Conduta autorizada pela Administração, mas ainda assim ilegal

JOTA.Info 2021-04-29

Um antigo ditado popular no Brasil afirma que “nem tudo que parece é”. Uma recente recomendação da Superintendência Geral (SG) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para que o Tribunal do órgão condene, por infração à ordem econômica, empresas que participaram de um consórcio para disputar uma licitação confirma a validade dessa sabedoria geral. Apesar de existirem pelo menos duas leis que expressamente autorizam consórcios em licitações e de a Administração Pública ter organizado o certame autorizando essa modalidade, o entendimento é o de que o consórcio em questão seria ilegal e teria causado danos à competitividade. “Parece respeitar as leis, mas não é legal”, diria a SG. O posicionamento abre uma série de controvérsias jurídicas, coloca em risco a segurança jurídica de licitações passadas e presentes, além de promover confusão para potenciais participantes de futuros certames. Principalmente, deve servir de alerta a empresas que detêm poder de mercado e participaram ou pretendem participar de licitações em consórcio. A partir de agora, elas passam a estar sob risco maior de investigação e, eventualmente, condenação.

Desde 2015, a SG investiga a participação consorciada das empresas Oi, Claro e Telefônica Vivo no Pregão nº 144/2015, realizado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Correios), a partir de denúncia da empresa British Telecom (BT), além de outras cinco concorrências públicas que aconteceram no período entre 2013 e 2016 e nas quais as empresas também haviam se consorciado. Vale deixar claro, desde já, que a investigação não se baseia exclusivamente na discussão sobre os consórcios, embora ela seja central, motivo pelo qual analisamos o tema aqui. No mês passado, a SG emitiu nota técnica em que conclui, por conta da “detenção do poder de mercado” das empresas e sem “justificativas incontestes”, que sua participação em consórcio “teve como objetivo eliminar a competição”, o que teria levado a preços maiores para os consumidores e exclusão de rivais. Essa conclusão foi possível apesar de a SG reconhecer que a figura do consórcio é “legal” e sua formação, por si só, “não [seria] um ilícito antitruste”. Na prática, o entendimento pode implicar a criação de novo ilícito antitruste: a formação de consórcios entre empresas que detenham poder de mercado pode ser ilícita, ainda que legal e administrativamente autorizada.

A preocupação com a concorrência nas licitações é legítima, mas para além do ineditismo, a nova interpretação levanta questionamentos a respeito de sua viabilidade jurídica e pertinência prática. Em primeiro lugar, vale questionar se a interpretação pondera adequadamente a relevância das autorizações legais que permitem a formação de consórcios em licitações, o que deveria gerar consequências para qualquer análise antitruste. Como a própria nota técnica reconhece, as leis que regem licitações e contratos administrativos (Lei nº 8.666/93 e a Lei nº 14.133/21) e a própria Lei nº 12.529/11 expressamente autorizam que empresas formem consórcios para participar de licitações, sem qualquer tipo de controle da autoridade antitruste.

Diante de uma conduta autorizada em lei, talvez devesse recair sobre as autoridades o ônus de demonstrar que, em consórcios legítimos, houve dano à concorrência – e não o transferir para os particulares, que teriam que “comprovar” eficiências. Mesmo diante de um suposto dano à concorrência, há espaço para se questionar se um particular pode ser condenado – ainda que administrativamente – por ter participado de concurso público respeitando as regras da Administração e com autorização da autoridade competente.

Claro que aqui não estamos nos referindo à possibilidade de um consórcio ter se formado no contexto de um cartel, hipótese na qual análise sobre eficiências usualmente é dispensada.  Em não se encaixando nesse contexto, o consórcio poderia ser visto como um ato de concentração, hipótese explicitamente abarcada pela Lei 12.529/11. Ocorre que, como mencionado acima, quando formados para disputar licitações, a própria lei isenta os consórcios de notificação ao Cade. Ou seja, continuam sendo atos de concentração, apenas não são notificáveis. A pergunta que permanece, de qualquer modo, é: até que ponto o Cade pode contornar essa determinação legal e analisar esses atos de concentração, autorizados pela autoridade competente e dispensados de notificação prévia, como conduta anticompetitiva?

Cumpre ressaltar que uma eventual resposta negativa a essa pergunta não significa que o sistema brasileiro de defesa da concorrência está de mãos atadas haja vista a possibilidade da construção de uma bem-vinda agenda de advocacy concorrencial perante os órgãos licitantes. Essa agenda resolveria eventuais problemas competitivos na raiz e abriria canais para os órgãos licitantes produzirem justificativas razoáveis para a permissão dos consórcios, quando for o caso. Nesse sentido, órgãos públicos licitantes poderiam ser convencidos a restringirem a permissão de consórcios em licitações ou, no limite, seria possível incluir uma proibição nas leis que regem licitações e contratos públicos para proibir consórcios formados por empresas com poder de mercado. Isso evitaria pular diretamente para uma conclusão que pode ameaçar a segurança jurídica em detrimento de particulares que simplesmente concordaram com os termos propostos pela Administração para prestar serviços para ela própria e que, a partir de agora, devem fazer análises concorrenciais em relação a certames passados e presentes, além de adicionarem uma camada de preocupação na participação em licitações futuras.

Vale ressaltar que um edital de licitação dispõe sobre uma concorrência pública – inclusive, esse é o nome de uma das modalidades mais comuns de licitação. Ou seja, ao contrário do que acontece em outros âmbitos de atuação antitruste, em que a autoridade de defesa da concorrência se debruça sobre a competitividade no mercado e demais órgãos analisam outros aspectos de determinada conduta, no caso de licitações, tanto o órgão público que organizou o certame como a autoridade antitruste analisam a concorrência da licitação. A nova interpretação, portanto, permite que a autoridade antitruste se substitua à análise de concorrência feita pelo órgão competente.

Da perspectiva da Administração, podemos estar diante da criação de nova instância de controle de atos administrativos, que ignora a discricionaridade de gestores públicos e as instâncias existentes que já controlam o tema.

Assim, além de abrir questões da perspectiva jurídica, a nova interpretação pode gerar desincentivo a investimentos e serviços futuros que beneficiariam a Administração e insegurança em relação a concorrências passadas e presentes. Quaisquer empresas que tenham detido ou detenham poder de mercado e tenham se consorciado ou se consorciem para participar de licitações podem passar a ser questionadas perante o órgão de defesa da concorrência como potenciais infratoras da Lei 12.529/2011. Por esse motivo, devem olhar o entendimento recente da SG como um alerta em relação a participações anteriores em licitações e estarem preparadas para futuros questionamentos, no caso de organização em consórcios. Afinal, ainda que esses consórcios sejam vistos pelas autoridades competentes e pelos próprios atores de mercado como pertinentes e eficientes, talvez a autoridade antitruste não entenda dessa maneira.

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