Para onde vai a internet no Brasil?

JOTA.Info 2024-12-11

Com a recente aprovação na Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados do PL 469/2024, que proíbe operadoras de telecomunicações de cobrarem empresas de internet com base no tráfego de dados, o debate sobre as tarifas de rede ganha novos contornos.

O debate sobre a neutralidade da rede no Brasil é longo e marcado por tentativas recorrentes de enfraquecimento desse princípio fundamental. Desde o início das discussões sobre zero rating, que ocorrem há pelo menos 20 anos, as grandes empresas de telecomunicações têm buscado flexibilizar as regras que garantem uma internet livre e aberta.

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Em junho de 2024, a Conexis, entidade que representa essas operadoras, apresentou uma proposta de cobrança por tráfego de dados dos grandes Serviços de Valor Agregado (SVAs), como plataformas de streaming e redes sociais. Desde o início é válido ressaltar que o que se propõe nada mais é que uma transferência de recursos entre empresas privadas, e não uma política de interesse público. No entanto, as implicações dessa proposta vão muito além de uma simples divisão de custos de infraestrutura.

A proposta apresentada pela Conexis surge na Tomada de Subsídios 26/2023 da Anatel com o argumento de que cinco SVAs (Meta, Akamai, Alphabet, Netflix e TikTok) utilizam intensivamente as redes fixas e móveis e em volumes sempre crescentes, exigindo manutenção e ampliação constantes. Mas, embora a cobrança adicional pareça, à primeira vista, uma medida para equilibrar os custos de rede, na prática, ela esconde riscos profundos para a neutralidade da rede, princípio disciplinado pelo Marco Civil da Internet, que assegura que todos os dados trafeguem sem interferências comerciais, protegendo o acesso igualitário dos usuários aos conteúdos de sua escolha.

Isso ocorre pois a proposta não deixa claro – e é aí que reside a ameaça – como será feita essa cobrança caso os SVAs não concordem em pagar as tarifas adicionais.

Como consequência, se o enforcement não é respaldado pelo interesse público, mas sim tem por objetivo a vantagem de um setor econômico em uma disputa comercial, o impacto mais provável é que as grandes operadoras de telecomunicações limitem o acesso aos serviços de SVAs que não tiverem fechado acordos de pagamento – em total afronta ao Marco Civil da Internet.

Com isso, as grandes operadoras se veriam no poder de reduzir a qualidade do tráfego de um SVA ou até mesmo bloquear seu acesso, desconsiderando o Marco Civil que justamente busca evitar práticas comerciais discriminatórias desse tipo.

Além do mais, especialistas já alertaram que essa prática de dupla cobrança é abusiva e distorce o mercado. No último dia 7 de novembro, em Santiago (Chile), no âmbito do LACIGF 17, evento latino-americano que discute diversas questões relacionadas à governança da internet, aconteceu a sessão “Taxa de rede ou Compartilhamento de custos? Riscos e narrativas em torno do “Fair Share”. Nela, Paula Bernardi (ISOC) e Alessandro Molon (AIA) foram enfáticos em demonstrar que os consumidores já pagam às operadoras pelo acesso à internet, que inclui o tráfego necessário para acessar conteúdos dos SVAs.

Ademais, alertaram ainda que a cobrança adicional diretamente dos provedores de conteúdo, pelo mesmo tráfego, onera desnecessariamente o ecossistema digital, além de infringir o conceito de isonomia entre usuários e serviços. Em última instância, os custos adicionais poderão ser repassados aos consumidores, encarecendo o acesso a serviços digitais e restringindo o uso da internet.

Pelo lado da comunidade técnica, um estudo da ISOC Brasil, que será lançado ainda em 2024, analisou detalhadamente os riscos dessa proposta para a internet aberta e igualitária. O estudo evidenciou que essa cobrança adicional poderia criar “ilhas de conectividade”, onde o acesso aos conteúdos se torna condicionado a acordos financeiros específicos.

A ISOC Brasil defende que esse modelo é um ataque à interoperabilidade e à flexibilidade da internet como rede aberta e universal, beneficiando apenas aqueles SVAs com capacidade econômica de arcar com as tarifas e, ao mesmo tempo, minando o ecossistema de inovação que depende de uma rede neutra para prosperar.

Na Coreia do Sul, onde uma política semelhante foi implementada, grandes SVAs moveram seus servidores para fora do país para evitar as tarifas impostas, gerando aumento de latência e degradação da qualidade de serviço para os usuários locais. Embora o modelo coreano tenha sido aplicado sobre os contratos de peering e não sobre o volume de tráfego, como é a proposta da Conexis no Brasil, os impactos serão os mesmos: lá, a internet se fragmentou, e a experiência dos usuários foi comprometida. O caso coreano expõe que a proposta aqui não se trata apenas de uma questão comercial, mas de uma limitação real à conectividade significativa e uma ameaça à internet como conhecemos.

Portanto, com um modelo de tarifas de rede, as operadoras teriam o poder de determinar quais conteúdos podem trafegar, criando uma internet que favorece apenas aqueles com maior poder econômico, e limitando a liberdade dos usuários de acessarem o conteúdo de sua escolha sem interferências ou discriminações comerciais.

Há um impacto negativo relevante em relação à preservação de um ambiente digital aberto, essencial para o exercício da cidadania e para o desenvolvimento econômico e social.

Com a proposta da Conexis, o Brasil corre o risco de retroceder nos avanços conquistados com o Marco Civil da Internet, impondo barreiras que limitam a liberdade de expressão, a inovação e a igualdade de oportunidades. Precisamos de uma internet que continue sendo um espaço aberto, acessível e inclusivo para todos – e, para isso, a defesa intransigente da neutralidade de rede é imprescindível.