Como fazer da concessão um nada jurídico: o caso Lamsa

JOTA.Info 2021-03-02

Tornaram-se tristemente famosas as retroescavadeiras destruindo pedágios no Rio de Janeiro em 2019, quando a municipalidade deu início ao processo de encampação da concessão da Linha Amarela. A retomada coercitiva de concessão feita pelo Poder Público ainda na gestão do então prefeito Marcelo Crivella está em discussão judicial e administrativa.

Porém, a chegada de Eduardo Paes à prefeitura pareceu que faria o Rio de Janeiro voltar à legalidade e ao respeito aos contratos. O grupo de trabalho criado para estudar o caso chegou a ser um suspiro de esperança. Mera ilusão. Primeiro, a pressão por tarifas módicas fez surgir pela nova administração o anúncio de um valor mágico de R$ 3,00, que seria suficiente para substituir o antigo pedágio de R$ 7,50. Em manifestação recente, contudo, o Poder Público informou que promoverá nova licitação sobre a concessão da via, sob o argumento de que a concessionária não teria aceitado o valor da tarifa proposto para negociação.

Permanece uma complexa discussão sobre reequilíbrio contratual e outros direitos relativos à concessão.

Muito já se falou sobre a inadequação da encampação, ou sobre a rasa decisão proferida no Superior Tribunal de Justiça (STJ) no fim de 2020, que devolveu a operação à municipalidade sem qualquer base jurídica sólida. Foram vários os juristas que condenaram as falhas técnicas da decisão. O perigo da condescendência do Judiciário com os rompantes autoritários dos governantes também não passou despercebido. A ação do Crivella trouxe a lembrança de que o Poder Judiciário deveria barrar tal atitude, assim como fez quando cumpriu papel fundamental ao colocar um basta no caso do então governador Requião, quando ele se animou em dar fim às concessões de rodovias do Paraná, numa canetada, em 2003.

Naquela ocasião, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) foi categórico ao afirmar a ilegalidade das leis que permitiam a encampação antes da respectiva indenização, nos seguintes termos:

São ilegais as interpretações das Leis do Estado do Paraná n° 14.061, 14.062, 14.063, 14.064, – 14.065, 14.066, todas de 07.07.2003, que indique ser possível a realização da encampação dos contratos de concessão a que se referem antes do efetivo pagamento de indenização pela retomada dos serviços, devendo os réus Estado do Paraná, Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do Paraná, Roberto Requião de Mello e Silva e Rogério Wallbach Tizzot se absterem de praticar qualquer ato tendente a dar cumprimento às leis mencionadas[1].

Ao expressar o óbvio, o Tribunal assegurou os termos da lei e afastou o impulso autoritário que rondava a Administração estadual.

Muito se poderia dizer sobre essa patologia. Mas nos toca aqui um outro aspecto.

Trata-se do argumento, trazido pelo Poder Concedente, de que seria lícito promover a encampação sem a prévia indenização do concessionário, embora haja expressa previsão neste sentido na Lei Geral de Concessões (Lei 8.987/1995, art. 35, § 4º). Na tese abraçada pelo Município, bastaria ao Poder Concedente oferecer uma caução por ele mesmo precificada, para que a prestação dos serviços pudesse ser retomada. Depois disso, poder-se-ia discutir a legalidade da encampação e o possível valor de indenização pelo tempo que fosse necessário no Poder Judiciário.

Ou seja, a criativa tese municipal contorna a exigência da lei e do contrato para esvaziar a proteção reforçada do contrato de concessão face à discricionariedade do poder público em desfazer o contrato.

A encampação, como se sabe, é prevista legalmente como hipótese de rescisão unilateral da concessão pelo Poder Concedente. Por se tratar de hipótese extraordinária, que põe fim à relação contratual e à legítima expectativa do Concessionário frente ao contrato firmado, é que a lei estipulou requisitos prévios, os quais devem ser observados pelo Poder Concedente como requisito para a retomada da concessão.

A ausência dessas providências, respeitada a hipótese de emergência, inviabiliza a encampação. Significa dizer que, salvo situação excepcional, o Poder Concedente não pode promover a encampação sem a adoção prévia de providências legais, entre elas, o pagamento de indenização ao Concessionário.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já analisou o tema quando do julgamento da ADI 1.746/SP, que questionava artigo da Constituição do Estado de São Paulo, o qual estabeleceu prazo de 25 anos para indenização da empresa concessionária de água e esgoto, caso algum município atendido entendesse por prestar o serviço de forma direta.

Entre outras considerações, o Tribunal consignou que:

O poder de modificar unilateralmente o contrato constitui prerrogativa à disposição da Administração para atender ao interesse público, e não instrumento de arbitrariedade ou fonte de enriquecimento ilícito do Estado. Assim se depreende não apenas das garantias decorrentes da observância do ato jurídico perfeito, mas do artigo 37, inciso XXI, da Carta da República, o qual impõe à Administração o respeito às condições efetivas da proposta formalizada.

(…)

Assim, o cálculo do valor, o modo e o prazo para o pagamento da indenização devida em virtude do encerramento antecipado do pacto administrativo, por motivos de conveniência e oportunidade, integram o núcleo de direitos iniciais que devem ser preservados durante o contrato de concessão[2].

Em conclusão, o STF declarou inconstitucional a norma estadual, por considerar que esta violava os temos da lei geral de concessões e do próprio contrato firmado entre as partes, no que tange à forma e tempo de pagamento de indenização ao Concessionário no caso de encerramento antecipado do contrato.

O efeito da construção teórica municipal gera, num primeiro momento, a aproximação da encampação com a desapropriação na medida em que a retomada dos serviços poderia ser caracterizada como a etapa de imissão provisória na posse. Pior, se ratificada judicialmente a tese, até mesmo a garantia da incolumidade da propriedade face à desapropriação estaria esvaziada. Explicamos.

A desapropriação se caracteriza pela transferência compulsória de determinado bem particular para o Poder Público, mediante o depósito prévio de justa indenização. A imissão provisória na posse, sabemos, tem a finalidade de garantir que sejam atendidos os fins que justificaram a desapropriação (necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, de acordo com a Constituição Federal, art. 5º, XXIV), ante a demonstração de urgência pelo expropriante. Mesmo na imissão provisória, exige-se o depósito de um valor previamente arbitrado, em dinheiro. Comparando, a desapropriação está para a imissão da posse assim como a encampação estaria para a intervenção, fosse este instituto possível em caso outro que não no de caducidade.

O argumento de que seria possível a aplicação, por analogia, do procedimento previsto para o processo de desapropriação mistura dois conceitos que não possuem qualquer relação, seja pela natureza jurídica totalmente distinta que possuem, seja pelas finalidades que buscam.

A única semelhança entre a desapropriação e encampação é o sufixo. E isso não autoriza a aproximarmos a encampação da usurpação ou da expropriação. Não há em Direito analogia por sufixação.

Mas, para além de uma aproximação entre institutos distintos, se ratificada judicialmente a tese, até mesmo a desapropriação se convolaria em mera expropriação da propriedade, tal como no confisco. Sim, pois a Constituição Federal exige indenização prévia e justa para perda da propriedade, ressalvada a hipótese de perdimento de bem resultado de crime ou de emprego da propriedade na produção de entorpecentes ou que faça uso de trabalho escravo. Pois bem. Se a exigência de prévia indenização na desapropriação puder ser entendida como suprida com uma caução ou o oferecimento de um título ou precatório em troca, restará aviltada a garantia. O mesmo que está a ocorrer com a peculiar tese carioca.

Para agravar o desatino da tese, o atual Prefeito engrossou o coro de seu antecessor, dizendo que não acreditaria ser devida nenhuma indenização, pois aparentemente a Concessionária já teria ganhado o suficiente. Manifestações como essa não passam despercebidas entre os que enxergam valor na segurança jurídica das contratações. Paes precisa lembrar que ganhou as eleições, mas ainda precisa ganhar a confiança dos investidores.

Que o retrato dos novos tempos não seja o da destruição, simbólica ou concreta, das parcerias que poderão existir entre o Poder Público e os privados que ainda tenham disposição de contratar com o Município do Rio de Janeiro. Será muito útil se o Poder Judiciário ajudar na tarefa, afastando teses estapafúrdias como a que relatamos aqui e, assim, deixando claro aos investidores que, ao menos em última instância, a razão impera.


O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:


[1] TRF 4, Ap 0039246-98.2003.4.04.7000, Rel. Desembargador Fernando Quadros da Silva, DJ 09.11.2011.

[2] STF, ADI: 1746 SP, Relator: Min. Marco Aurélio, DJ 13.11.2014.