Lost in translation: equívocos da nova regulação do Ministério da Economia

JOTA.Info 2021-04-06

Há poucos dias, escrevemos um artigo a respeito do início da atuação do Ministério da Economia, por meio da sua Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE/SEPEC/ME) na aplicação da figura do “abuso de poder regulatório”, prevista pelo artigo 4º da Lei 13.784/2019 (a Lei de Liberdade Econômica). No âmbito de sua Instrução Normativa nº 97/2020, a SEAE instituiu a chamada Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (FIARC) e abriu uma tomada de subsídios para obter informações sobre a atuação de reguladores federais. Naquele texto, avaliamos que, à luz de seu caráter anônimo e do contexto em que está inserida, antes de uma iniciativa de melhoria regulatória, a atuação da SEAE se materializa, na realidade, em um “disque-denúncia” para a apuração da conduta dos reguladores federais.

Este texto enfoca outra medida adotada pela SEAE de maneira concomitante: a abertura de processos para apuração, pela FIARC, de “denúncias” apresentadas por agentes regulados quanto a regulamentos nas esferas de atuação da ANTT e da ANTAQ. Esses processos são a epítome do novo modelo de uma “advocacia da concorrência com dentes”, a que aspira a Secretaria, e correspondem, no limite, a uma preocupante substituição das decisões das agências reguladoras pelas decisões da própria SEAE – ou do ministro que a comanda. A atuação da SEAE representa, assim, ainda que involuntariamente, um ataque frontal ao modelo institucional das agências reguladoras brasileiras e, estranho quanto possa parecer, está fundamentada em dois erros de tradução: de um lado, o equívoco de interpretar a lei de liberdade econômica como política regulatória e, de outro, inerente à motivação do novo perfil de atuação da SEAE.[1]

Como é sabido, as agências reguladoras foram criadas no Brasil, em especial na década de 1990, em paralelo à reorganização do padrão de atuação estatal na economia. Com a desestatização, foram criados mecanismos regulatórios especificamente voltados a assegurar que as atividades privatizadas fossem providas ao público à luz de pressupostos de eficiência, qualidade e continuidade.

Para a organização dessas funções regulatórias, em linha com orientações então formuladas pela OCDE e por outros organismos internacionais que promoviam os processos de desestatização e das subsequentes reformas regulatórias, foi adotada a tese de que esses reguladores deveriam ser, em alguma medida, protegidos do controle político imediato. Com isso, consolidou-se no Brasil o regime jurídico das “autarquias sob regime especial” – entidades da administração indireta beneficiadas por determinadas garantias de autonomia em relação ao Poder Executivo central. Nesse modelo, o controle político se manifesta de maneira circunscrita, mas não pouco importante, já que cabe ao chefe do Executivo, por Decreto, fixar a política pública aplicável a determinado setor regulado. Cabe às agências atuar dentro dos limites fixados pela política pública federal e de acordo com as competências fixadas por sua lei de criação, tomando decisões em processos pautados por publicidade, participação social e motivação.

Trata-se de um modelo que pode, certamente, ser aperfeiçoado em diversos âmbitos, e passa por contínuas atualizações, como a adoção de técnicas de análise de impacto regulatório. Também é um modelo que ainda deixa a desejar – reclamando, portanto, aperfeiçoamento – quanto ao controle social e ao processo de motivação e legitimação pública de suas decisões. Como compreender, no entanto, que um órgão administrativo como a SEAE atue, como os indícios parecem indicar, como uma espécie de instância de revisão do mérito das decisões tomadas pelas agências reguladoras, sem (aliás) a alteração das leis que fixam suas competências e que conformam o modelo descrito?[2]Como compreender, ademais, que essa atividade de substituição do regulador seja exercida por secretaria que se apresenta como portadora dos ensinamentos da cartilha da OCDE, ainda que essa premissa contrarie o arranjo institucional desenvolvido justamente para atendê-la?

Ao que parece, a SEAE busca se habilitar, na prática, a ser nova instância de controle e de regulação substantiva.

A SEAE é órgão administrativo integrante do Ministério da Economia – subordinada por vínculo hierárquico ao ministro e ao presidente da República. Trata-se, assim, de instância que não tem legitimidade, no modelo regulatório adotado no Brasil (e consagrado no resto do mundo) e nos termos das leis de cada agência, para intervir no mérito das suas decisões. Aliás, a orientação atualmente vigente, vinculante para toda a Administração Pública federal e desenvolvida em caso pertinente à própria ANTAQ, é de que não é dado à administração direta, sob qualquer pretexto, buscar substituir as decisões tomadas por essas agências, ainda quando provocada, exceto se: (i) as agências excederem sua competência legal (ou seja, suas decisões forem ilegais frente à lei específica que as criou), ou (ii) contrariarem as diretrizes de políticas públicas definidas em decreto, de acordo com as limitações legais, para o setor regulado. Ao se colocar como espécie de instância revisora das agências reguladoras, a SEAE incorre em um “erro de tradução” das já problemáticas regras criadas pela Lei de Liberdade Econômica sob a forma questionável de política pública regulatória.

Há, no entanto, outro erro de tradução talvez ainda mais grave: o vício de motivação claro na escolha das agências reguladoras federais, e da ANTT e da ANTAQ em particular, como os primeiros destinatários da tutela da SEAE no âmbito da FIARC. A fundamentação reivindicada pela SEAE para atuar de forma “intensiva” em relação às agências reguladoras está baseada em estudo que atribui custo bilionário a “problemas regulatórios” do Brasil.[3] Entre os temas subjacentes à cifra citada pela SEAE está, no entanto, uma série de assuntos que certamente não são de responsabilidade de agências reguladoras setoriais, como a tributação, as tarifas de comércio exterior e a alegada morosidade judiciária.[4]

O estudo também indica que “instabilidade e baixa eficácia da regulação” seria responsável por custo anual de R$ 58 bilhões, cálculo fundamentado na extrapolação de projeção de crescimento de PIB caso o Brasil tivesse uma nota mais elevada nos rankings de Product Market Regulation (PMR) da OCDE. Trata-se, à primeira vista, de um âmbito mais propriamente regulatório de preocupação que, segundo a SEAE parece argumentar, justificaria a sua cruzada antirregulatória. Entretanto, uma leitura mais cuidadosa dos documentos da OCDE não permite chegar a essa conclusão, ainda que não se entre no mérito da metodologia adotada pelo Ministério da Economia para chegar à cifra citada.

Os estudos de PMR são produzidos pela OCDE a partir do envio de questionários aos diferentes países pesquisados. Buscam avaliar não apenas temas que chamaríamos no Brasil de tipicamente “regulatórios” – ou que estejam sob a supervisão de agências reguladoras setoriais – mas também temas pertinentes à abertura de empresas, à regulamentação de atividades profissionais e às atividades de cartórios. Até mesmo no âmbito da análise específica de setores regulados, uma parcela substancial das notas atribuídas pela OCDE não é pertinente à atuação de órgãos reguladores, mas à estrutura de mercado desses setores (por exemplo, se há concorrência entre prestadores) e à atuação econômica direta do Estado.

De fato, avaliando-se as questões do PMR pertinentes propriamente às atividades de regulação setorial, verifica-se o óbvio: a OCDE recomenda que haja regulação efetiva e aderente ao seu custo – e não o seu desmonte, desmobilização ou substituição de instância decisória por controladores na Administração Direta. Por exemplo, na questão pertinente à existência de política tarifária no setor de telecomunicações, a OCDE atribui, no PMR, nota máxima para os países que controlem tarifas em situações de monopólio – o que poderia, aliás, até ser tido como uma hipótese de “abuso regulatório” na leitura crua da SEAE.

Assim, ainda que se admitisse o emprego das orientações da OCDE[5] como guia canônico para a política pública doméstica (e para a atuação da SEAE), causa estranhamento a eleição das agências reguladoras federais, que figuram entre as entidades administrativas mais bem equipadas da Administração brasileira, como os primeiros alvos de sua nova atividade de controle. Há, portanto, dúvida relevante quanto à legitimidade e a capacidade da SEAE para tomar decisões na esfera de atuação e em substituição às das agências. Além disso, à vista da visão ultraliberal e anti-Estado adotada pelo governo, sua consequência dificilmente seria o aprimoramento regulatório. Esses fatores, pensando bem, colocam em dúvida até mesmo a capacidade dessa agenda de promover a melhoria da posição do Brasil em rankings internacionais.

Há, tudo considerado, evidente erro de tradução (literal, neste caso) no direcionamento dos esforços da SEAE à atuação de reguladores setoriais: em inglês, é habitual tratar como regulation todo e qualquer ato estatal que produza efeitos sobre a ordem econômica e a sociedade – assim, tributação é, nesse sentido mais alargado, regulation. Entre nós, buscando seguir sua cartilha, a SEAE entende que o problema são os órgãos reguladores setoriais, que aqui chamamos mesmo de reguladores. A ironia é que, estivesse a própria SEAE sujeita aos mesmos parâmetros de motivação aplicáveis às decisões das agências reguladoras, uma Análise de Impacto Regulatório que fosse elaborada em relação a essa escolha muito provavelmente não prosperaria, já que o ato administrativo não persegue os motivos que lhe deram causa.[6]

Desde a edição da medida provisória que acabou convertida na lei de liberdade econômica, temos manifestado preocupações com os fundamentos e a pertinência jurídica da figura do “abuso de poder regulatório”, e de sua aplicação pela SEAE. As duas primeiras iniciativas da SEAE no âmbito da FIARC – o início das investigações contra ANTT e ANTAQ e a abertura da consulta pública anônima para apurar “abusos” das agências reguladoras – parecem corroborar esses temores.

Parece que estamos diante de nova forma disfarçada de regulação, elaborada de maneira opaca, com fundamentos pouco sólidos e potencial autoritário em razão da sua excessiva discricionariedade.[7] Apostando na quimera do laissez faire, a aplicação da lei de liberdade econômica pela SEAE parece se basear na premissa um tanto ingênua de que derrubar regulamentos tidos como “desviantes” é suficiente para promover o livre mercado. O vácuo de regulação é, no entanto, ele mesmo, uma forma de regulação, só que tisnada pela incerteza e insegurança jurídica, imprestável ao cumprimento de papeis básicos de um moderno e democrático Estado regulador. A conclusão é que a nova regulação da SEAE, fundamentada em dois erros de tradução, pode, no fim das contas, não atender nem mesmo aos objetivos declarados do Ministério da Economia.


O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute a crise militar e seu impacto no Supremo Tribunal Federal. Ouça:


[1] Não dispomos de quaisquer informações quanto à ação da SEAE em relação aos casos discutidos, além da publicação de notícia pelo Ministério da Economia e de dois extratos de “instauração de análise” publicados no Diário Oficial da União. Para além desses dois elementos de publicidade, não estão disponíveis quaisquer informações a respeito da motivação adotada pela SEAE para a instauração de tais processos, das atividades de instrução realizadas, ou sobre as denúncias recebidas.

[2] E essa alteração legislativa, pelas regras hermenêuticas mais básicas, não pode ser compreendida como existente ou válida para que se aplique disposição abstrata de lei genérica (a lei de liberdade econômica) de modo a negar vigência à disposição de lei específica que determina ao regulador disciplinar (decidindo sobre) determinada relação jurídica.

[3] A motivação da Instrução Normativa nº 97/2020 foi construída a partir de estudo desenvolvido pelo Ministério da Economia em que se indica existir uma parcela do “Custo Brasil” de ao menos 160 bilhões de reais anuais “atribuível ao assim descrito como custo de ineficiência regulatória” (Consulta Pública nº 01/2020 da SEAE, § 7). O estudo, intitulado “Redução Contínua do Custo Brasil: Metodologia completa das estimativas”, de outubro de 2019, foi disponibilizado aos autores por intermédio da Lei de Acesso à Informação, já que não estava disponível publicamente no sítio eletrônico da Secretaria ou na documentação fornecida para a consulta pública promovida pela SEAE.

[4] Há, por exemplo, referência a dificuldades relacionadas a: “integrar com cadeias produtivas globais” (questões de barreiras tarifárias) e “honrar tributos” (questão tributária). Também foi considerado o “gap de tempo para sentenças em primeira instância”, que sozinho corresponderia a R$ 123,2 bilhões dos 160 bilhões indicados.

Não custa recordar que parte relevante da formulação de políticas públicas relacionadas à tributação, à abertura de empresas e às tarifas externasestá sob o guarda-chuva do Ministério da Economia, a quem a SEAE está subordinada.

[5] E de outros órgãos, como o Banco Mundial.

[6] Lei nº 4.717/1965, art. 2º, parágrafo único, ‘d’: “a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;”

[7] Significativamente, o Decreto nº 10.411/2020 prevê que não é necessária a realização de Análise de Impacto Regulatório para “ato normativo que vise à atualização ou à revogação de normas consideradas obsoletas, sem alteração de mérito”, para “ato normativo que vise a manter a convergência a padrões internacionais”, para “ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios” ou para “ato normativo que revise normas desatualizadas para adequá-las ao desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente” (artigo 4º, IV, VI, VII e VIII). Também prevê a desnecessidade de AIR para atos de competência do Ministério da Economia, como os pertinentes aos mercados de seguro, resseguro, de capitalização e de previdência complementar, aos mercados financeiros, de capitais e de câmbio e aos sistemas de pagamento (artigo 4º, V).