Autonomia do Banco Central e Constituição

JOTA.Info 2021-04-06

Em 24 de fevereiro de 2021, foi editada a Lei Complementar nº 179, segundo a qual o Banco Central do Brasil passa a ser “autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos” (art. 6º).

O advento da chamada Lei da Autonomia foi precedido de mais de 30 anos de discussões no Parlamento brasileiro, tendo o longo percurso legislativo começado com o projeto de lei apresentado pelo então senador Itamar Franco em 1989.[1] Nada obstante, seguindo o roteiro que já se tornou hábito em nosso contexto de judicialização[2], a Lei da Autonomia foi quase que imediatamente impugnada por meio de ação direta de inconstitucionalidade.[3] O principal argumento da ação direta é o suposto vício de iniciativa na aprovação do projeto de lei complementar (PLP nº 19, de 2019, de origem do Senado Federal), defendendo-se que a matéria tratada seria reservada à iniciativa do Chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 61, § 1º, inciso II, alíneas “c” e “e”, da Constituição.[4]

Argumentam os autores que o reconhecimento legal da autonomia do Banco Central, mediante o estabelecimento de nomeação a termo de seus dirigentes, é matéria reservada a lei de iniciativa do Presidente da República, uma vez que o assunto trata de mera organização administrativa.

A intenção deste breve ensaio é demonstrar que a autonomia legal do Banco Central vai muito além da fixação de mandatos para seus dirigentes. A autonomia consagrada na Lei Complementar nº 179, de 2021, representa, em verdade, a concretização de um programa constitucional de defesa da estabilidade do valor de compra da moeda e da instituição responsável por manter essa estabilidade.

Abordar esse tema exige discutir previamente o que se deve entender por autonomia de um banco central e compreender em que termos o Banco Central brasileiro foi concebido pela Constituição. Enfim, em que termos o poder constituinte concebeu a criação de um órgão encarregado de exercer com exclusividade a competência da União para emitir moeda (art. 164).

A autonomia das autarquias em geral é compreendida como diretamente vinculada ao estabelecimento de mandatos para os seus dirigentes. As autarquias são tidas como especiais justamente em razão do mandato a termo de seus dirigentes: “a única particularidade marcante do tal regime especial é a nomeação pelo Presidente da República, sob aprovação do Senado, dos dirigentes da autarquia, com garantia, em prol destes, de mandato a prazo certo.”[5]

A legislação de gestão das agências reguladoras confirma essa ideia ao estabelecer que a natureza especial “é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos” (art. 3º, caput, da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019). Essa disposição legal, aliás, tem termos bastante próximos à previsão do já referido art. 6º da Lei Complementar nº 179, de 2021.

A rigidez dos mandatos, porém, não deve levar à percepção equivocada de que ela extirpa qualquer hipótese de controle do Poder Executivo sobre os mandatos desses dirigentes. Com efeito, o estabelecimento dos mandatos, no contexto constitucional brasileiro, pressupõe necessariamente, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, hipóteses em que a exoneração ou a destituição dos dirigentes contenha a participação ativa da chefia do Executivo, sob pena de inconstitucionalidade.[6] Bem por isso, tanto a Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, art. 9º, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos nas agências reguladoras, quanto a Lei Complementar nº 179, de 2021, art. 5º, contemplam hipóteses específicas de perda de mandato ou exoneração.

Não obstante o relevo dado aos mandatos a termo, a autonomia dos bancos centrais não está vinculada apenas à estabilidade dos mandatos. A autonomia de um banco central pode ser apurada em diversos aspectos: independência operacional, compreendida como a possibilidade de escolha dos instrumentos para gestão da moeda; autonomia finalística, entendida como discricionariedade para a definição dos meios e fins da política monetária; e, ainda, como autonomia política, que abrange a proteção tanto em relação à influência do governo central na gestão da moeda, como em relação a eventual influência do setor privado.

Finalmente, a autonomia deve ser encarada também sob o aspecto financeiro, a limitar, de um lado, o uso do poder monetário para realizar operações fiscais e, de outro, a possibilitar a utilização pelo banco central dos recursos necessários para cumprir o objetivo final da política de gestão da moeda, que é a estabilidade de seu poder de compra.[7]

Daí a conclusão de que não há relação direta e exclusiva entre rigidez de mandatos e autonomia. Jairo Saddi, por exemplo, aponta cinco condições para o estabelecimento de um banco central autônomo: (i) limitação de objetivos e funções, (ii) especificidade e precisão de metas, (iii) base estatutária para autonomia, (iv) garantias institucionais do Executivo e (v) nomeação da diretoria do banco central.[8]

A rigidez dos mandatos dos dirigentes é, pois, condição necessária, mas não suficiente da autonomia formal de bancos centrais. É preciso apurar na Constituição se o seu texto traz outros aspectos que ensejam ou mesmo requerem a autonomia do Banco Central.

Nesse ponto, o primeiro e certamente o mais relevante dos dispositivos é o art. 164 da Constituição. Logo na cabeça do dispositivo é possível vislumbrar um dos aspectos de autonomia diretamente assegurado ao Banco Central pela Constituição: a competência para, com exclusividade, emitir moeda. Na sequência, surge talvez o ponto culminante da autonomia do Banco Central: a proibição de funcionar como agente financiador do Estado. Com efeito, o § 1º do art. 164 da Constituição estabelece que o Banco Central não pode conceder, seja direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer outra entidade que não seja instituição financeira.[9]

Ainda no art. 164, já no seu § 2º, a Constituição, estabelecendo diretamente a autonomia sob aspecto financeiro, confere ao Banco Central a prerrogativa de operar “com títulos de emissão do Tesouro Nacional com o objetivo de regular a oferta de moeda e a taxa de juros.” Por aí se entrevê que as reuniões do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) são realizadas sob o manto de uma disposição constitucional específica. O estabelecimento da meta da taxa básica de juros a ser perseguida nas operações de mercado aberto – comprando e vendendo títulos públicos federais – é, assim, a concreção ou a execução material de uma diretriz constitucional.

Apesar do estabelecimento de alguns pressupostos específicos, o constituinte não concedeu mandato a termo aos dirigentes do Banco Central. A discussão sobre o tema revela ainda mais complexidade quando se soma ao fato de que os dirigentes do Banco Central são os únicos dirigentes de autarquia referidos expressamente pelo art. 52, inciso III, no qual estão listados os agentes públicos cuja escolha deve ser previamente aprovada pelo Senado Federal.

Afinal, parece um tanto despropositado estabelecer a necessidade de aprovação prévia para a nomeação e permitir a destituição desses dirigentes diretamente pelo Presidente da República e a qualquer tempo. Veja-se, inclusive, que, com exceção do governador de território[10], todos os demais agentes públicos referenciados no art. 52, inciso III, são dotados de mandato, hipótese do Procurador-Geral da República, ou de vitaliciedade, nas hipóteses de magistrados do Judiciário e ministros do Tribunal de Contas da União.

A hipótese de fixar na própria Constituição os mandatos dos dirigentes do banco central não é um tema que passaria despercebido nas discussões da assembleia nacional constituinte. Para se ter ideia da cuidadosa atenção do constituinte com os temas do sistema financeiro e monetário, vale mencionar, além das condições de autonomia do referido art. 164 da Constituição, a redação originária do art. 192 da Constituição, que trazia previsão até mesmo sobre o limite para a taxa de juros reais. Além disso, não se pode esquecer que o Banco Central do Brasil já havia tido um regime jurídico que contava com mandatos a termo para seus dirigentes, na redação original dos arts. 6º e 14 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964.

Realmente, em estudo sobre a história de nossa constituinte, já se apurou que a possibilidade de fixação de mandato foi efetivamente debatida e, mais, a única razão consignada nesses anais para a não previsão de mandato rígido para os dirigentes do Banco Central seria o fato de que não se considerou que o tema fosse materialmente constitucional.

“Com efeito, a única razão consignada pelo relator da CS [Comissão de Sistematização] para, excepcionalmente, retirar do Anteprojeto de Constituição que aquela Comissão submeteria ao Plenário da ANC [Assembleia Nacional Constituinte] uma matéria aprovada por Comissão Temática da Assembleia – como a proposta, sufragada no âmbito da CSTOF [Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças], de que se especificasse, no próprio texto constitucional, a duração de quatro anos para o mandato dos dirigentes do BCB – foi o fato de se tratar de ‘matéria que pudesse ser reputada de nível da lei ordinária’”. [11]

Sobre o ponto, aliás, parece justo crer que o constituinte considerou, ainda, o fato de que, no período em que instalada a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), a autoridade monetária, tendo em conta especialmente a inflação então vigente, não contava com maturidade institucional suficiente para merecer a previsão constitucional explícita de mandato. A inflação apurada entre fevereiro de 1987 e setembro de 1988 atingiu expressivos 2.037%![12] Daí concluir que pareceria mais prudente confiar ao legislador infraconstitucional discricionariedade para apurar o momento mais oportuno para estabelecer mandato para os dirigentes do Banco Central.

E não se pode negar que foi acertado o juízo do constituinte ao considerar esses aspectos. Diferentemente do Banco Central de 1998, o Banco Central de 2021 conta com muitos mais mecanismos de governança, transparência e controle, abrangendo desde aspectos de regulação de conflito de interesses à divulgação de uma agenda de trabalho que garante maior previsibilidade na atuação do Banco Central, passando também pelos ganhos de transparência decorrentes da edição da Lei de Acesso à Informação. A partir da conquista da estabilidade monetária, com a edição do Plano Real, a governança da instituição ganhou maturidade suficiente para, enfim, conquistar o consenso social e político que era necessário para se estabelecer mandato em favor dos dirigentes do Banco Central.[13]

Todavia, embora a Constituição não tenha estabelecido mandato para os dirigentes da Autarquia, as previsões contidas no seu art. 164 combinadas com as previsões do seu art. 52, inciso III, alínea “d”, fornecem as diretrizes para um programa constitucional de banco central autônomo. As previsões contidas na Lei Complementar nº 179, de 2021, dão, portanto, concretude e aplicação a esse programa constitucional de defesa da moeda e da estabilidade do seu poder de compra. Fica assim claro que a Lei da Autonomia não trata de assuntos de mera organização administrativa, que seriam de competência privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, inciso II, alíneas “a” e “e” da Constituição).

Enfim, autonomia de banco centrais não é sinônimo de rigidez de mandato dos dirigentes da instituição, mas constitui verdadeiro complexo normativo no qual o mandato a termo é apenas um dos aspectos, garantindo autonomia política ao órgão e o insulando da captura de objetivos da política de curto prazo ou dos interesses do próprio mercado regulado. A Lei da Autonomia não trata, pois, de temas de simples organização administrativa, mas de concretização da diretriz constitucional que entende a moeda como infraestrutura essencial para que o sistema financeiro seja capaz de “promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”, na forma estabelecida pelo art. 192 da Constituição.


O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:


[1] Projeto de Lei do Senado (PLS) 198/1989, recebido na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei Complementar (PLP) 200/1989. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21592>. Acesso em 29 mar. 2021.

[2] Sobre o tema da judicialização, cf. ROMAN, Flavio José. Controle judicial da Administração Pública reguladora. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. ano 17, v. 64, Brasília, abr.-jun., 2014, p. 169 a 195, e a bibliografia lá citada.

[3] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.696, rel. Min. Ricardo Lewandowski, ainda pendente de julgamento, andamento processual disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6119206>. Acesso em: 27 mar. 2021.

[4] “São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (…) II – disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; (…) e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, V”.

[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 173.

[6] “O voluntarismo do legislador infraconstitucional não está apto a criar ou ampliar os campos de intersecção entres os poderes estatais constituídos sem autorização constitucional, como no caso em que se extirpa a possibilidade de qualquer participação do governador do estado na destituição do dirigente da agência reguladora, transferindo-se, de maneira ilegítima, a totalidade da atribuição ao Poder Legislativo local. Violação do princípio da separação dos poderes.” STF, ADI nº 1.949, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 17/9/2014, DJe-224 14-11-2014.

[7] Sobre o tema, cf. DURAN, Camila Villard. A moldura jurídica da política monetária: um estudo do BACEN, do BCE e do FED. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 51 a 53.

[8] SADDI, Jairo. O poder e o cofre: repensando o banco central. São Paulo: Textonovo, 1997, p. 56.

[9] O tema, inclusive, é objeto de regulamentação na Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 7º) e de recente legislação que aprimorou as regras sobre as relações financeiras entre União e Banco Central estabelecendo regras mais claras sobre a apuração de resultados e formas de transferência dos resultados positivos e cobertura dos resultados negativos do balanço do Banco Central: a Lei nº 13.820, de 2 de maio de 2019.

[10] O governador de território seria demissível ad nutum nos termos do art. 4º, § 1º, da Lei Complementar nº 20, de 1º de julho de 1974.

[11] XIMENES DE VASCONCELOS, Rafael Bezerra. Autonomia do banco central: um comando constitucional ignorado. Dissertação de Mestrado aprovada pelo Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB. Orientador: Prof. Doutor Ivo Teixeira Gico Jr., 2018, p. 409.

[12] Índice apurado pelo IPCA(IBGE) por meio do aplicativo Calculadora do Cidadão. Disponível em: <https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice>. Acesso em: 28 mar. 2021.

[13] O consenso social e político do tema é revelado pela expressiva votação favorável ao PLP nº 19, de 2019, que contou com 339 votos favoráveis na Câmara dos Deputados e 49 votos no Senado, sobejando, inclusive o número de ⅗ para aprovação de emenda à Constituição.