Imunidade material, investigação e persecução penal de parlamentares
JOTA.Info 2024-12-11
No Direito parlamentar, foi notícia a fala do ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, no último dia 3 de dezembro, durante sua convocação (solicitada por 21 requerimentos) perante a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados.
Na ocasião, o ministro declarou ser ele mesmo um “defensor da mais absoluta liberdade de expressão dos parlamentares”; entretanto, afirmou existir uma guinada na jurisprudência interpretando o art. 53 da CF para dizer que “a imunidade material e processual dos parlamentares não inclui os crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação”. O trecho pode ser conferido a partir do momento 1:03:30 do vídeo da reunião.
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O ministro ainda disse que o STF teria interpretado dessa maneira em proteção à própria atividade parlamentar, pois, se os parlamentares começarem a se ofender mutuamente, cometerem crimes contra a honra, agredirem seus colegas, então isso não estaria coberto pela imunidade. Afirmou, então, que eventuais ações e inquéritos contra parlamentares abertos no âmbito da Polícia Federal levariam isso em consideração.
Pois bem. Já se explicou em coluna passada que, a despeito da literalidade do art. 53, caput, da CF, sobretudo após a redação do EC 35/2001, a jurisprudência do STF tradicionalmente exigiu, para reconhecer a incidência da imunidade parlamentar, que as opiniões, palavras e votos tenham sido proferidos no exercício do mandato (in officio) ou em razão deste (propter officium).
Esse nexo ou liame de causalidade limita a prerrogativa parlamentar ao exercício do ofício congressual, daí que se diga que a imunidade parlamentar não é absoluta, porque não abarca todas e quaisquer opiniões, palavras e votos.
Entretanto, como já se explicou naquela ocasião, a jurisprudência do STF somente avançava para perquirir sobre essa conexão com o mandato em relação a pronunciamentos fora do parlamento, entendendo que as falas no interior das Casas Legislativas são acobertadas pela inviolabilidade absoluta.
Além disso, registrou-se que “(…) reconhecida a conexão com o desempenho do mandato, a rigor, não haveria que se perquirir nada mais, pois a imunidade incidiria independentemente do conteúdo das mensagens veiculadas. É dizer, também estão abarcadas pela imunidade as ofensas pessoais, insultos dirigidos aos interlocutores, xingamentos, palavrões, palavras de baixo calão, etc., muito embora todas essas formas de liberdade de expressão não sejam o modelo ideal de debate político”.
A questão é que o STF vem usando esse expediente de considerar “sem relação direta com o exercício do mandato” os discursos mais desrespeitosos. Daí, talvez, o ministro Lewandowski tenha pretendido fazer referência a esse entendimento do STF, que, de fato existe.
Por exemplo, na Pet 7174, a 1ª Turma do STF afastou a imunidade e aceitou a queixa-crime contra o então deputado federal Wladimir Costa por chamar artistas de “vagabundos da Lei Rouanet”; Pet 8401, de autoria do senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) contra o senador Jorge Kajuru (PSB-GO), a corte entendeu que acusação deste último de que o primeiro teria recebido “propina” em troca da aprovação de projeto de lei não teve vinculação com o exercício do mandato e excede as balizas constitucionais; na Pet 9007, o pleno também rejeitou a imunidade parlamentar e recebeu denúncia contra o deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) por ofensas dirigidas a ministro do STF etc. Com isso, afastado o nexo funcional, foram abertas ações criminais por crimes contra a honra. Mas que fique claro: não existe jurisprudência do STF que ordinariamente “exclua os crimes contra a honra da imunidade parlamentar”.
É bem verdade que a imunidade parlamentar não impede o detentor do mandato de ser objeto de investigações. O problema, entretanto, está em que inquéritos também podem se usados como forma de assediar o mandato do congressista. O desiderato do art. 53, caput, da CF, só será alcançado com a proibição de instauração de inquérito que tenham por objeto crimes de opinião a partir de opiniões, palavras e votos dos parlamentares da tribuna.
Do contrário, em lugar de exercer seu mandato com autonomia, destemor, liberdade e transparência, a fim de bem proteger o interesse público, os deputados e senadores vão sendo tolhidos em sua independência, dada a falta de critérios sobre os conteúdos que estão efetivamente relacionado ao mandato ou não. Ao se impossibilitar a instauração de inquérito policial e a persecução penal nesses casos, privilegia-se o texto constitucional e evitam-se os prejuízos advindos para a harmonia entre as instituições.
Cogitando de possível abuso de autoridade em relação à abertura de inquéritos contra parlamentares por discursos proferidos da tribuna da Casa, no dia 27 de novembro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez uma defesa das prerrogativas parlamentares.
Em seu discurso (momento 7:37:24 do vídeo da sessão), registrou que a imunidade parlamentar material assegura a cada deputado a liberdade plena de palavra nas manifestações em plenário, permitindo que expressem os posicionamentos e representem fielmente os interesses dos eleitores.
“Sem essa imunidade material, o plenário do Parlamento brasileiro, este terreno livre onde devem ecoar os mais diversos pensamentos da sociedade, estaria sujeito a todo tipo de limitação e de censura, com claro comprometimento da atividade parlamentar e com o inequívoco enfraquecimento da própria democracia”, disse o presidente Lira.
Externou sua preocupação para os inquéritos e indiciamentos dos deputados Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB), considerando esses episódios como “tentativas de criminalização de falas proferidas na tribuna deste Parlamento, local, por excelência, de pleno exercício de liberdade de manifestação do pensamento e de incidência absoluta da cláusula constitucional de imunidade material”.
Avançou, em tom sereno e firme ao mesmo tempo, com um discurso que certamente entrará para a história:
“Não se pode cercear o direito fundamental ao debate e à crítica em tribuna, mediante ameaças de perseguição judicial ou policial. O Parlamento não é e não pode ser alvo de ingerências externas que venham a coibir o exercício livre do mandato. O respeito à imunidade material absoluta na tribuna da Casa é, em última análise, o respeito ao povo brasileiro.
Recordo aqui o caso do Deputado Moreira Alves, que, durante o regime militar, foi alvo de retaliação justamente por sua coragem de defender a democracia e os direitos dos cidadãos. Sua cassação, baseada em discursos feitos na sagrada tribuna desta Casa, marcou um dos episódios mais sombrios de nossa história legislativa e serve como alerta constante para nós. Aqueles que tentam restringir nossa liberdade de expressão legislativa desconsideram os danos profundos que essa prática causa ao Estado Democrático de Direito.
Portanto, em nome da defesa intransigente de nossa função e de nossa liberdade de palavra, reafirmo que a imunidade material é um direito inalienável de cada Parlamentar e há de ser absoluta para manifestações feitas na sagrada tribuna desta Câmara dos Deputados.
Não permitiremos retrocessos que ameacem essa garantia fundamental. Esta Casa tomará todas as medidas garantidas pela Constituição Federal e pela lei para defender as prerrogativas Parlamentares, notadamente dentro do próprio Parlamento.
Que fique claro: nossa voz é a voz do povo, e ela não será silenciada. Que sigamos firmes, exercendo nossa missão constitucional, com a independência e a responsabilidade que a Nação brasileira nos confiou e com a plena liberdade de manifestação em tribuna, que nos foi garantida pela Constituição da República de 1988.
Mais uma vez, Sras. e Srs. Deputados, esta fala não é para polemizar; esta fala não é para afrontar; esta fala não é para desrespeitar; esta fala não é para intimidar. Esta fala é simplesmente para lembrar que nós todos temos limites. O Deputado tem responsabilidade sobre o que fala e responde por isso. Se ele exagerar em seus limites, que esta Casa tenha a coragem de tomar providências contra aqueles que atentam contra eles. Mas sejamos todos unidos na defesa livre de cada um poder usar a tribuna desta Casa para expressar o que seus eleitores pensam e representam.
Com esse sentimento, eu espero sempre ter a paciência, a compreensão, o respeito e a humildade de todos os que pensam, e agem, e votam, e representam esta Casa, da Esquerda, da Direita, do Centro, os mais liberais e os mais progressistas.
Mas esta fala foi muito pensada e, mais uma vez eu digo, não é para agredir nem para enfrentar ninguém. Agora, a Casa, na sua Procuradoria, na sua Advocacia, vai chegar aos últimos limites para que responda por abuso de autoridade quem infringir a capacidade dos Parlamentares nesta Casa, sejam eles quais forem”.
Nos ordenamentos em geral, a história da imunidade parlamentar está relacionada aos conflitos entre os poderes. No Reino Unido, berço do instituto, os conflitos se davam entre a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, o monarca e os tribunais. Da mesma forma, no Brasil, essa prerrogativa vem sendo objeto de ampla discussão, sobretudo quanto aos seus limites.
O fato é que o STF vem sendo chamado a exercer cada vez mais controle sobre as atividades parlamentares e, em resposta, veem-se: ações penais por injúria, calúnia, difamação serem abertas; prisões; bloqueio de redes sociais; retenção de remuneração e outras medidas cautelares diversas que, quando não impedem de todo, no mínimo, obstaculizam o exercício do mandato etc.
Enquanto se assiste a esse fenômeno do paulatino esvaziamento das prerrogativas parlamentares, que compromete a própria autonomia do Congresso, a perplexidade também vai para aqueles que acreditam que essas limitações são legítimas e compatíveis com a Constituição e o Estado de Direito.
Como explica Josh Chafetz na ampla reconstrução comparada entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos,[1] as prerrogativas parlamentares são o ponto de partida para a construção de uma sociedade democrática e as instituições devem ser desenhadas de modo a incentivar que os legisladores ajam como verdadeiros representantes (proxies) dos seus eleitores. Por isso, ao permitir o uso de palavras (duras, inclusive), a imunidade material é o meio de garantir que o parlamento possa desempenhar suas funções de forma eficaz.
[1] CHAFETZ, Josh. Democracy’s privileged few: legislative privilege and democratic norms in the British and American Constitutions. New Haven, London: Yale University Press, 2007.