Um juiz de garantias para casos de improbidade administrativa

JOTA.Info 2021-03-02

Que as garantias processuais previstas na Constituição Federal não se limitam ao campo do processo penal, parece não haver qualquer dúvida, da mesma forma que é induvidosa a incidência do devido processo legal no âmbito do denominado direito sancionatório, constituído por diversos subsistemas (o subsistema penal, o subsistema político-administrativo, o subsistema administrativo e também o subsistema da Lei n. 8.429/98).

Dentre as garantias processuais, a imparcialidade judicial tem sido a mais desprezada entre nós, inclusive por quem deveria por ela velar, ou seja, o Poder Judiciário. Tal desprezo contraria o status constitucional conferido ao tema, que na Carta Política encontra previsão em diversas passagens: no art. 5º, XXXVII, que prevê que não haverá juízo ou tribunal de exceção, e no inciso LIII do mesmo artigo, que estabelece que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; no art. 95, caput, que blinda o juiz com as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios; no mesmo art. 95, parágrafo único, quando veda aos magistrados o exercício de outro cargo ou função, salvo uma de magistério, o recebimento de custas ou participação em processo, a dedicação à atividade político-partidária, o recebimento de auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, o exercício da advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração; no art. 129, I, que consagra o sistema acusatório ao cometer ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública; e por aí vai.

Também na Convenção Americana de Direitos Humanos a imparcialidade judicial, que abrange a independência institucional dos Tribunais, vai receber tratamento de destaque, mais especificamente em seu art. 8o, 1, caput, que estabelece que “ toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

Como se sabe, a imparcialidade exige do juiz uma posição de alheação aos interesses das partes, a postura de um personagem que está “para além” dos interesses dos litigantes, sendo essa uma verdadeira condição de legitimidade política e social da jurisdição. Há ainda muito a avançar neste tema, inclusive na perspectiva da formação dos magistrados brasileiros e sua conscientização à importância da imparcialidade para o regime democrático, mas um ganho importante ocorreu com o advento da Lei n. 13.964/19 (Lei do “Pacote Anticrime”) que introduz significativas alterações ao art. 3º do CPP.

Dentre tais alterações, merecem destaque, para o tema que ora nos interessa, o novo art. 3º-A, que consagra a estrutura acusatória no processo penal e veda a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação; o art. 3º- B, XI, que comete ao juiz das garantias o papel de guardião dos direitos fundamentais do investigado, através da previsão de hipóteses de reserva de jurisdição (o acesso a informações sigilosas, por exemplo); o art. 3º-C, § 2º, que estabelece uma divisão de trabalho entre o juiz das garantias e  o juiz da instrução e julgamento, ao prever que as decisões proferidas pelo primeiro não vinculam este último, a quem cabe o reexame da necessidade das medidas cautelares em curso; o art. 3º-C, § 3º, que impede qualquer contato do juiz da instrução e julgamento com os autos de procedimentos investigatórios que tenham servido à formação do convencimento do juiz das garantias, ressalvadas, as denominadas “provas irrepetíveis” (documentos e perícias), medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas; e o art. 3º-D, que estatui que o juiz que praticar qualquer ato na fase investigatória ficará impedido de funcionar no processo. Esta última regra, somada às previsões acima destacadas, tem por objetivo evitar o comprometimento psicológico do juiz da instrução e julgamento, sobretudo a tendência, empiricamente verificada, de confirmação (viés de confirmação), na condução do processo e na sentença, de decisões provisórias tomadas anteriormente, ou seja, na fase investigatória.

Ora, se os processos por improbidade administrativa são cercados pelas garantias constitucionais, como visto, como todo e qualquer processo de que possa resultar a restrição de direitos fundamentais, parece-nos induvidosa a aplicação do juiz das garantias também na seara da improbidade administrativa.

E não deve causar surpresa tal possibilidade, embora as sanções previstas na Lei n. 8.429/92 não possuam natureza penal, na medida em que é no campo do processo penal que iremos encontrar soluções que melhor se amoldam ao direito sancionatório e aos processos de interesse público, respostas que em muitos momentos nem a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) nem a legislação processual civil nos oferecem, esta última forjada para a solução de conflitos privados.

Naturalmente, como nos lembra Zaffaroni, imparcialidade e neutralidade não se confundem, o juiz não pode ser alguém “neutro” porque não existe neutralidade ideológica, sendo inconcebível pretender que um juiz não  participe de certa ordem de ideias, que não tenha uma compreensão do mundo.[1]  Trata-se de uma antiga advertência, presente também no velho Carnelutti, para quem o “drama” da função jurisdicional consiste, justamente, no fato ser o juiz um homem, e no dever de ser mais que um homem, uma parte acima das partes, uma supraparte.[2] Daí não se segue, contudo, a promiscuidade, com o perdão da expressão de forte carga moral, que vem marcando as relações nada republicanas e antidemocráticas entre alguns juízes e membros do Ministério Público, como temos visto no noticiário recente.

Enfim, como tem sido defendido pela nova geração de valorosos processualistas, com acerto e rigor científico,[3] a imparcialidade judicial precisa ser levada a sério. E levá-la a sério significa aplicar a figura do juiz das garantias ao direito sancionatório brasileiro em sua integralidade, o que inclui os processos por improbidade administrativa.


O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:


[1] Zaffaroni,Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 92.

[2] Carnelutti, Francesco. As misérias do Processo Penal. Campinas: Bookseller, 2001, p. 34.

[3] Costa, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a Sério. Salvador: Editora Juspodium, 2018.