Inovação legal e resistência burocrática

JOTA.Info 2024-04-18

A legislação possibilita que contribuintes, órgãos públicos e entidades representativas formulem consulta à Receita Federal para esclarecer dúvidas quanto à interpretação das normas tributárias. Quando examinadas pela Coordenação Geral de Tributação (Cosit), a solução da consulta é vinculante no âmbito da Receita, devendo ser observada por todos os seus agentes. Dessa forma, ela acaba irradiando efeitos sobre o conjunto dos contribuintes, não se restringindo a quem apresentou a consulta. Tem, portanto, um efeito “quase-normativo”, com impacto semelhante ao de uma norma legal.

Como não é raro que uma mesma norma comporte diversas interpretações, esse mecanismo contribui para diminuir o grau de incerteza na aplicação do direito tributário – algo fundamental para que indivíduos e organizações possam se planejar. Por vezes, contudo, as soluções de consulta da Receita vão no sentido oposto, adicionando ainda mais confusão na prateleira dos contribuintes. Um exemplo recente é a solução de Consulta 73, emitida em 3 de abril, sobre a remuneração de dirigentes de instituições sem fins lucrativos qualificadas como Organização da Sociedade Civil e Interesse Público (Oscip).

A legislação tributária, por muito tempo, proibiu que os dirigentes fossem remunerados por seu trabalho. Por incrível que pareça, esse anacronismo somente começou a ser superado neste século.

Primeiro, em 2002, em relação às instituições qualificadas como Oscip ou Organização Social (OS), na medida em que a Lei 10.637 determinou que a proibição não se estendia à “remuneração de dirigente, em decorrência de vínculo empregatício”, observado o limite de 100% do teto do funcionalismo federal.[1] Depois, em 2013, em relação a todas as instituições sem fins lucrativos, tendo a Lei 12.868 passado a permitir a remuneração de dirigentes em geral. Sujeitou-a, contudo, a um limite absolutamente arbitrário: 70% do teto do funcionalismo.[2]

Ocorre que, dois anos mais tarde, em 2015, a Lei 13.204 alterou novamente a legislação tributária, estabelecendo uma norma específica para os dirigentes que atuam na gestão executiva das instituições (os diretores). Nesse caso, a lei expressamente previu que o limite da remuneração é dado pelos “valores praticados pelo mercado”[3] – um critério muito mais adequado para medir a razoabilidade da remuneração em instituições privadas.

Seja porque é norma especial em face da norma geral criada pela Lei 12.868, seja porque é posterior a esta, o novo limite estabelecido pela Lei 13.204 prevalece no caso específico de diretores, que podem ser remunerados em valores compatíveis com os de mercado. O limite de 70% do funcionalismo fica reservado aos demais dirigentes, não envolvidos na gestão executiva (conselheiros deliberativos ou de administração, por exemplo). Esse raciocínio decorre da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que estabelece os princípios para a interpretação do ordenamento jurídico.[4]

No entanto, o que fez a solução de consulta 73? Numa interpretação ligeira da legislação, passando ao largo dos princípios da LINDB, determinou que os dois limites de remuneração são “cumulativos”. Os diretores, portanto, continuariam restritos ao antigo limite de 70% do teto do funcionalismo. A consequência prática disso é uma só: tornar letra morta a alteração promovida pela Lei 13.204, que foi editada justamente com o propósito contribuir para um ambiente legal mais favorável à atuação das instituições sem fins lucrativos. Isso permite colocar em xeque a própria legalidade do ato.

Além disso, a solução da Receita entendeu que a mencionada Lei 10.637, de 2002, segue aplicável aos diretores não estatutários de instituições qualificadas como Oscip. Estes, portanto, poderiam ser remunerados até 100% do teto do funcionalismo. Com isso, teríamos o seguinte resultado: diretores estatutários, cuja responsabilidade pela instituição é naturalmente maior, estariam sujeitos a um limite de remuneração (70% do teto do funcionalismo) menor do que os não-estatutários, seus subordinados. Um contrassenso. A interpretação deve se orientar pela busca de coerência e integridade no ordenamento jurídico, afastando-se de conclusões extravagantes como essa.

A solução de consulta 73 se aplica apenas à remuneração de dirigentes de instituições qualificadas como Oscip. Ainda assim, cria um precedente muito ruim para o conjunto das instituições sem fins lucrativos brasileiras.

Resta torcer para que a Receita reveja essa interpretação o mais rápido possível, evitando assim a criação de uma nova frente de contencioso administrativo e judicial. Ao mesmo tempo, a regulamentação da reforma tributária – que finalmente acabou com a tributação (ITCMD) das doações feitas ou realizadas por instituições sem fins lucrativos com finalidade pública e social[5] – abre uma janela importante para aperfeiçoar e uniformizar as normas relativas à remuneração de dirigentes. A Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-SP desenvolveu uma proposta justamente nesse sentido.[6]

“Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória”, já proclamava a Declaração Universal dos Diretos Humanos há mais de 70 anos.[7] No terceiro setor não há de ser diferente.


[1] Lei 10.637/2002, art. 34.

[2] Cf. lei 9.532/1997, §§ 4º e 5º, incluídos pela lei 12.868/2013.

[3] Cf. lei 9.532/1997, art. 12, § 2º, “a”, com a redação dada pela lei 13.204/2015.

[4] Cf. decreto-lei 4.657/1942, especialmente seu art. 2º.

[5] Cf. Constituição Federal, art. 155, § 1º, VII, incluído pela emenda constitucional 132/2023.

[6] Disponível em: https://www.oabsp.org.br/upload/2210448643.pdf.

[7] Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela resolução 217 A da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, art. 23 (3).