o registro civil de pessoas jurídicas; (iii) o registro de títulos e documentos; e (iv) o registro de imóveis, valendo destacar que esses atos são de competência de serventuários privativos nomeados de acordo com o estabelecido na Lei de Organização Administrativa e Judiciária do Distrito Federal e dos Territórios e nas Resoluções sobre a Divisão e Organização Judiciária dos Estados, nos termos do art. 2º da referida norma.

Já o art. 1º, §2º, do mesmo diploma, estabelece que os demais registros serão regidos por leis próprias (há outras formas de registros, como de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves, os registros de armas, os registros de comércio – semelhantes aos de pessoas jurídicas –, de propriedade intelectual, dentre outros).

Regra geral, cabe ao Juiz de Registros Públicos, Justiça Estadual processar e julgar as questões contenciosas e administrativas que se refiram diretamente a atos de registros públicos e notariais em si mesmos. Ou seja, estão compreendidos na competência da Justiça Estadual, de forma geral, o julgamento dos feitos relativos aos Registros Públicos, assim compreendidos o de registro civil de pessoas naturais, o de registro civil de pessoas jurídicas, o de registro de títulos e documentos e o de registro de imóveis, nos termos do artigo 1º, §1º, da Lei nº 6.015/1973.

Ao contrário do que ocorre com os brasileiros, que têm assentamento em órgão de registro público civil, em que se aplica a Lei nº 6.015/1973, a matéria referente à identificação civil do migrante será regida por legislação própria, qual seja, a Lei nº 13.445/2017, a Lei de Migração, regulamentada pelo Decreto nº 9.199/2017.

Os registros de imigrantes, portanto, não devem ser qualificados como “registros públicos”, na acepção geral da expressão. Além disso, qualquer demanda que cuide desse assunto, por certo, atrairá o interesse jurídico da União no acompanhamento das ações relativas ao tema, em razão do seu dever de cautela e de proteção às informações, por questões de soberania, segurança, integridade e fidedignidade registral (migratório). Diante dessas observações, questiona-se sobre qual seria o juízo competente para processar e julgar processos judiciais referentes ao registro e identificação civil do imigrante.

O Poder Judiciário é dividido entre Justiça comum e justiça especializada. O conceito de Justiça Comum é extraído por exclusão, ou seja, será toda a matéria que não seja tratada pela Justiça especializada.

A Justiça comum é composta pela Justiça Federal, cujas competências estão previstas no art. 109, da Constituição, e pela Justiça Estadual, que tem competência residual, ou seja, será competente para tratar de todos os processos judiciais que não sejam atribuição da Justiça Especializada ou mesmo da Justiça Federal. Por essa razão, o regramento da Justiça Estadual está previsto nas Constituições de cada um dos estados.

Em relação ao curso de processos judiciais sobre o registro do imigrante, é necessário destacar que não há normativo apto a determinar o processamento perante o juízo estadual, especificamente. O artigo 76, do Decreto nº 9.199/2017, norma de hierarquia de regulamento, determina que as modificações do nome do imigrante serão feitas após decisão judicial, porém não esclarece perante qual juízo, se estadual ou federal.

Diante disso, a interpretação sistemática parece adequada, de modo que a questão a ser considerada é a existência de interesse jurídico da União a ser avaliada pela Justiça Federal, de acordo com o que estabelece a Súmula 150/STJ.[1] Uma vez verificado o interesse jurídico da União no feito, seja ele em procedimento de natureza contenciosa ou voluntária, o trâmite perante a Justiça Federal se impõe.

Sobre o tema ora tratado, conquanto tenha sido abordado por juízos estaduais e federais em casos concretos, não se pode dizer que há jurisprudência estabilizada nos tribunais nacionais para direcionar a competência a um ou outro juízo.

Em precedente que teve como pano de fundo o requerimento para alteração de informações no Registro Nacional Migratório, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no CC nº 163.059/SP foi proferida decisão monocrática em 16.04.2019, no sentido de conhecer do conflito para declarar competente o Juízo de Direito da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo.

Deve-se observar, no entanto, que para fundamentar a decisão, foram indicados julgados que não compartilhavam da mesma premissa fática, atendo-se à similaridade entre situações que tinham como denominador comum a jurisdição voluntária. Em razão disso, e somente por tais fundamentos declarados, reconheceu-se a Justiça Estadual como competente para processamento do feito. Nesse caso específico a União informou que não haveria interesse jurídico no deslinde do feito, o que determinou a conclusão pelo afastamento da competência do juízo federal para julgamento da causa.

Ainda que o processo judicial a ser processado tenha natureza de jurisdição voluntária, esta situação, por si só, não teria o condão de afastar o interesse da União em determinadas situações. É o que acontece, por exemplo, nos casos de opção de nacionalidade, que, diante do claro interesse da União no feito, é processado perante a Justiça Federal, como indica o art. 213, § 2º do Decreto nº 9.199/2017.

De outro lado, há precedente recente, firmado à luz da Constituição Federal de 1988, nos autos do Conflito de Competência nº 154. 841/RR, que, em decisão foi publicada em 27.06.2019, conheceu do conflito e declarou competente o Juízo Federal, esclarecendo que “enquanto procedimento de jurisdição voluntária, remanesce a competência da Justiça Comum Estadual, perante a qual o pedido de retificação de registro foi acertadamente formulado. No entanto, a impugnação apresentada pelo IBAMA fez nascer a pretensão resistida e com o surgimento da lide, a remessa das partes às vias de jurisdição contenciosa atraiu, consequentemente, a competência absoluta da Justiça Federal, porque impugnante autarquia federal de regime especial IBAMA, conforme dispõe o art. 109, inc. I, da CF.”

Como consequência, o mais razoável é que, diante da ausência de legislação que clara e expressamente defina o tema como matéria que deve correr perante a Justiça Estadual, demonstrado o interesse jurídico da União no feito, e considerando a orientação da Súmula 150/STJ, outro não deve ser o juízo competente para processar e julgar os feitos sobre o registro e identificação civil do imigrante, senão a Justiça Federal.

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[1] Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas.