ITCMD sobre doações e heranças do exterior

JOTA.Info 2024-04-18

Nos últimos tempos, cresceu o interesse das famílias brasileiras no planejamento sucessório, impulsionado não apenas pela necessidade de proteger o patrimônio familiar, mas também por ajustes legislativos que vêm sendo implementados, em especial após a promulgação da Emenda Constitucional 132, de 20.12.2023.

Como se sabe, o art. 155, § 1º, III da CF/88 determina que a instituição do ITCMD terá sua competência regulamentada por lei complementar nas hipóteses de transmissão de bens móveis por doação ou por sucessão causa mortis, no caso do doador ser residente no exterior ou do de cujus possuir bens, ser residente ou ter inventário processado no exterior.

Como essa lei complementar nunca veio a ser publicada, os Estados passaram a regulamentar a incidência do ITCMD nessas situações, sob o argumento de que estariam exercendo sua competência legislativa plena, nos termos do art. 24, § 3º da CF/88.

Essa manobra, contudo, foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 825 (Recurso Extraordinário 851.108), em que prevaleceu o entendimento de que a instituição do ITCMD nessas circunstâncias depende de prévia lei complementar.

Com base nessa decisão, a Procuradoria-Geral da República ingressou com 24 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) para contestar leis estaduais desalinhadas com o Tema 825, sendo a maioria já julgada procedente.

Recentemente, sobreveio a EC 132/2023, que, embora focada na tributação do consumo, trouxe mudanças relevantes em relação ao ITCMD, inclusive regras transitórias, que definem a competência para a instituição do imposto até a regulamentação por lei complementar. Vejamos:

“Art. 16. Até que lei complementar regule o disposto no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal, o imposto incidente nas hipóteses de que trata o referido dispositivo competirá: (…)

II – se o doador tiver domicílio ou residência no exterior:

  1. a) ao Estado onde tiver domicílio o donatário ou ao Distrito Federal;
  2. b) se o donatário tiver domicílio ou residir no exterior, ao Estado em que se encontrar o bem ou ao Distrito Federal;

III – relativamente aos bens do de cujus, ainda que situados no exterior, ao Estado onde era domiciliado, ou, se domiciliado ou residente no exterior, onde tiver domicílio o sucessor ou legatário, ou ao Distrito Federal.”[1]

Essa novidade introduzida pelo constituinte derivado gerou inúmeros questionamentos, especialmente sobre a possibilidade de que as normas estaduais editadas anteriormente à EC 132/2023 sirvam de fundamento para o lançamento do ITCMD nessas hipóteses. Ou seja, que se considere que a omissão do legislador complementar teria sido suprida e que as normas estaduais previamente editadas teriam sido convalidadas.

Essa preocupação se justifica principalmente em função de fragmentos isolados extraídos do acórdão do RE 851.108, inclusive na ementa[2], que abrem margem para se interpretar que as referidas normas estaduais estariam com seus efeitos suspensos até a edição da lei complementar de que trata o art. 155, § 1º, III, da CF/88.

Esse entendimento não seria inédito no STF. De fato, deve-se notar que o Supremo possui jurisprudência oscilante quanto à constitucionalidade e eficácia das normas promulgadas pelos estados nas situações em que a CF/88 exige a prévia edição de lei complementar. Esse tema já foi examinado em ao menos três situações, sendo que, em cada caso, o STF adotou solução distinta.

O primeiro exemplo remonta aos anos 90, em que o Plenário do STF declarou a inconstitucionalidade das normas estaduais instituidoras do adicional de Imposto de Renda dos Estados, editadas à revelia de norma nacional[3]. A invalidade das leis estaduais decorreu da ausência de lei complementar para solucionar conflitos de competência entre os estados, nos termos do art. 146, I, da CF/88.

Considerou-se que esse tributo seria propenso à ocorrência de conflitos de competência, de forma que a edição de lei complementar seria imprescindível.

Posteriormente, a Corte caminhou em sentido diametralmente oposto ao reconhecer a constitucionalidade das normas estaduais instituidoras do IPVA, mesmo diante da ausência de lei complementar para tratar das regras gerais do referido imposto (art. 146, III, “a”, da CF/88). Naquele caso, entendeu-se que, na ausência de lei geral, os estados teriam competência plena para regulamentar a matéria, nos termos do art. 24, § 3º da CF/88[4].

A questão dos efeitos da omissão do legislador complementar ganhou mais um capítulo com o julgamento do RE nº 1.221.330, que tratou da instituição do ICMS sobre importações feitas por não contribuintes, após a promulgação da Emenda Constitucional (EC) 33, de 11.12.2001 – que repartiu em favor dos estados a competência para tributar essas operações –, mas antes da aprovação da LC 114, de 16.12.2002 – que regulamentou essa incidência.

Naquele julgado, prevaleceu o entendimento de que a ausência de lei complementar sustaria a eficácia da legislação estadual, que passaria a surtir efeitos somente a partir da data da promulgação da LC 114/02. Ou seja, a ausência de lei complementar seria vício normativo que se opera no plano da eficácia, e não da constitucionalidade das normas estaduais.

De tudo o que foi apresentado acima, tem-se que, de acordo com a jurisprudência do STF:

(i) a ausência de lei complementar que estabeleça regras gerais em relação ao fato gerador, base de cálculo e contribuinte dos impostos previstos na Constituição (cf. art. 146, III, “a” CF/88) poderá resultar, a depender das circunstâncias:

  1. a) na competência plena dos estados para legislar sobre a matéria,
  2. b) na ineficácia das normas editadas pelos estados, enquanto não editada a lei complementar exigida pela legislação;

(ii) no caso de tributos suscetíveis a conflitos de competência, a ausência da edição de lei complementar para solucionar esses conflitos (cf. art. 146, I, CF/88) importa na inconstitucionalidade das normas editadas pelos estados para instituir os referidos tributos.

Aplicando-se as considerações acima ao caso da instituição do ITCMD nas hipóteses de que trata o art. 155, § 1º, inciso III da CF/88, parece claro que esse dispositivo versa sobre  regra de solução de conflitos de competência, assim como aquela invocada pelo art. 146, I, da CF/88.

Tem-se, portanto que, à luz da jurisprudência do STF, a omissão do legislador complementar importa na própria impossibilidade de instituição do tributo pelos Estados.

Para além das considerações teóricas acima, o próprio fato de a grande maioria das ADIs movidas pela PGR, relativas a essa hipótese de incidência, terem sido julgadas procedentes encerra qualquer dúvida de que as referidas normas foram extirpadas do ordenamento jurídico.

Note, se tivesse sido reconhecida a constitucionalidade das referidas normas, mas com sua eficácia suspensa (de maneira análoga ao que ocorreu no caso do ICMS-Importação), os referidos pedidos teriam sido julgados improcedentes – o que não ocorreu.

De tudo o que foi apresentado acima, parece-nos claro que os fragmentos do RE 851.108, em que se afirma que a norma instituidora do ITCMD sobre doações e heranças oriundas do exterior estaria com sua eficácia contida, diz respeito a erro material do acórdão[5].

Esses trechos são incompatíveis até mesmo com a tese que foi firmada do referido RE[6], que é clara em estabelecer que os estados não podem “instituir” o ITCMD nas hipóteses trazidas pelo art. 155, § 1º, III, da CF/88, enquanto não editada a lei complementar exigida pelo referido dispositivo.

Assim, em que pese esses fragmentos possam causar alguma estranheza e preocupação, não nos parece que esses trechos isolados, nitidamente incompatíveis com o teor da decisão, possam trazer qualquer risco de autuação com base na legislação estadual editada antes da EC 132/23.


[1] Em apertada síntese, definiu-se que, enquanto não houver uma lei complementar regulamentando a incidência do ITCMD nas hipóteses previstas no art. 155, § 1º, III, a competência para instituição e cobrança do imposto recairá sobre o estado onde domiciliado o donatário ou falecido, ou ao Distrito Federal. Se ambos estiverem domiciliados no exterior, o imposto poderá ser devido ao Distrito Federal ou ao estado onde o bem se encontra, no caso de doação, ou ao estado de domicílio do sucessor.

[2] E.g. “6. O art. 4º da Lei paulista nº 10.705/00 deve ser entendido, em particular, como de eficácia contida, pois ele depende de lei complementar para operar seus efeitos.” (RE 851.108, Rel. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01-03-2021)

[3] E.g. RE 136.215, Rel. Min. Octavio Gallotti, J. 18.02.1993

[4] AI 167777 AgR. RE. Marco Aurélio, 2ªT, J. 04.03.1997; Ed. AgR. RE 206.500, Min. Néri da Silveira, 2ªT, j. 21.03.2000; RE 206.003, Min. Moreira Alves, J. 07.12.1999.

[5] Seria possível conjecturar que o relator do referido julgado, Min. Dias Toffoli, teria ponderado aplicar ao RE 851.108 solução semelhante à que foi adotada no caso relativo à incidência do ICMS-Importação, no sentido de reconhecer a constitucionalidade da norma estadual, porém com sua eficácia suspensa. Contudo, esse claramente não foi o resultado do julgado.

[6] Tema 825 – RE 851.108 – Tese Firmada: É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional.