Defensores Públicos de direitos humanos sob ataque no STF?

JOTA.Info 2021-04-06

Os recentes julgamentos das ADI’s n. 6518/AC (22/3/2021) e n. 6514/CE (27/3/2021) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) expõem a “ponta do iceberg” de um conjunto de pelo menos 15 ações cuja consequência prática é o enfraquecimento da independência dos defensores públicos de direito humanos (CF, art. 134). As ADI’s propostas pelo procurador-geral da República (PGR) tem como argumento central a inconstitucionalidade por ausência de simetria do foro por prerrogativa defensorial das Constituições estaduais em relação à Constituição Federal, sem análise real do contexto funcional-institucional, buscando superar precedente firmado anteriormente pelo STF (ADI n. 2557), objetivo que, lamentavelmente, vem sendo alcançado.

Com isso, os membros da Defensoria Pública, litigantes habituais por natureza, passam a ser alvos fáceis das autoridades com as quais litigam juridicamente ou politicamente dia após dia em favor dos direitos humanos e dos mais vulneráveis. Assim, até mesmo a possibilidade defensorial de representar no plano internacional por violação aos direitos humanos (LC n. 80/1994, art. 4º, VI) pode quedar impactada. Enquanto isso, por outro lado, muitas dessas mesmas autoridades, como juízes, membros do Ministério Público, prefeitos e governadores seguem com a garantia da isenção dos colegiados de julgamento criminal. Não bastasse o fato de o Brasil ser um dos países que mais perigosos[1] aos defensores de direitos humanos – diante de um mórbido “passivismo” estatal (ou “ativismo às avessas”) representativo de uma possível “sentença de morte”[2] –, os defensores públicos de direitos humanos vem se mostrando cada vez mais vulneráveis a ataques políticos e jurídicos intimidadores de sua liberdade de atuação em prol dos necessitados, como se pode verificar em casos nos estados do Paraná, Amazonas, Maranhão, São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Paraíba, para citar algumas ocorrências que devem ser levadas em conta ao se debater o foro defensorial à luz da Constituição e das convenções de direitos humanos.

Nesse cenário, ser já era possível indagar “a quem interessa a morte dos defensores de direitos humanos” (clique aqui), agora é possível também questionar: a quem interessa desguarnecer a independência funcional dos defensores públicos de direitos humanos?

Recentemente, ao acolher o famigerado pleito enfraquecedor da defesa independente dos direitos humanos, o STF declarou a inconstitucionalidade da prerrogativa de foro prevista em Constituições Estaduais aos membros da Defensoria Pública, relativamente aos estados do Maranhão, Bahia, Goiás, Acre e Ceará. A conclusão dos referidos julgados outorga menor proteção aos defensores constitucionais de direitos humanos (art. 134) e vulnerabiliza a respectiva atuação independente da Defensoria Pública.

Por outro lado, a pretensão do PGR que, em última análise, fragiliza a defesa de direitos humanos é altamente contrária não somente às tendências internacionais de ampliação da independência dos defensores públicos, como também às tendências constitucionais internas.

No plano internacional, além de documento do Mercosul (CMC/REC. Nº. 1/12), a Organização dos Estados Americanos (OEA) expediu diversas resoluções em prol de garantias de independência e autonomia do “Estado Defensor” e seus membros: AG/RES. 2961 (L-O/20); AG/RES. 2928 (XLVIII-O/18); AG/RES nº 5580/2017 (XLVII-O/17); AG/RES nº 2887/2016; AG/RES. 2821 (XLIV-O/14); AG/RES. 2801 (XLIII-O/13); AG/RES. 2714 (XLII-O/12); e AG/RES. 2656 (XLI-O/11).

Desse modo, além do descompasso da pretensão do PGR com a tendência internacional de ampliação das garantias da defesa (quase sempre contramajoritária) dos direitos humanos, o pleito ministerial é ainda ofensivo à tendência constitucional interna de fortalecimento da autonomia da Defensoria Pública encampada, por exemplo, no “I Pacto Republicano em favor de um Judiciário mais rápido e republicano” (2004) e no II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo” (2009). Aliás, foi exatamente nessa esteira que se deram as promulgações de Emendas Constitucionais (n. 45, 69, 74 e 80) de fortalecimento da Defensoria Pública.

Outrossim, não se podem perder de vista as singularidades institucionais[3] dessa garantia institucional[4] dos necessitados e dos direitos humanos, dentre as quais se destaca a origem histórica dos membros da Defensoria Pública na Procuradoria Geral de Justiça (PGJ/RJ) do antigo estado do Rio de Janeiro através da Lei Estadual n. 2.188/1954. Com isso, explicam-se muitas peculiaridades institucionais, como a autonomia, a inamovibilidade dos membros, a legitimação coletiva e interventiva (Custos Vulnerabilis) etc. Nesse mesmo contexto, recorda-se o ministro Roberto Barroso (voto na ADI n. 1246), para quem: “A Constituição não esgota o regime jurídico de todas as carreiras estaduais e, por isso, não veda, em princípio, que o legislador local considere relevante oferecer maior proteção aos integrantes de determinadas carreiras” (Trecho de voto, j. 11/04/2019).

Por outro lado, sem desmerecer o fato de o STF ter dado inegáveis contribuições para a consolidação da autonomia institucional da Defensoria Pública (ex: ADI 5296; ADPF 504, ADPF 384, ADPF 339, ADI 5286 e ADI 5287), ainda há um certo desconhecimento da “origem genético-histórica” do “Estado Defensor” brasileiro, o qual permitiria, se conhecido fosse, desvendar os verdadeiros e legítimos potenciais da instituição. Sem tal consideração, falhas hermenêuticas evitáveis podem ser consolidar nocivamente à defesa de direitos humanos e dos necessitados.

Além do descompasso com as tendências internacionais e constitucionais expostas acima, a tentativa do PGR flerta com o retrocesso nas garantias de independência dos defensores de direitos humanos, uma vez que se consolidara no STF a possibilidade de criação de foro por prerrogativa de função defensorial conferido pelas Constituições estaduais desde que não colidissem com a Constituição Federal – ver, nesse sentido, a ADI 2587,  j. 1/12/2004, tudo em conformidade com o § 1º do art. 125 da CRFB/1988. Nesse mesmo caso, pelas razões ali expostas, o STF negou a prerrogativa de foro aos delegados de polícia, mas garantiu aos defensores públicos – e por quê?

Porque o STF considera os estatutos constitucionais dos membros do Poder Judiciário, do Ministério e da Defensoria Pública mais exigentes e similares quanto à independência funcional se comparados a outras carreiras, como membros da Advocacia Pública no Sistema de Justiça (ADI 1246; ADI 291; ADI 217) ou, no Sistema de Segurança, os Delegados de Polícia (ADI 5103; ADI 2587), tudo por conta das especificidades e vinculações funcionais destes últimos (vide art. 131-132 e § 6º do art. 144, CRFB/1988).

Por fim, repousa sobre o STF a responsabilidade de filtrar o corporativismo presente nas ADI’s propostas, em hermenêutica iluminada pelas tendências (nacionais e internacionais) de ampliação das garantias de independência na defesa de direitos humanos e pelo perfil genético-histórico do “Estado Defensor” brasileiro, a fim de convalidar a expansão, nas Constituições Estaduais, da “garantia institucional” que é a Defensoria Pública na defesa da dignidade e da prevalência dos direitos humanos (Constituição, art. 1º, III; art. 4º, II).

Oxalá esta reflexão[5] alcance os ministros da Suprema Corte, bem como seus assessores, para fins de promoção de renovados debates constitucionais e convencionais sobre o tema, tomando-se consciência que, no caso dos membros da Defensoria Pública, o foro por prerrogativa de função é, ao fim e ao cabo, garantia dos direitos humanos e da independência de seus defensores públicos.


O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:


[1] (1) G1. Brasil é país das Américas que mais mata defensores de direitos humanos Segundo relatório da Anistia Internacional, até agosto deste ano, cinquenta e oito ativistas foram assassinados. Notícia de 5 Dez. 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/12/brasil-e-pais-das-americas-onde-mais-se-mata-defensores-de-direitos-humanos.html>. Acesso em: 7 Fev. 2021; (2) INSTITUTO WLADIMIR HERZOG. Brasil é o país com mais mortes de defensores de direitos humanos e ambientais. Disponível em: <https://vladimirherzog.org/brasil-e-o-pais-com-mais-mortes-de-defensores-de-direitos-humanos-e-ambientais/>. Acesso em: 7 Fev. 2021.

[2]Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), quase um milhão de pessoas estiveram envolvidas em conflitos no campo no Brasil em 2018. Somente nos três primeiros meses deste ano, já foram registrados dez assassinatos em conflitos fundiários.” (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS. Omissão do Estado na proteção de defensores dos direitos humanos é uma sentença de morte, afirmam ativistas em audiência pública. Notícia de 11 Jun. 2019. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/omissao-do-estado-na-protecao-de-defensores-dos-direitos-humanos-e-uma-sentenca-de-morte-afirmam-ativistas-em-audiencia-publica>. Acesso em: 7 Jul. 2021.

[3] Casas Maia, Maurilio. A singularidade da Defensoria Pública para a Autonomia Institucional pós-88: Uma Promessa constituinte e um débito histórico (quase) quitado. In: Rocha, Bheron. Casas Maia, Maurilio. Barbosa, Rafael Vinheiro Monteiro. Autonomia e Defensoria Pública: aspectos constitucionais, históricos e processuais. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 57-78.

[4] Fensterseifer, Tiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 240-241

[5] Recomenda-se ainda as reflexões de Franklyn Roger e Diogo Esteves (aqui); e de Martonio Mont’Alverne e Bheron Rocha (aqui).