Suspensão de segurança no processo penal

JOTA.Info 2023-06-10

Em 15 de março do corrente ano, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no SS 3.361, admitiu, por 7 votos a 5, a utilização da suspensão de segurança, em caráter excepcional, no processo penal. Os argumentos contrários à concessão da segurança na área criminal focavam na ausência de previsão na Lei 8.437/1992 e no Regimento Interno do tribunal. Alegou-se também que a suspensão é de caráter eminentemente político e, desse modo, deve ser concedida sempre em favor do Estado. Ocorre que no processo penal o Estado é representado pela acusação, sendo, por conseguinte, inadmissível a utilização do citado instrumento[1].

No caso citado, uma empresa de medicina diagnóstica, em sede de mandado de segurança criminal, teve a segurança deferida por desembargadora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), para poder levantar os valores que estavam bloqueados no bojo de uma ação penal envolvendo desvio de recursos públicos.

Iniciando a análise da questão em termos normativos, é possível constatar que o Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades (AgReg na SL 972/SP; SL 907; SL 992/DF; SL 1.395/SP; SL 1.504 MC/RS), já havia admitido a suspensão da segurança em matéria criminal em situações excepcionais. No mesmo sentido, antes da decisão discutida neste momento, o STJ havia admitido, em tese, a possibilidade de suspensão da segurança em matéria criminal em situações excepcionais, seguindo entendimento da Corte Suprema (AgRg na SLS 2.360/RJ).

No campo legal, a suspensão da segurança está prevista no art. 4 da Lei 4.437/1992, em seu caput, ao estabelecer que “compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. O referido dispositivo, em tese, é direcionado apenas a questões de natureza cível.

A suspensão de segurança também está prevista no mesmo art. 15, caput, da Lei 12.016/2009 (lei do mandado de segurança), ao estabelecer: “Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição”.

O referido diploma legal, fundamento normativo do mandado de segurança, inclusive em matéria criminal, não restringe a utilização da suspensão da segurança às decisões de caráter cível, sendo, portanto, em termos normativos, cabível a suspensão da segurança em matéria criminal. Ora, se cabe mandado de segurança criminal, não é possível a suspensão da decisão proferida? Essa decisão não pode causar dano? A decisão/discussão criminal vale menos do que a cível?

Em termos axiológico e teleológico, o entendimento não pode ser diferente.

A suspensão da segurança possui como objetivo máximo “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Busca tutelar o interesse público, que, na seara criminal, envolve o interesse público primário. Explico.

Com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público assume o relevante papel jurídico de defesa da ordem jurídica e do regime democrático[2], delimitado por meio das atribuições elencadas no art. 129 da Carta Suprema[3], entre as quais está a de caráter criminal. Entre essas atribuições está o dever do Ministério Público de atuar em defesa do interesse público.

Deve-se ter em mente que todo o atuar estatal deve se pautar pelo interesse público, “conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.[4], especialmente o interesse público primário ou público propriamente dito, que corresponde aos interesses que não se encontram no espectro dos interesses privados do Estado (interesse público secundário), englobando, em verdade, os interesses da sociedade[5].

O interesse público primário é a personificação dos interesses da sociedade, entre os quais está a persecução penal, titularizada em sua plenitude pelo Ministério Público. Por essa razão, esse interesse é considerado o interesse público propriamente dito e faz parte do “patrimônio da sociedade”. Já o interesse público secundário engloba interesses “particulares” do Estado, que, em sua essência, não se diferencia dos interesses individuais dos particulares, assim como integram o patrimônio do Estado.

A busca pela proteção jurídica relacionado à persecução penal, interesse público primário, sempre será de atribuição do Ministério Público. Todas as vezes que ocorrer uma decisão judicial, em matéria criminal, que atinja a persecução penal, como é o caso de decisões em mandado de segurança criminal (caso em discussão), caberá exclusivamente ao Ministério Público atuar para restabelecer a ordem. Essa atuação se dará por meio de todos os instrumentos jurídicos vigentes, entre os quais está a suspensão de segurança.

Outrossim, o objetivo de “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” é uno. A lesão aos referidos bens públicos é una, independente de qual esfera de proteção incida. Uma mesma lesão pode gerar repercussões jurídicas diversas, mas ela continuará sendo una. Não se pode confundir o dano, evento antecedente, com a repercussão jurídica (cível, administrativa, criminal etc.), evento consequente. Independente da repercussão jurídica, todas as lesões ao interesse público devem ser evitadas por meio de todos os instrumentos jurídicos existentes. Por tal razão, a legislação inerente ao mandado de segurança, na qual consta a suspensão da segurança, não diferencia a proteção ao mandado de segurança cível e ao mandado de segurança criminal.

A repercussão jurídica, repita-se, é uma situação no campo do Direito totalmente diversa do enquadramento de um evento como dano a um interesse público. A responsabilidade jurídica (repercussão) é estabelecida no ordenamento jurídico de acordo com o grau de lesão ao bem jurídico tutelado, podendo englobar, em muitos casos, o campo cível, administrativo, criminal etc. O dano é o mesmo, o grau de lesão é que será diferente.

A proteção por meio de instrumentos como a suspensão de segurança é ainda mais premente no campo criminal, em razão de o Direito Penal ser responsável pela reponsabilidade jurídica resultante da maior lesão ao bem jurídico tutelado. O desvalor do Direito Penal, a considerar uma situação como criminal, é muito maior do que o das demais esferas de proteção, pois leva em consideração o desvalor do resultado (ultima ratio), decorrente de sua base consequencialista[6].


[1] https://www.conjur.com.br/2023-mar-15/cabe-suspensao-seguranca-decisao-processo-criminal

[2] MAZZILI, Hugo Nigro. O Ministério Público e a defesa do regime democrático. Revista de Informação Legislativa. A. 35, N. 138, ABR./JUN. 1998, p. 65-73.

[3] “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; (…)”

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 58.

[5] Nesse sentido, Hachem afirma: “(i) o interesse público não é algo antagônico aos interesses dos indivíduos, e isso não porque ele seja idêntico a eles, mas por ser formado por um de seus aspectos (dimensão pública, acima explicada); (ii) o interesse público não se confunde com o interesse do aparato estatal, do Estado enquanto pessoa jurídica, pois esse possui, igualmente, uma dimensão pública e uma dimensão particular.” HACHEM, Daniel Wunder. A dupla noção de interesse público em Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. v. 11, n. 44 (2011), p. 59-110.

[6] SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. Eficiência e Direito Penal. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro. Barueri: Manoele, 2004.