Julgou daquela vez como se fosse a última

JOTA.Info 2021-04-06

Com a devida licença poética, damos título ao texto que se seguirá adotando por adaptação trecho de famosa canção da música popular brasileira [1] para, ato contínuo, lançarmos importante reflexão, não exaustiva, a julgamento ocorrido no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf); sendo que, ao leitor e ao final caberá responder os seguintes questionamentos. Tratou-se de ato decorrente de abuso de direito ou observação a dever funcional? Foi hipótese de violação a Súmula do Tribunal Administrativo ou foi prática de não aplicar dado precedente vinculante por se reconhecer que a situação sob exame não se encartava em parâmetros de matéria sumulada?

Pois bem, ao leitor chegou – na semana que passou – notícia sobre conselheiros com representação dos contribuintes que teriam sofrido ameaças de presidente de Turma ordinária de Câmara do Carf [2], em sessão de julgamentos gravada, uma vez que realizada na roupagem virtual. Também foi divulgada a reação do Conselho Federal da OAB, que teria pedido a abertura de investigação para o suposto ato abusivo cometido [3]. Outras tantas Notas de Repúdio foram lançadas: Movimento de Defesa da Advocacia (MDA); Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA); e, Associação dos Conselheiros dos Contribuintes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Aconcarf). O Conselho de Contribuintes postou, em 1º de abril, Nota de Esclarecimento consignando que “é dever de todos os Conselheiros, e não apenas dos Presidentes de Turma, zelar pelo cumprimento das súmulas, que representam a jurisprudência pacificada e vinculante do Órgão”, sendo que situações de ‘distinção’ devem ser analisadas caso a caso. [4]

Importante destacar, em apertadíssima síntese, que a matéria de fundo em debate naquele julgamento era se atraída para o caso concreto a prescrição intercorrente, matéria considerada não aplicável para o processo administrativo fiscal, segundo Súmula CARF nº 11 do Tribunal Administrativo. A distinção para o processo em exame estaria para o fato de se estar sendo julgado tema aduaneiro e não tributário.

Observe-se que apesar de haver forte ligação entre o Direito Aduaneiro e o Direito Tributário o entendimento harmonioso é o de que o primeiro “é ramo autônomo multidisciplinar e extremamente complexo.” [5]

Note valoroso legente que é de extrema dificuldade chegar-se a uma resolução para os questionamentos feitos no início deste expediente. Aliás, no curso da redação do texto deixamos algumas pistas para auxiliá-lo em possível manifestação de posição; sendo que aqui vai mais uma, o Regimento Interno do CARF em diversas passagens trata da perda de mandato (arts. 20, 28, 33, 40 e 45), entre essas figurando a que trata da não observação de súmula pelos conselheiros.

Ora, em tempos de polarização opinativa, cremos que o Carf também restou contaminado por tal movimento da sociedade contemporânea brasileira, pois: a uma, o dever funcional do presidente transmutou-se em abuso de autoridade, e a tentativa de explicar a distinção para a possível aplicação de tese jurídica voltou-se contra a obrigação de se observar o processo administrativo fiscal e demais regras.

E seria possível se extremar tanto os posicionamentos – ou esticar a corda – quando se identifica conflito até entre Súmulas do próprio Tribunal Administrativo? [6]

Não é de hoje que o nós contra eles estabeleceu-se no corpo julgador do Tribunal Administrativo, cujo marco temporal tem origem com a deflagração da Operação Zelotes.

Permita-nos assim afirmar a identificação, com a pouca liberdade que nos remanesce, uma vez que os conselheiros representantes da Receita Federal do Brasil não se permitiram mais – instintivamente e como defesa – a sequer refletir sobre o viés dos contribuintes sobre as teses colocadas para sua análise. A jurisprudência retroagiria de modo gravoso [7]. Enquanto a representatividade dos conselheiros dos contribuintes passaria a votar pela derrubada de toda exigência tributária, quase que exclusivamente pelo fato tão somente firmar posicionamento contrário aos argumentos de seus pares fazendários.

Pior para os que ousassem contrariar essa postura institucional que se construiu. Tomemos a título ilustrativo a não recondução ao cargo de conselheiro auditor que proferiu voto favorável à derrubada de exigência lastreada na tese de ágio amortizado por contribuinte (Acórdão nº 1101-00.708). A decisão foi revertida na Câmara Superior e, judicializada, o entendimento favorável ao contribuinte foi reconhecido pelo Poder Judiciário (Processo nº 5058075-42.2017.4.04.7100 – 16ª Vara da Justiça Federal em Porto Alegre).

Ocorre que os ânimos exaltados começaram a dar espaço à razoabilidade e racionalidade, até que editada a Lei nº 13.988, de 2020 (artigo 28), promovendo alterações no voto de qualidade, que passou a ser computado favoravelmente aos contribuintes. Por lealdade, registramos que o dispositivo mencionado está sob julgamento pelo plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), com voto do ministro-relator pela declaração de inconstitucionalidade.

Com a edição da norma mencionada, o recrudescimento de entendimentos voltou a ganhar corpo e musculatura, desencadeando em novas situações de enfrentamentos, abertas e fechadas, entre os conselheiros julgadores, como a da hipótese amplamente divulgada e ora apresentada neste artigo.

Cremos que os extremos serão devidamente acomodados pelo Carf, tanto para o exercício do dever, como para o enfrentamento do dever, advertindo-se os excessos cometidos, até porque entre pares não há vencedores e perdedores, há, sim, a busca por fazer valer a entrega de justiça fiscal; pois a contrário prevalecerá a seguinte estrofe da canção [8]:

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego


O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:


Referências

[1] Construção, música que dá título ao “Long Play” (LP) lançado em 1971 por Chico Buarque

[2] ‘Carf: conselheiros dos contribuintes se dizem coagidos por presidente de turma’ – Disponível em https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/carf-conselheiros-dos-contribuintes-se-dizem-coagidos-por-presidente-de-turma-31032021 , acessado em 03 de abril de 2021

[3] ‘Comissão da OAB pede que conselheiro do Carf seja representado por intimidação’ – Disponível em https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/comissao-da-oab-pede-que-conselheiro-do-carf-seja-representado-por-intimidacao-01042021, acessado em 03 de abril de 2021

[4] Nota de Esclarecimento – Disponível em http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2021/nota-de-esclarecimento, acessado em 03 de abril de 2021

[5] MORAES, A. F. de; BREDA, F. A. R. “CARTILHA DE DIREITO ADUANEIRO” – Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP – Disponível em https://www.oabsp.org.br/comissoes2010/gestoes-anteriores/direito-aduaneiro/cartilhas/Direito%20Aduaneiro%20-%202014.pdf, acessado em 03 de abril de 2021

[6] O conflito entre Súmulas na disputa pela regência de fato típico – Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/o-conflito-entre-sumulas-na-disputa-pela-regencia-de-fato-tipico-25082020, acessado em 03 de abril de 2021

[7] ‘Precisamos falar sobre o Kevin’ – Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/precisamos-falar-sobre-o-kevin-13122016, acessado em 03 de abril de 2021

[8] Estrofe da música “Construção”, mencionada em [1]