Transição demográfica, municipalização e preferências das famílias na Educação Básica

JOTA.Info 2024-03-28

O Censo Escolar é um levantamento estatístico que fornece anualmente um retrato das condições de oferta e atendimento dos estabelecimentos públicos e privados de educação básica do Brasil. Seus dados são utilizados, por exemplo, para operacionalizar políticas públicas, como o Fundeb, além de ajudarem a direcionar investimentos na construção, reforma e equipagem de escolas, e para a contratação e alocação de profissionais.

A regularidade do Censo, crucial para as políticas educacionais, tende a repercutir na imprensa com análises focadas principalmente na variação anual de indicadores. Essas olhares são importantes, pois oferecem informações tempestivas sobre o alcance dos investimentos públicos. Por outro lado, é raro observar variações estatísticas significativas no intervalo de apenas um ano.

Menos frequentes são análises que se dediquem a um olhar panorâmico sobre as diferentes edições do Censo Escolar. É o que faz este texto, que descreve três tendências estruturais observáveis nos últimos 15 anos, utilizando dados do Censo Escolar, produzidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2008 a 2023.

Transição demográfica na educação

O Censo Populacional 2022 confirmou que a transição demográfica vem se acelerando no Brasil, a tal ponto de Ana Amélia Camarano já falar desde 2014 em um novo “regime demográfico”, caracterizado pelo envelhecimento gradual com estagnação e futura redução da população absoluta. Com efeito, a taxa de crescimento anual da população brasileira entre as duas últimas edições do Censo – 2010 e 2022 – foi de apenas 0,52%, a menor da série histórica. Nesse intervalo, a população com mais de 65 anos de idade cresceu 57,4%, enquanto a de crianças menores de 14 anos decaiu em 12,6%.

Naturalmente, a realidade demográfica afetou a educação brasileira. O total de matrículas na educação básica caiu 11% entre 2008 e 2023, saindo de 53,2 milhões para 47,3 milhões de estudantes. Isso não ocorreu por falta de acesso à escola. Apesar de ainda existirem milhões de brasileiros fora do sistema escolar, houve melhoria nas taxas de escolarização bruta e líquida em todas as etapas da educação básica nos últimos 15 anos. No ensino médio, por exemplo, a despeito de a taxa líquida ter alcançado apenas 76% em 2023, o salto ante 2008 foi de 25 pontos percentuais.

A queda no total de matrículas na educação básica só não foi ainda mais acentuada porque houve expressivo aumento na cobertura da população atendida em creches, que saiu de 1,8 milhão em 2008 e superou 4,1 milhões em 2023. Esse aumento fez saltar a matrícula líquida de 12,5% para 37,8% em 2023. Todas as demais etapas registraram queda no número absoluto de matrículas.

Essa tendência geral de queda nas matrículas da educação básica, salvo no caso das creches, foi registrada em todas as regiões do país, assim como em localidades urbanas e rurais, mas com variação notável entre as regiões. Por exemplo, o total de matrículas nas redes públicas no Nordeste foi o que mais decresceu (24 pontos percentuais), enquanto na região Centro-Oeste ela foi de apenas 6%.

Como o crescimento na taxa de escolarização líquida foi razoavelmente semelhante entre as regiões brasileiras, é provável que essa diferença seja explicada pelas diferentes taxas de crescimento populacional, visto que Nordeste e Centro-Oeste tiveram a menor e a maior taxa anual, respectivamente, segundo o último Censo Populacional.

Matrículas nas escolas privadas aumentaram apesar da transição demográfica

A mais surpreendente tendência identificada na análise da série histórica do Censo Escolar refere-se ao fato de que as matrículas nas escolas privadas aumentaram entre 2008 e 2023, a despeito da queda geral no total de matrículas. Em outras palavras, as redes públicas tiveram uma redução absoluta e relativa em suas matrículas.

Concretamente, o crescimento de matrículas em escolas privadas no intervalo analisado foi de 2,3 milhões. Dada a grandiosidade dos números da educação básica, o valor pode parecer pequeno. Contudo, ele representa um salto percentual de quase 33% entre 2008 e 2023, quando a queda total de matrículas foi de 11% e a registrada nas redes públicas quase alcançou 18%.

Tabela 1: % de matrículas na educação básica em 2023 em relação a 2008 (100%), Brasil e regiões

 TotalPúblicaPrivada GeralUrbanaRuralTotalUrbanaRuralTotalBrasil89%83%77%82%133%140%133%Centro-Oeste99%95%91%94%126%95%126%Nordeste82%78%72%76%130%153%131%Norte93%86%98%89%145%85%143%Sudeste90%82%70%81%130%149%130%Sul94%88%74%87%146%164%146%

Fonte: elaboração própria a partir de dados do Censo Escolar da Educação Básica, INEP/MEC, 2008 a 2023

Como mostra a Tabela 1, a migração para as escolas privadas ocorreu em todas as regiões do país, na área urbana e na rural. As únicas exceções são no Norte e no Centro-Oeste, onde houve pequena redução nas matrículas em creches privadas em localidades rurais.

Moraes & Belluzo apontam que, no Brasil, a escolha entre escola pública e privada é determinada principalmente pela condição econômica da família. Os dados do Censo Escolar parecem corroborar essa afirmação, pois o ritmo de migração para escolas privadas foi muito maior entre 2008 e 2014 do que desde então, período de vários choques exógenos sobre a renda das famílias.

Ainda que o número de estudantes matriculados nas redes públicas (37,8 milhões) continue muito mais alto se comparado aos das escolas particulares (9,4 milhões), a distribuição registrou uma mudança não trivial entre 2008 e 2023, caindo de 87% para 80% nas públicas e subindo de 13% para 20% nas privadas.

Maior redução de matrículas ocorreu nas escolas estaduais

A combinação das duas tendências descritas acima é a perda absoluta e relativa de matrículas nas redes públicas de ensino. Contudo, a análise do Censo Escolar mostra que essa perda se concentrou principalmente nas redes estaduais. Enquanto o total de matrículas nas escolas federais quase duplicou (mas inferior a 400 mil), no conjunto das redes municipais houve um decréscimo de 5%, o qual superou 34% nas redes estaduais (35% nas urbanas e 7% nas rurais).

Em 2008, o total de matrículas nas escolas estaduais era de 21,4 milhões, contra aproximadamente 14,2 milhões em 2023. É um decréscimo superior a 7 milhões de alunos, o que corresponde, na média do período do Valor Aluno Ano Fundeb, a cerca de R$ 25 bilhões. Como foi possível às redes estaduais, que concentram quase todas as matrículas do Ensino Médio público no país, elevar a taxa de escolarização líquida desta etapa enquanto perdiam tantos recursos e matrículas?

Primeiro, além da transição demográfica, que reduziu a pressão por gastos nas suas escolas municipais (muitas das quais foram fechadas no período), a diminuição de matrículas nas redes estaduais explica-se também pelo lento processo de municipalização. Nesse período, pelo menos dois estados (Ceará e Paraná) municipalizaram quase totalmente o ensino fundamental, e várias outras unidades da federação também avançaram no mesmo sentido, ainda que sem igual alcance.

Segundo, para que a perda de recursos não fosse ainda maior, as redes estaduais expandiram o número de “escolas de tempo integral”, cuja ponderação no Fundeb é maior, atraindo mais recursos com menos estudantes. Somente entre 2014 e 2023, houve um crescimento superior a 80% nas matrículas nesse tipo de escola, permitindo às redes estaduais manterem parte dos recursos que, de outra forma, seriam distribuídos aos estados e municípios mais pobres.

E as redes municipais, como conseguiram uma redução tão inferior à registrada pelas estaduais se a transição demográfica atinge a ambas? Além do processo de municipalização, os municípios expandiram significativamente a oferta de creches: entre 2008 e 2023, houve um aumento de 136% nessas matrículas. Se essa expansão não tivesse ocorrido, graças a um processo de crescente transferência de recursos da União e dos estados rumo aos municípios, a queda no total de matrículas em suas redes se aproximaria do percentual registrado nos estados.

Caso essas tendências permaneçam – e não parece haver contraforça suficiente para as reverter –, elas terão implicações relevantes, pois podem agudizar os conflitos distributivos entre a educação e outras áreas sociais (em função da transição demográfica), bem como entre os entes federados e, eventualmente, destes com atores privados, pela repartição dos recursos educacionais (disputas sobre fatores de ponderação do Fundeb, distribuição de outros fundos federais etc.).

Por outro lado, se os conflitos forem corretamente equacionados, essas tendências podem criar condições para um salto tanto em termos de equidade quanto de qualidade na educação brasileira, beneficiando não só as gerações atuais, mas também as futuras.