Distorção do instituto do vício formal: uma tentativa de salvar lançamentos fiscais

JOTA.Info 2021-03-02

O embate travado entre a Fazenda Nacional e os contribuintes na caracterização da nulidade como vício formal ou vício material não é algo novo para os advogados que atuam no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Pelo contrário, esse tema já figurou, e ainda figura, em diversas discussões importantes no tribunal administrativo, não tendo nunca integrado um lugar de consenso, seja pelas turmas ordinárias do Carf, seja pelas Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, pelos contribuintes ou pelos representantes da Fazenda Nacional.

O principal motivo da polarização entre a conclusão pelo vício formal ou material está na possibilidade de a Administração Pública proceder com novo lançamento, corrigindo os vícios inicialmente verificados, quando a conclusão é pela nulidade por vício formal.

O artigo 173, inciso II, do Código Tributário Nacional (CTN), traz o prazo de cinco anos para a Fazenda Pública constituir o crédito tributário, contados da “data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.”. Ou seja, apenas os lançamentos anulados por vício formal possuem a chance de serem refeitos, ao passo que os anulados por vício material são definitivamente extintos, não restando qualquer possibilidade de nova discussão sobre aquele suposto crédito tributário inicialmente lançado.

Em razão disso, verificam-se diversas decisões do Carf que anulam os lançamentos por vício formal, mesmo quando esses vícios são na motivação do lançamento, em completo desrespeito ao que determina o artigo 142 do CTN – norma que veicula um dever ao Fisco, mas também garante aos contribuintes o direito de não sofrerem imposições tributárias sem lastro fático e probatório, bem como a devida subsunção dos fatos às normas.

Assim, não raro vemos autuações que não apontam com clareza ao contribuinte os motivos fáticos e jurídicos que levaram ao lançamento, por vezes pela utilização de base de cálculo completamente estranha ao tributo lançado ou pela incompatibilidade entre a descrição fática e os dispositivos legais utilizados.

Se partimos das determinações do artigo 142 do CTN (e seus deveres à fiscalização), temos que estes e outros diversos erros deveriam ser considerados vícios materiais.

Como exemplo, podemos citar julgamento de Recurso Especial interposto pela Fazenda Nacional, contra acórdão da câmara baixa que havia anulado o lançamento por vício material. A 2ª Turma da Câmara Superior, ao proferir o acórdão 9202-009.336, concluiu que o fato de a Notificação para Recolhimento de Débito não apontar adequadamente os fatos que ensejaram a autuação justificaria a anulação por mero erro formal.

Para o relator do acórdão, o vício material seria verificado apenas quando há um erro na interpretação da regra matriz, de modo que, no caso concreto, a inexistência de um relatório fiscal que apontasse objetivamente os fatos que fundamentaram a autuação seria mero erro de motivação que deve ser interpretado como vicio formal[1].

Em outro processo, foi identificado que o lançamento possuía diversas inconsistências: (i) divergência entre o dispositivo legal utilizado na autuação e as conclusões do relato da fiscalização; (ii) falta de motivação “pois a fiscalização não explicou o que seria ‘importação irregular ou fraudulenta’ e como isso se atrela às alterações nas informações cambiais”; e (iii) arbitramento do valor comercial da mercadoria (base de cálculo utilizada para o lançamento da multa) sem indicação de fundamento legal para referido procedimento.

A despeito de todas essas incorreções de essência do lançamento, que inviabilizam completamente o entendimento da autuação, o Carf, ao proferir o acórdão nº 3401-008.131, manteve o acórdão recorrido, anulando o lançamento por simples vício formal.

Ora, se não há fatos devidamente relatados para que esteja configurada a hipótese legal prevista na regra matriz, claramente há um vício na essência do lançamento, configurando, assim, o vício material. Afinal, o referido artigo 142 do CTN determina que a autuação fiscal deve verificar “a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente” para somente aí “determinar a matéria tributável” e “calcular o montante do tributo devido”.

Nesse contexto, havendo uma distorção nas delimitações do alcance do vício formal em contraponto ao vício material, os erros de essência cometidos pela Administração Pública acabam por prejudicar o contribuinte em dose dupla, vez que ele arca com o ônus de se defender de uma autuação nula que será refeita sem observar o prazo decadencial de lançamento.


O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:


[1] Nessa mesma linha de raciocínio podemos citar os acórdãos de nº 9202-009.098 e 9202-008.888.