TrateCov indicava cloroquina e outros remédios sem eficácia a quase todos pacientes

JOTA.Info 2021-01-22

Não durou uma semana o aplicativo TrateCov, lançado pelo ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na semana passada em visita a Manaus e propalado pelo general da ativa como uma diretriz para o “tratamento precoce” da Covid-19. 

Ao analisar o código fonte do aplicativo, o JOTA Labs constatou que em praticamente todas as formas de preenchimento do formulário do app levariam à combinação de um kit de remédios para tratar a Covid-19. Não há comprovação científica de que tais medicamentos funcionem no tratamento da doença.

O objetivo do Ministério da Saúde era testar o TrateCov em Manaus, que passa pelo pior momento da pandemia, com a perspectiva de expandir seu uso para outras regiões do país. A intenção esbarrou nas críticas de especialistas e até do Conselho Federal de Medicina (CFM), que se manifestou em nota, nesta quinta-feira (21), pedindo ao ministério a retirada imediata do ar do aplicativo TrateCov.

O aplicativo era bastante simples. Trazia um formulário (anamnese) com 52 campos de informações sobre o paciente para serem preenchidos por profissionais de saúde cadastrados. Ao final, o aplicativo calculava o escore do paciente, uma “pontuação de gravidade” entre 0 a 92 sem qualquer sofisticação quantitativa, a partir do qual recomendava seis opções de tratamentos para o médico prescrever. O problema: o aplicativo faz uma combinação de tratamentos com a prescrição dos medicamentos hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, azitromicina, doxiciclina e sulfato de zinco em 30mg ou 50mg. Nenhum destes medicamentos tem eficácia comprovada contra a doença

Além disso, caso o médico optasse por não receitar um dos seis tratamentos sugeridos pelo aplicativo, ele precisaria informar no próprio aplicativo o motivo pelo qual não prescreveu um tratamento — por exemplo, pora “recusa do paciente”, “contraindicação médica” ou “falta do medicamento”.

Apesar de a ferramenta ser voltada a médicos, qualquer um poderia simular uma consulta com o aplicativo TrateCov, o que fez com que vários testes e memes fossem publicados nas redes sociais ao longo desta quarta-feira (20).

TrataCov: o código-fonte

O JOTA analisou o código fonte do aplicativo e constatou que, de todas as informações do paciente, apenas 28 informações distribuídas em três seções do formulário podiam influenciar o escore do paciente. 

Essas informações são relacionadas a manifestações clínicas da Covid-19, sinais de gravidade e a presença de sintomas de falta de ar.

Todas as combinações levavam a indicação da prescrição dos mesmos seis tratamentos. Apenas com modulação para a quantidade de sulfato de zinco, que aparece com a opção de indicação de 30mg ou 50mg.

Uma pergunta no questionário que chamou bastante a atenção, mas que também não exercia qualquer efeito no resultado da pontuação, era se o paciente apresentava calvície ou alopécia. 

As simulações realizadas mostraram que o app recomendava sempre os mesmos seis tratamentos para qualquer paciente, com qualquer combinação dos valores e informações do paciente. Inclusive, sem levar em consideração informações de idade, sexo, peso, exposição ao vírus e hábitos de vida. Nem se o paciente é homem ou mulher, jovem ou adulto saudável, ou idoso com múltiplas comorbidades.

A seguir, o JOTA extraiu a pontuação completa das variáveis que são consideradas no aplicativo do governo:

Presença de anosmia?PontuaçãoSim6Não0Presença de disgeusia ou hiposmia?Sim5Não0Contato domiciliar com caso confirmado de COVID-19?Sim4Não0Contato no trabalho com caso confirmado de COVID-19?Sim1Não0Sintomas inespecíficosFebre3Fraqueza3Fadiga3Perda de apetite3Tontura3Sintomas gripaisTosse seca3Sinusite3Congestão nasal3Dor de garganta3Rinorréia3Cefaléia/ dor de cabeça3Sintomas de dengueArtralgia3Hiperemia conjuntival3Dor em coluna torácica3Dor em membros inferiores3Mialgia3Lombalgia3Cervicalgia3Dor retrorbital3Sintomas gastrointestinaisDor abdominal3Diarreia3Náuseas3Sinais de GravidadeSaturação de oxigênio < 92% em ar ambiente?Sim5Não0Presença de falta de ar?Sim5Não0

A prescrição dos tratamentos começava com uma pontuação bastante baixa. O critério de decisão do algoritmo era simples: se o paciente obtivesse uma valor entre 4 e 5 pontos, o app já indicava como “provavelmente Covid-19”. E para qualquer valor de pontuação superior a 6, o app indicava “diagnóstico de Covid-19”.  

De todas as 268 milhões de diferentes possibilidades de responder ao formulário, em apenas cinco o paciente não alcançava pontuação igual ou superior a 4. Ou seja, bastava o paciente relatar que teve diarreia, alergia ou perda de apetite para receber a indicação de iniciar o “tratamento precoce” proposto pelo Ministério da Saúde, como apresenta a figura a seguir: