Quando plataformas virtuais se tornam um problema de saúde pública?

JOTA.Info 2024-12-30

As tecnologias digitais assumiram um papel central no funcionamento do mundo, transformando a maneira como produzimos, armazenamos e compartilhamos informações.

Se antes o principal desafio era democratizar o acesso a essas ferramentas diante das desigualdades sociais que excluem parte da população de áreas essenciais como economia, educação e saúde, o debate atual concentra-se em como equilibrar a rápida digitalização com um uso saudável, seguro e ético dessas tecnologias.

Com notícias direto da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para grandes empresas do setor. Conheça!

No contexto da saúde digital — ou da saúde na era digital —, as plataformas online exercem um duplo papel. De um lado, ampliam o acesso à informação, serviços de saúde e promoção do bem-estar. De outro, quando mal projetadas representam riscos significativos.

Mesmo aplicações desenvolvidas para monitorar condições de saúde ou incentivar hábitos saudáveis podem ter impactos negativos ao adotarem práticas de design que estimulam o uso excessivo, como notificações constantes, metas irreais ou recompensas artificiais. Tais práticas favorecem a dependência e efeitos adversos, incluindo ansiedade, estresse, distúrbios do sono e prejuízos à saúde mental.

Além disso, plataformas originalmente não destinadas à saúde, como aplicativos de mensagens, redes sociais e ferramentas de videoconferência, têm sido adaptadas para essa finalidade de assistência à saúde, especialmente após a pandemia de Covid-19.

Nesse cenário, cresce a preocupação de autoridades públicas e organizações da sociedade civil em relação a práticas de design que estimulam dependência e  personalização excessiva. Recursos como rolagem infinita, notificações push e filtros de rosto que promovem padrões de aparência irreais intensificam essas preocupações, especialmente em relação ao público jovem.

Estudos têm evidenciado os impactos nocivos do uso inadequado da tecnologia na saúde das pessoas. Três efeitos principais se destacam: 1) mudanças de hábitos, configurando fatores de risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs);  2) o surgimento de novos vícios ou a intensificação de vícios antigos; como jogos de azar e jogos online em geral e uso excessivo de redes sociais e celulares; e 3) impactos na saúde mental e no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

No que diz respeito aos hábitos de vida e saúde das populações, pesquisas indicam que o uso excessivo de dispositivos digitais e redes sociais contribui para o aumento do sedentarismo, elevando o risco de condições crônicas, como obesidade e hipertensão.

Dados de 2024 do IBGE revelam que 84% dos jovens brasileiros são sedentários, enquanto o índice de adultos é inferior a 50%. Esses números levaram o Brasil a ocupar, em 2024, o quinto lugar no ranking mundial de sedentarismo.

Quanto aos vícios relacionados à tecnologia, o impacto observado em todas as gerações têm mobilizado debates internacionais. Países como Inglaterra e Suécia discutem políticas públicas específicas para combater essas adicções. No Brasil, o vício em apostas online, por exemplo, tornou-se pauta do Ministério da Saúde.  Segundo um levantamento recente, a maioria dos apostadores são homens adultos entre 30 e 49 anos, embora idosos também estejam comprometendo parcelas significativas de suas aposentadorias nesses jogos.

Outro aspecto preocupante é o aumento exponencial do número de suicídios e  automutilação entre jovens, bem como o crescimento de transtornos alimentares e de imagem, especialmente entre as meninas.

Segundo dados levantados pela Fiocruz, a taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% ao ano entre 2011 e 2022, e as taxas de notificação por autolesões aumentaram 29% a cada ano nesse mesmo período (na faixa etária de 10 a 24 anos). As causas desse aumento são multifatoriais, mas alguns estudos indicam que as redes sociais desempenham um papel central nesse crescimento.

Já em crianças, o uso excessivo de telas tem prejudicado o desenvolvimento de habilidades motoras, que normalmente são adquiridas por meio do brincar livre e da exploração de parques, da natureza e de outros espaços de socialização.

Diante desses fatores, cresce no Brasil a tendência de elaboração de políticas públicas, programas e ações de proteção da integridade física e mental das pessoas no ambiente virtual. Estados e municípios têm adotado medidas como a proibição do uso de celulares em escolas, iniciativa que também tramita em âmbito nacional por meio do PL 104/2015. Outro projeto relevante é o PL 2628/2023, chamado de ECA Digital, que busca proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais.

No que se refere às apostas online, a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental, cuja secretaria-executiva é conduzida pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), apresentou em outubro duas iniciativas: um requerimento solicitando a elaboração de políticas públicas de prevenção e tratamento psicossocial para problemas relacionados a apostas e jogos de azar; e o PL 3810/24, que cria o Fundo Nacional de Prevenção ao Vício em Apostas.

Ainda que as necessidades e limites da regulamentação de tecnologias digitais seja um campo pouco explorado e com consensos não estabelecidos, existe um déficit de entendimento, por parte dos usuários, sobre uso adequado dessas ferramentas, ao passo que também não há regulamentação do desenvolvimento desse tipo de plataforma.

Para reverter esse cenário e promover a criação e uso mais eficaz e seguro dessas tecnologias, é fundamental um movimento coordenado que envolva: 1) adoção de critérios éticos e regulamentações que restrinjam práticas manipulativas no design das plataformas, assegurando que seus benefícios, como aqueles proporcionados por plataformas de assistência à saúde, sejam plenamente aproveitados, sem que falhas de design comprometem sua eficácia ou causem danos aos usuários; 2) promoção de educação midiática e o uso consciente da tecnologia desde a infância e ao longo de toda a vida, destacando que a saúde digital também pode ser uma ferramenta valiosa para promoção de literacia e autocuidado em saúde; 3) investimento  em espaços públicos para atividades offline, como lazer, esporte e cultura, que tornem os territórios mais saudáveis e ofereçam alternativas ao uso excessivo e prejudicial de dispositivos digitais pela população.

A rápida transformação trazida pela tecnologia exige que a política acompanhe esse ritmo, não apenas para regular e mitigar os riscos do uso inadequado, mas também para potencializar os benefícios das ferramentas digitais e responder às demandas atuais.

No campo da saúde, o desafio é entender como a saúde digital pode ser utilizada como um contraponto a esses problemas. Mais do que impulsionar a digitalização da saúde, é preciso promover ambientes digitais que contribuam para a construção de hábitos saudáveis, adicionando uma nova camada de atuação ao sistema de saúde.