A armadilha do licenciamento ambiental dos garimpos no Pará
JOTA.Info 2024-12-11
O estado do Pará recentemente editou uma normativa que modifica as regras para a descentralização do licenciamento ambiental de lavras garimpeiras aos municípios. Essa alteração ocorre em um contexto em que já existe uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1104) tramitando no Supremo Tribunal Federal, questionando a validade do exercício dessas atividades pelos municípios.
A nova normativa é ineficiente e não resolve os problemas provocados pelos garimpos na região, podendo agravar ainda mais a situação ambiental do estado, além de gerar insegurança jurídica sobre o licenciamento de lavras na Amazônia.
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O licenciamento ambiental é um dos principais e mais eficazes instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei Federal 6.938/1981), sendo ferramenta essencial para avaliar a viabilidade socioambiental de empreendimentos. No caso dos garimpos, este procedimento já é bastante simplificado em comparação às exigências impostas a outras extrações minerárias como, por exemplo, bauxita e ferro.
Vale recordar que os recursos minerais são bens da União, competindo privativamente a ela legislar sobre jazidas, minas e outros recursos minerais (artigos 20, inciso IX, e 22, inciso XII, da Constituição Federal).
A competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios é “registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios” e “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (artigo 23, incisos VI e XI, da Constituição Federal).
A Lei Complementar 140/2011 estabelece como competência dos municípios o licenciamento de empreendimentos “que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade” (art. 9º, inciso XIV, alínea “a”).
Em outras palavras: além do impacto local, outros componentes devem ser considerados para fins de definição da competência municipal em licenciar determinada atividade.
Com a descentralização desse poder aos municípios, o processo tende a se fragilizar, o que é incompatível com uma atividade cujos impactos se estendem além das fronteiras municipais.
Estudo recentemente publicado pelo WWF-Brasil analisou o risco da contaminação por mercúrio – componente utilizado nos garimpos de forma indiscriminada para separação do ouro de outras substâncias – nas bacias hidrográficas dos rios Tapajós, Xingu, Mucajaí e Uraricoera, que abrigam os territórios indígenas mais afetados pelo garimpo.
O artigo resultante, publicado no periódico Toxics em agosto deste ano, usou um modelo probabilístico desenvolvido pela Agência Ambiental Americana (U.S. Environmental Protection Agency – US EPA), para projetar a distribuição e bioacumulação de mercúrio, e os dados corroboram o entendimento de que os danos ambientais decorrentes da exploração mineral extrapolam os limites territoriais dos municípios que concedem as licenças.
A contaminação hídrica e do pescado por mercúrio se alastra por toda a extensão das bacias analisadas, incluindo seus afluentes e territórios de suas porções altas não afetadas diretamente pela extração mineral.
Conforme levantamento realizado em novembro de 2024, as permissões de lavra garimpeira já emitidas perfazem o total de 1.124 licenças. Na aplicação dos novos critérios propostos pelo estado do Pará, como área igual ou menor que 50 hectares requerida individualmente, a delegação municipal se manteria para 847 licenças já emitidas, ou seja, 75% de todos os títulos. Já para o requerimento de lavra garimpeira, ainda não autorizado, a manutenção da competência municipal é ainda maior.
Dos atuais 6.798 requerimentos em tramitação, 5.974 deles, ou 88% do total, são individuais de área menor que 50 hectares. A normativa é silente em relação a regras de transição e traz conceitos que confundem os leitores sobre a extensão de suas medidas.
É importante lembrar que a expressiva maioria dos municípios do Pará possui órgãos ambientais sucateados, que carecem de estrutura, recursos humanos e tecnologia para realizar análises consistentes, periódicas e abrangentes sobre essas atividades, inclusive sobre seus impactos cumulativos e sinérgicos.
Há, inclusive, municípios que sequer possuem órgão com atribuição ambiental em suas estruturas administrativas. Tal realidade é presente principalmente em municípios localizados em regiões remotas e distantes da capital, justamente os que concentram a maioria dos ilícitos ambientais relacionados à atividade garimpeira. Soma-se a esse grave cenário ambiental a reconhecida evasão fiscal, com claro prejuízo ao erário público paraense.
Recentemente, a Repórter Brasil publicou uma reportagem expondo repasses decorrentes de recursos advindos de garimpos ilegais que somavam um montante de aproximadamente R$ 980 mil a candidatos a prefeito e vereador no Pará. A Polícia Federal iniciou uma investigação para apurar as informações. Diante desse cenário, que tipo de independência esse possível gestor público terá para olhar para questões relacionadas aos impactos da atividade garimpeira?
Sem o devido monitoramento dos impactos, as prefeituras não conseguem fiscalizar adequadamente os garimpos, uma atividade que, por sua natureza, já enfrenta sérios problemas socioambientais e fiscais, aos quais o Estado ainda se ausenta para solucionar.
O resultado dessa fragmentação do olhar sobre um instrumento tão essencial é um aumento substancial do risco do agravamento da degradação ambiental causado pela atividade, como é o caso do assoreamento dos rios, desmatamento de áreas de preservação permanente, poluição das águas e contaminação por mercúrio de pessoas e animais. As prefeituras, atuando de forma isolada, não têm capacidade para gerir os efeitos coletivos do garimpo, que exigem uma perspectiva mais ampla, que deve ser necessariamente responsabilidade do governo estadual.
A legislação ambiental brasileira impõe que, ressalvados os casos que são atribuição do Ibama, o estado em regra conduza os licenciamentos. Pode sim haver delegação aos municípios pelo conselho estadual de meio ambiente, mas apenas quando caracterizado impacto local e com garantia de governança ambiental na municipalidade. Ao delegar essa responsabilidade aos municípios, o governo estadual ignora essa necessidade, colocando em risco a qualidade de vida da população e a saúde ambiental de modo geral.
A nova normativa do Pará, ao invés de corrigir falhas, perpetua uma ineficiência que pode manter consequências devastadoras que já são experimentadas hoje pela população paraense. É urgente que o governo estadual reavalie essa abordagem e retome a responsabilidade pelo licenciamento ambiental dessas atividades. Somente com uma análise cuidadosa e integrada poderemos garantir a proteção dos nossos recursos naturais e a sustentabilidade para as futuras gerações da Amazônia.