A padronização nas contratações públicas

JOTA.Info 2021-04-19

Em 1º de abril, foi publicada a Lei 14.133/21, que estabelece normas gerais de licitação e contratação. Segundo o art. 193, II, ficam revogadas as disposições da Lei de licitações e contratos administrativos 8.666/93[1], Lei do Pregão 10.520/02 e parcialmente do Regime Diferenciado de Contratações 12.462/11, dois anos após a aludida data de publicação.

A nova lei institui um novo regime jurídico para as licitações e contratações públicas no país. A sua correta compreensão trespassa a mera leitura dos dispositivos nela veiculados. A nova racionalidade que pretende com a nova lei passa também pela experiência – doutrinária, jurisprudencial, legislativa e prática – adquirida ao longo da vigência dos diplomas. Sobretudo da Lei 8.666/93, marco legal de referência da matéria ao longo dos últimos 28 anos.

Neste contexto, recorre-se a uma das histórias – ou anedota, já que desconhecida a procedência ou não das informações – ouvida no curso de anos da atuação profissional na área de licitações e contratos administrativos.

Por ela se ilustra a recorrente dificuldade de interlocução entre a teoria e a realidade nas compras públicas e aponta como a Lei 14.133/21 se presta a uma mudança de racionalidade de um simples procedimento de recebimento do objeto licitado.

A história passa pela intenção de determinado órgão público na aquisição de sacos de lixo. Diante da necessidade de aquisição do produto para o regular desempenho das atividades do órgão, procedeu-se a instauração do respectivo processo administrativo.

Primeiro mediante requisição pelo setor de almoxarifado, com a indicação do quantitativo necessário, a justificativa de contratação e a especificação do produto que se pretendia adquirir. Neste mister o pedido de compra indicava características elementares, como o volume mínimo, o correspondente peso mínimo a ser suportados, as dimensões, enfim, o básico para delimitar o tipo de produto que pretendia contratar.

Procedida a cotação de preços para formação do preço de referência, o edital foi elaborado e publicado. Na licitação, foram as recebidas as propostas e, ao final, sagrou-se vencedora aquela de menor preço.

Ou seja, uma licitação absolutamente recorrente e regular em suas etapas de processamento. A peculiaridade, no entanto, viria a ocorrer no recebimento dos sacos de lixo.

Uma vez entregues os produtos pelo licitante vencedor no setor administrativo responsável por recebimento, cumpria saber se os sacos de lixo estavam de acordo com as especificações do edital. Aspectos de volume e dimensões poderiam ser aferidos por simples testes, como a medição por fita métrica ou trena.

Mas a questão central era saber se, quando no volume total de sua capacidade, o saco de lixo resistiria ao peso. Nada serviria à Administração receber um saco de lixo que simplesmente rasgasse quando estivesse no limite de seu volume. O curioso era como o teste de resistência foi feito.

Para tanto, os servidores elegiam entre seus pares aquele considerado mais forte. Este servidor então “vestia” um dos sacos de lixo em seus braços e, em um movimento abrupto, forçava a abertura no interior do produto. Caso o saco de lixo se mantivesse íntegro, o produto era aceito; caso rasgasse, o produto entregue era reprovado e o lote devolvido para substituição.

Antes de mais nada é forçoso reconhecer a integridade do propósito. A intenção era assegurar que a Administração contratante recebesse um produto adequados às suas necessidades. Nada a reprovar neste ponto.

O ponto de reflexão recai, logicamente, sobre o modo absolutamente dissociado da boa técnica como o procedimento era realizado.

Notadamente porque dele não é possível estabelecer se o produto atenderia ou não a resistência exigida pelo edital. Suportar a carga de esforço imposta pela força pessoal do servidor não definia se o produto rasgaria ou não quando tomado em sua capacidade máxima.

A história ilustra uma das maiores dificuldades hoje vivenciadas nas contratações públicas: a dificuldade de, a partir de critérios técnicos de avaliação, proceder o recebimento dos materiais licitados.

Nesta lacuna de procedimento perdem todos os envolvidos. Os licitantes que por vezes não dispõem de informações objetivas das razões por eventual reprovação de bens entregues à Administração. Esta igualmente é prejudicada por não avaliar adequadamente os materiais recebidas, ficando, por vezes, sujeita a sorte como variável predominante na delimitação da qualidade dos bens em uso no curso de suas atividades.

Tampouco é viável cogitar que todo e qualquer produto necessariamente precise ser avaliado a partir de testes laboratoriais para aferir a exatidão com as especificações técnicas do edital. Tal hipótese é meramente teórica.

Desconsidera que testes desta natureza são por vezes mais custosos que o próprio produto em si. O custo de transação envolvido deslegitima a medida em si. Ainda, prolonga o tempo entre a entrega, recebimento de definitivo e pagamento aos licitantes, reduzindo o dinamismo das atividades administrativas e potencialmente encarecendo o custo de aquisição dos produtos.

Importante ressaltar que o tema recebeu tipificação específica na Lei 14.133/21. Ao dispor sobre os crimes, com a inclusão do tema no Código Penal, prevê no art. 337-L as hipóteses de fraude, dentre as quais a “entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais” (I) ou a “alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou do serviço fornecido” (IV).

Assim sendo, há um claro indicativo de que o modelo hoje vigente não foi capaz de fornecer instrumentos capazes de assegurar, em padrão minimamente adequado, a qualidade dos bens contratados pela Administração. E, neste contexto, é absolutamente salutar o tratamento dado pela Lei 14.133/21 ao procedimento de padronização de compras.

Incialmente ao estabelecer em sua definição a expressa referência ao meio eletrônico de elaboração: “Catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras: sistema informatizado, de gerenciamento centralizado e com indicação de preços, destinado a permitir a padronização de itens a serem adquiridos pela Administração Pública e que estarão disponíveis para a licitação; (art. 6º, LI).

Na sequência, a ressalva de que as especificações devam, preferencialmente, se orientar pelas informações do catálogo eletrônico: “§ 1º O termo de referência deverá conter os elementos previstos no inciso XXIII do caput do art. 6º desta Lei, além das seguintes informações: I – especificação do produto, preferencialmente conforme catálogo eletrônico de padronização, observados os requisitos de qualidade, rendimento, compatibilidade, durabilidade e segurança” (art. 40, §1º, I).

Há, portanto, um indicativo legal de que a padronização seja um procedimento a ser observado no âmbito das contratações em todas as esferas da Administração Pública.

A Lei 14.133/21 igualmente ocupa-se em prever a ferramenta operacional para que isto ocorra. Para tanto, institui o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). Como regulamenta o artigo 174 da lei, as suas finalidades são a “divulgação centralizada e obrigatória dos atos exigidos por esta Lei” (I) e a “realização facultativa das contratações pelos órgãos e entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os entes federativos” (II). E, dentre as informações, deverá disponibilizar “catálogos eletrônicos de padronização (§2º, II) e “editais de credenciamento e de pré-qualificação, avisos de contratação direta e editais de licitação e respectivos anexos” (§2º, III). A medida é de extrema relevância, sob aspecto prático.

Sob a perspectiva macroeconômica, confere à padronização o status de política pública nacional, relacionada diretamente à qualidade da gestão dos recursos públicos. A Lei 14.133/21 estabelece um novo parâmetro de processamento das compras públicas e, consequentemente, da própria aplicação dos recursos alocados para as despesas a elas relacionadas.

Ainda, pelo PNCP centralizam-se as operações relacionadas às compras públicas. Ao assim proceder, estabelece uma cadeia completa de informações a ser posta à disposição dos órgãos públicos e dos interessados no tema em geral.

Por meio dos catálogos eletrônicos, confere-se maior eficiência a atividade administrativa, ao permitir a quem precisa licitar melhor precisão e menor tempo na especificação daquele que pretende adquirir e no respectivo recebimento do produto.

Subjacente a esta noção devem ainda ser relativizadas eventuais restrições a indicação de marca, como parâmetro de especificação dos produtos. A lógica do catálogo eletrônico remete ao prévio registro de produtos, cujas especificações se entendeu, após prévia avaliação técnica, atendem à determinada necessidade, independente de qual seja a Administração contratante.

Como exemplo, um determinado produto de limpeza padrão no mercado que sirva para atender a demanda de um órgão do governo federal também atende o que necessita administração de um pequeno município. Neste caso, é indiferente a esfera contratante.

Como decorrência, se sabido previamente que determinado produto atende aos requisitos técnicos, simplifica-se logicamente o procedimento para recebimento do mesmo pela administração contratante.

Daí porque a padronização, se bem aplicada, é um instrumento pertinente para simplificar a equação de especificação e recebimento de bens licitados. Para quem vende é a certeza que o produto será aceito. Para quem compra é a tranquilidade de que o produto entregue atende às necessidades que justificaram a contratação.

Assim, espera-se que a padronização, sobretudo por meio do catálogo eletrônico e do PNPC, seja uma ferramenta eficaz para melhora da qualidade das compras em todas as etapas relacionadas à sua execução, desde a especificação do que se pretenda adquirir até o seu respectivo recebimento definitivo.


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[1] A lei ressalva que os arts. 89 a 108 da 8.666/93 ficam imediatamente revogados a partir da publicação da Lei 14.133/21.