Teoria dos jogos e reforma tributária
JOTA.Info 2024-12-22
A complexidade do sistema tributário não é novidade, alíquotas elevadas e custos de operacionalização e de pagamento até para os próprios tributos, exigindo em muitos casos contadores e advogados de forma obrigatória para que consigam adimplir com suas obrigações perante o fisco, fruto de um sistema projetado para uma economia de cimento e tijolos.
Contudo, existem diferente formas de se enxergar um objeto, ou melhor, de se construir uma interpretação sobre ele, sendo o objetivo realizar uma breve análise dos sujeitos integrantes do sistema tributário brasileiro (contribuinte e fisco) pela perspectiva da teoria da escolha racional limitada, teoria dos jogos e a teoria da tributação ótima.
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Isso quer dizer que o que nos importa não são os fins, mas como o sujeito racional efetua sua tomada de decisão para determinado fim. É claro que a racionalidade tem diversos significados a depender do contexto em que é inserida, mas no presente artigo nos contentaremos com a racionalidade instrumental[1], isto é, não se busca analisar o sistema tributário em si, mas sob a perspectiva dos seus sujeitos, por meio do estudo de como o sujeito racional efetua sua tomada de decisão e as dificuldades deste processo.
Certamente estamos trabalhando com base em teorias, ou seja, são recortes simplificados da realidade[2], não são uma exposição fidedigna e exaustiva da realidade, pois sua complexidade seria tão grande a ponto de tornar inútil a própria teoria em termos práticos, como aborda Jorge Luis Borges na obra Sobre o rigor na ciência[3] – o custo da exatidão total da dimensão e escala do mapa foi a sua total inutilidade para elaboração de estratégias.
Cooter e Ulen[4] estabeleceram postulados fundamentais para entender os interesses próprios: (i) os indivíduos são autointeressados, ou seja, buscam a maximizar o seu bem-estar (utilidade) em face dos recursos limitados e de suas demandas ilimitadas; (ii) os indivíduos realizam escolhas consistentes, por meio das informações que possuem, em face às possibilidades para o alcance de seus objetivos; e (iii) os indivíduos reagem a incentivos.
A teoria da escolha racional analisa o comportamento dos indivíduos, considerando-o maximizador e estável em suas preferências, sem se preocupar com gostos pessoais. Contudo, a ideia de racionalidade total é irreal, como demonstraram Daniel Kahneman e Amos Tversky[5] ao expor as limitações causadas por vieses e heurísticas, compiladas na obra Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Esses estudos fortaleceram a teoria da racionalidade limitada, inicialmente explorada por Herbert Simon[6].
A teoria dos jogos surgiu gradualmente ao longo da história, com origens no contexto bélico e popularização após a Segunda Guerra Mundial, quando foi utilizada, por exemplo, pelos ingleses para aumentar as chances de destruir submarinos alemães, evidenciando a aplicabilidade da racionalidade (limitada) aliada a teorias preditivas.
Von Neumann demonstrou matematicamente que sempre existe um curso racional de escolhas para os jogadores e definiu “jogo” como uma situação de conflito na qual os participantes tomam decisões influenciadas pelas ações previstas do adversário.[7]
Ela pode ser exemplificada pelos dilemas dos prisioneiros e do caçador, que mostram como decisões racionais individuais podem gerar resultados longe do ponto ótimo para o coletivo, especialmente em cenários de desconfiança ou assimetria de informações.
No dilema dos prisioneiros, dois suspeitos, isolados, recebem uma oferta: confessar e acusar o parceiro. Se ambos confessam, cumprem dois anos; se um confessa e o outro não, o delator se livra e o parceiro cumpre quatro anos; se nenhum confessa, recebem um ano. A desconfiança torna a confissão a estratégia dominante, resultando em um desfecho pior para ambos e ilustrando o equilíbrio de Nash, onde escolhas racionais individuais não coincidem com a melhor solução coletiva.
No dilema do caçador, já comentado por Rousseau[8], caçadores podem cooperar para caçar um cervo, maximizando o benefício coletivo, ou buscar lebres individualmente, com ganhos menores. A deserção de um caçador espanta o cervo e prejudica o grupo. A falta de confiança favorece escolhas individuais e leva a um resultado inferior.
Esses exemplos mostram como decisões maximizadoras individuais prejudicam o coletivo em contextos de desconfiança ou assimetria. Aplicados à reforma tributária, explicam por que setores buscam maximizar interesses próprios, comprometendo a eficiência do sistema. O ponto ótimo coletivo exige confiança, simetria de informações e transparência, fatores muitas vezes ausentes em cenários complexos, resultando em decisões que maximizam o bem-estar sob a perspectiva individual, mas não a coletiva.
A grande contribuição dessas teorias é sua aplicabilidade a diferentes contextos, desde conflitos geopolíticos até políticas econômicas, intercalando diferentes campos do conhecimento, como fez Ronald Coase com o Direito ao influenciar “a doutrina jurídica e a jurisprudência, assinalando que os distintos conhecimentos não são apenas estanques nem autossuficientes”[9], e Gary Stanley Becker ao demonstrar o alcance da microeconomia sobre o comportamento e a cooperação humana[10].
Apesar de não se tratar de uma conclusão inovadora, dialogar sobre a dificuldade de consenso no estabelecimento de alíquotas, manutenção ou extinção de incentivos fiscais e outras medidas que geram impactos em diversos setores, sob a ótica das teorias expostas nos permitem analisar a dificuldade da tomada de decisão na reforma tributária sob outra perspectiva e aprender como superar esses entraves.
De maneira nenhuma se pretende tecer críticas aos setores que realizam suas pressões para reivindicar ou manter sua tributação diferenciada, imprescindibilidade de alguns incentivos no seu setor ou, ainda, que a alíquota que está demasiadamente alta, podendo se tornar a mais alta mundialmente quando comparado com os países integrantes da OCDE[11], mas sim compreender o seu comportamento e como essa tomada de decisão ocorre.
Os contribuintes, independente do porte da (des)vantagem tributária quando comparado ambos os modelos de sistema tributário, possuem as suas razões jurídicas e econômicas para tanto, mas isso não afasta a conclusão que eventual ruído, assimetria de informações ou ausência de confiança fortalece a tendência da escolha maximizadora individual frente a coletiva, por não dispor sobre as informações e nível de confiança dos outros sujeitos como tem de si próprio, afetando a tomada de decisão ótima ao coletivo.
Originalmente o projeto da reforma tributária foi idealizado buscando algo semelhante (não idêntico) ao que Ramsey[12], Diamond e Mirrles[13] já tinham proposto como um tributo ótimo (mais eficiente do ponto de vista sistêmico ou coletivo). Para simplificar o que seria uma tributação ótima, o jurista Richard Posner expõe o que tributo deve possuir: (i) base grande de contribuintes; (ii) incidência sobre produtos e serviços de demanda inelástica; (iii) respeito à igualdade e (iv) baixo custo administrativo.
Considerando os pressupostos de Posner para uma tributação ótima, o sistema brasileiro apresenta uma ampla base de contribuintes e tendência à simplificação com menor custo administrativo, mas enfrenta obstáculos jurídicos, como as normas constitucionais que criam exceções e tratamentos diferenciados.
Apesar do potencial da reforma tributária para atender teorias econômicas modernas, sua efetividade depende da renúncia dos indivíduos à maximização do bem-estar individual em favor do coletivo. A teoria dos jogos ilustra como conflitos de interesse e assimetria de informações dificultam esse processo, o que eventualmente explicaria a urgência do Congresso em aprovar a reforma: atender cada demanda individual ou setorial poderia inviabilizar o projeto.
[1] PETERSON, Martin. An introduction to decision theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 5.
[2] PARETO, Vilfredo. Manual de Economia política. Trad. João Guilherme Vargas Neto. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 15.
[3] BORGES, Jorge Luís. Sobre o Rigor na Ciência in História Universal da Infâmia, trad. de José Bento, Assírio e Alvim,1982.
[4] COOTER, Robert D; ULEN, Thomas. Law and Economics. New York: Addison Wesley, 1992, p. 9-18.
[5] Kahneamn, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Trad. Cássio Arantes Leite. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
[6] SIMON, H. A. Models of bounded rationality. Cambrige, MA: MIT Press, 1982.
[7] SADDI, Jairo; PINHEIRO, Armando Castelar. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 163.
[8] ROSSEAU, Jan Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril, p. 261.
[9] COASE, Ronald Harry. A firma, o mercado e o direito. Trad. Heloisa Gonçalves Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016, p. 12
[10] BECKER, Gary Stanley. The economic approach to human behavior. Chicago: University of Chicago, 1978.
[11] Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2024/04/6847833-aliquota-do-iva-brasileiro-pode-ser-a-maior-do-mundo-dizem-especialistas.html>. Acesso em: 24/06/2024.
[12] RAMSEY, F. P. A contribution to the heory of taxation. The Economic Journal. London, Macmillian, v. 37 n.1, p. 47-61, mar 1927
[13] DIAMOND, Peter A.; MIRRLEES, James A. Optimal taxation and public production II: tax rules. The American Economic Review, v. 61, n. 3, pt. 1, p. 261-278, Jun 1971