Qual o papel da Justiça Militar no Estado democrático de Direito?

JOTA.Info 2024-03-28

No próximo 1º de abril, o golpe militar de 1964 e a Justiça Militar completam, respectivamente, 60 e 216 anos. Nessa data, em 1808, após a chegada da família real portuguesa no Brasil, foi criado o Conselho Supremo Militar e de Justiça. Como ocorre com tantas outras organizações nacionais (especialmente jurídicas e militares), a data da fundação da instituição no período colonial-monárquico ainda é celebrada — a despeito tanto da Proclamação da República em 1889 quanto da promulgação da Constituição Federal de 1988.

As ocasiões citadas, acompanhadas pela atuação recente do Superior Tribunal Militar (STM), nos oferecem uma valiosa oportunidade para refletir sobre o papel da justiça militar, suas pretensões e desafios, no Estado Democrático de Direito brasileiro. Neste artigo, com base em uma análise histórica e contemporânea dessas cortes, desenvolvemos a reflexão com foco especial na Justiça Militar da União. Um debate que ganha relevância especial em razão da constante tensão em relação ao controle civil das instituições militares e o recente aumento da participação militar na política nacional.

Um breve panorama histórico da Justiça Militar brasileira

A justiça militar foi um dos primeiros ramos judiciais na história burocrático-institucional do Brasil. A origem da JM remete a reformas estruturais promovida pela Corte Portuguesa antes da transferência da família real para o Brasil. Os portugueses seguiam o exemplo de outros países europeus, que buscavam disciplinar e profissionalizar suas corporações militares. Na colônia, a reforma era tida como fundamental, pela necessidade de submeter regimentos coloniais à hierarquia dos oficiais vindos da metrópole. 

Com a transferência da Corte para o Brasil, em paralelo a uma série de reestruturações político-administrativas, houve a continuidade dessa implementação, culminando no citado estabelecimento do Conselho Supremo Militar e de Justiça. Desde o período colonial, a falta de normas específicas acerca da jurisdição dos tribunais militares já permitia que o órgão fosse acionado também para o julgamento de civis—uma opção política de controle da ordem pública, mantida durante o Império.

Após a Proclamação da República, a justiça militar se manteve em funcionamento, existindo em todas as constituições do regime republicano brasileiro. A continuidade da estrutura militar herdada do Império permitiu que tribunais militares continuassem julgando civis. Posteriormente, visando controlar a “anarquia” e a “desordem”, houve uma ampliação dessa jurisdição, garantindo que a instituição julgasse “‘militarmente’ aqueles contrários à República”. 

Em 1891, a primeira constituição republicana estabelecia o Supremo Tribunal Militar, alterando formalmente a estrutura imperial da justiça militar. Entretanto, no início do período republicano, a estrutura da JM se mantinha vinculada à garantia da hierarquia e à repressão de movimentos de contestação política, assim como havia ocorrido anteriormente durante o período colonial e o Império. Por todo o período, os julgamentos da instituição tinham como objeto crimes militares e não somente aqueles perpetrados por militares. 

A partir de 1930, durante o Governo Vargas, a competência da justiça militar foi novamente expandida, sob o fundamento de preservação da ordem pública e da segurança nacional. Posteriormente, com a Constituição de 1934, houve a integração dos juízes e tribunais militares ao Poder Judiciário. A estrutura passou a contar com um desenho constitucional mais detalhado, e com novas possibilidades de extensão do foro militar aos civis.

A publicação do Código de Justiça Militar, em 1938, consolidou a autoridade e o alcance da justiça militar, conferindo-lhe poderes abrangentes para julgar não apenas questões relacionadas à disciplina e à conduta militar, mas também crimes contra a segurança nacional e outros delitos políticos. A ampliação e a concentração de competências conferiram à justiça militar um papel crucial na repressão aos dissidentes políticos e na manutenção da ordem autoritária estabelecida.

Na Constituição de 1946, grande parte da competência da justiça militar foi mantida, garantindo a jurisdição das cortes sobre civis que cometessem crimes militares. Além disso, sua estrutura foi ampliada, o nome do Supremo Tribunal Militar foi alterado para o atual Superior Tribunal Militar e houve a regulamentação da organização dos tribunais militares nos Estados.

Com o golpe militar de 1964 e a instauração do regime, a influência da justiça militar se intensificou ainda mais, tornando-se (assim como na Era Vargas) uma ferramenta essencial para a perseguição e punição de opositores políticos. Nesse momento, a “Justiça do Regime” consolidou-se como um instrumento de controle político e social do Estado autoritário sobre a sociedade civil, sob o argumento da proteção da segurança nacional. 

Com o fim da ditadura, a Constituição de 1988 manteve a estrutura da justiça militar no regime autoritário, frustrando aspirações de reformas institucionais almejadas durante o período de transição democrática. Agravando a frustração, o texto constitucional permitiu a continuidade da aplicação da jurisdição militar a civis. Estruturalmente, a Constituição preservou o modelo híbrido entre as Forças Armadas e o Poder Judiciário, promovendo uma interseção entre os campos e seus valores, em benefício da manutenção dos privilégios militares. 

De tal forma, ao longo de sua existência e de diversos regimes políticos, a justiça militar teve como funções primordiais: a manutenção da disciplina e hierarquia nas Forças e a garantia da “ordem pública” (a partir de uma perspectiva militarizada), mantendo de forma contínua os privilégios militares—em especial do oficialato.

Esse panorama histórico contrasta a lógica brasileira com sistemas de justiça militar de todo o mundo. Notadamente, o país destoa da tendência que ocorreu com os processos de transição democrática em outras nações latino-americanas, nas quais a justiça militar foi restrita à estrutura e aos papeis comumente atribuídos a ela ou completamente eliminada, como parte dos esforços para fortalecer o Estado Democrático de Direito. 

A Justiça Militar e ‘a segurança necessária ao fiel cumprimento das missões’

No ano passado, durante a comemoração do 215º aniversário do Superior Tribunal Militar (STM), o Presidente da Corte destacou em seu discurso a função da instituição de garantir às Forças Armadas “a segurança necessária ao fiel cumprimento das missões”. O Ministro-Presidente citou também, entre as funções da Corte, a atribuição de garantir a disciplina dos membros das “organizações castrenses” e os “meios necessários” para que esses sirvam à pátria.

Observamos no discurso do Ministro-Presidente, um alto grau de continuidade entre os valores e pretensões da justiça militar, que leva a instituição ao seguinte impasse entre passado e futuro. Por um lado, a justiça militar se mantém fiel a tradições e valores que remontam a um passado distante, como ilustrado tanto pela fala do Ministro quanto pela própria continuidade da celebração da data colonial de sua instauração. Por outro, esse compromisso intenso com o passado se torna um obstáculo no esforço que o próprio sistema faz para se manter relevante em um contexto que demanda uma atuação completamente diversa da executada até então.

Evidentemente, a citada manutenção da estrutura das cortes militares foi fruto da atuação constante desses durante a redemocratização. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, os militares contaram com forte lobby, facilitado por sua presença no cenário político, para manter os privilégios conquistados durante o período autoritário. Durante o processo constituinte, as Forças se mobilizaram amplamente para evitar que houvesse a possibilidade de um suposto “revanchismo” contra os atos que perpetraram durante o regime autoritário. O resultado bem-sucedido dessa pressão corrobora a influência militar no texto constitucional.

A continuidade do legado autoritário, a despeito de relevantes disputas durante o processo constituinte, contribuiu, inclusive, para crescente militarização da política, definida como o “processo de adoção e uso de modelos militares, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal em atividades de natureza civil, dentre elas a segurança pública”. De tal forma, é possível afirmar que tanto a justiça militar quanto, de forma mais ampla, as Forças se tornaram vítimas de seu próprio esforço para garantir a manutenção de seus privilégios—seja na atual incapacidade de gerir as atribuições conquistadas ou na crescente degradação de sua imagem pública.

Com o objetivo explícito de garantir “a segurança necessária ao fiel cumprimento das missões” e implícito de manter os privilégios (inclusive a blindagem) das cúpulas militares, a estrutura da justiça militar leva a prejuízos que afetam desde a manutenção da disciplina e hierarquia à garantia da segurança nacional. A absolvição do então capitão do Exército Jair Messias Bolsonaro pelo STM, em 1988, e suas consequências tanto para as Forças quanto para o cenário político nacional, parece ilustrar bem a extensão dos danos causados pela manutenção desse legado militarizado.

Nesse sentido, alterações legislativas recentes, que ampliaram novamente a competência da justiça militar, além do crescente emprego das Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e da Ordem, agravam ainda mais o panorama. Em sentido contrário ao esperando diante dessas tendências, não foi possível observar um aumento significativo da produtividade das cortes militares, corroborando o diagnóstico apresentado.

A falta de formação jurídica dos membros das cortes militares atrelada à preeminência da hierarquia e disciplina sobre a independência necessária aos tribunais, também contribuem para que a justiça militar permaneça atrelada ao passado. Como previsível consequência, não é raro que o STM absolva ou reduza a pena de militares de forma controversa, como no caso do então capitão Bolsonaro em 1988 e, mais recentemente, na redução da pena—em quase 10 vezes—dos militares envolvidos na morte de Evaldo Rosa dos Santos. Adicionalmente, a Corte raramente pune oficiais, especialmente os de alta patente—na última década, o STM puniu apenas um general e arquivo mais de 20 investigações sobre militares de alta patente.

O panorama se torna ainda mais complexo se analisarmos os dados da atuação da justiça militar. Com base em dados das cortes militares, ainda em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já afirmava que “a Justiça Militar conta com uma estrutura relativamente grande, se levarmos em consideração que a carga de trabalho está muito aquém daquela verificada nos outros ramos da justiça.” 

Após uma década, é possível afirmar que o diagnóstico do CNJ permanece válido. Em 2023, a Justiça Militar da União teve uma despesa de R$599.158.402, apesar de contar com apenas 54 magistrados (em sua maioria, militares sem formação jurídica)—uma estrutura dispendiosa e ineficiente. Por fim, é necessário ressaltar que há evidências de que uma parcela significativa de atos que poderiam ser classificados como crimes militares não chega a ser denunciada, possivelmente agravando ainda mais o diagnóstico de ineficiência do sistema.

De tal forma, se a análise sobre a justiça militar se restringisse apenas ao custo-benefício da instituição, já seria difícil justificar sua existência. Mais do que isso, e de forma contrária às críticas habituais de militares e políticos-militares à justiça comum, é possível afirmar que—quando se trata de julgar membros das Forças—a justiça militar (além de dispendiosa e ineficiente) é a mais “garantista” e “tolerante” das cortes brasileiras.

Conclusão 

As análises desenvolvidas acima possibilitam observar um elevado grau de continuidade em relação às funções, pretensões e valores da justiça militar, que remontam ao passado colonial e atravessaram diversos regimes políticos. O panorama contemporâneo desses tribunais oferece evidencias adicionais de que entre passado e futuro, tradições obsoletas têm sido vitoriosas.

Em convergência com o diagnóstico apresentado pelo CNJ há mais de uma década, é possível afirmar que a conjuntura observada contribui para o alto custo, a ineficiência e as decisões contestáveis das cortes militares. Um panorama que parece afetar tanto manutenção da disciplina e hierarquia quanto a imagem e respeitabilidade das Forças, podendo levar a consequências ainda mais graves. 

Por outro lado, nenhuma evidência coletada apontou para benefícios da ampliação ou mesmo manutenção das vastas competências da justiça militar, muito pelo contrário. De acordo com a melhor prática comparativa, decisões de cortes internacionais e o citado diagnóstico do CNJ em 2013, a jurisdição da justiça militar deveria ser restrita, excepcional e de competência funcional, visando o adequado cumprimento de suas funções.

Além disso, a conformação atual da justiça militar faz com que o Brasil participe de um seleto grupo de países que garantem a cortes militares uma ampla jurisdição para julgar civis, inclusive em tempo de paz. Além do Brasil, apenas a Bolívia e a Venezuela participam desse seleto grupo na América Latina. No resto do mundo, diversos países que possuem cortes com essa conformação são considerados autoritários, inclusive por membros das nossas Forças Armadas.

Em conclusão, é possível afirmar que, se a justiça militar brasileira tem a intenção de superar os dilemas que enfrenta atualmente e se manter relevante, se adequando às demandas impostas a essas cortes e, de forma mais ampla, às Forças Armadas no século 21, é imperativo que sua estrutura seja reformada e que tradições e valores ultrapassados sejam reavaliados. Quem sabe, refletir sobre a adequação da data da celebração que se aproxima não seja um bom começo?