Desafios jurídicos para o combate ao desmatamento ilegal no Brasil

JOTA.Info 2021-04-29

O desmatamento, a conversão do uso da terra e as práticas agropecuárias e florestais são responsáveis por um quarto das emissões globais antrópicas de gases de efeito estufa[1]. Em 2018, o Brasil era o sexto país que mais os emitia, com 44% de suas emissões provenientes do desmatamento[2]. Desde então, o cenário piorou consideravelmente, verificando-se um acentuado crescimento no desmatamento ilegal no país. Inversamente proporcionais são os dados de fiscalização ambiental – tendo sido o número total de multas aplicadas pelos órgãos de proteção ambiental em 2019 o menor dos últimos 24 anos[3].

Existem diversos fatores que podem ser apontados como causadores da forte aceleração do desmatamento nos últimos dois anos, dentre eles a redução do orçamento e da autonomia dos órgãos de repressão e controle ambiental. No entanto, há outros aspectos relacionados à legislação e aplicação da lei florestal que também interferem nesse contexto jurídico de controle e fiscalização que cercam a questão.

Aspectos legais que favorecem o desmatamento

O desmatamento no Brasil é movido precipuamente pela lógica econômica: desmata-se porque é um negócio lucrativo. Assim, o instrumento principal do combate ao desmatamento é a fiscalização e aplicação de sanções restritivas e pecuniárias pelo poder público, em atendimento ao princípio do poluidor pagador. Dessa forma, cabe ao Estado utilizar de seu poder de polícia para que, pela lógica econômica (pautada pela análise custo-benefício de cada agente individualmente considerado), não seja possível obter vantagens pecuniárias com o desmatamento ilegal – seja em razão do embargo das áreas degradadas, seja pela aplicação de multas.

A ineficiência atual dos instrumentos preventivos de comando e controle, objeto de análise deste artigo, poderia dar a falsa impressão da necessidade de sua substituição por incentivos econômicos voltados para a manutenção da floresta em pé – baseados no Princípio do protetor-recebedor -, instrumentos que podem aparentar serem mais modernos ou eficazes. No entanto, certo é que os dois tipos de instrumentos não são concorrentes e devem coexistir de forma independente. Daí a importância de discutirmos os desafios jurídicos para uma efetiva fiscalização contra o desmatamento ilegal, que apesar do momento desalentador, deve reencontrar a sua efetividade.

Dentro deste contexto, é relevante notar que mesmo tendo maior capacitação que os órgãos ambientais estaduais, o IBAMA tem grande dificuldade de cobrar as multas que impõe, sendo que somente 3% destas são pagas, apesar de 81% delas serem confirmadas nos processos administrativos[4]. A principal razão desse déficit é a excessiva interposição de recursos pelos supostos infratores, muitas vezes com o objetivo protelatório, levando à prescrição de multas.

A esse respeito, há de se destacar a consolidação da tese da subjetividade da responsabilidade administrativa ambiental (e, portanto, a necessidade de comprovação de culpa ou dolo do agente). Este entendimento, já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, foi reconhecido pelo IBAMA por meio da Orientação Jurídica Normativa nº 53/2020. O intuito aqui não é discutir o mérito da subjetividade da responsabilidade administrativa, mas suas implicações. Especialmente no que se refere ao desmatamento ilegal, estamos falando de grandes extensões de terra, de difícil acesso, o que torna muito difícil que qualquer ente público possa comprovar dolo ou culpa de algum agente.

No mesmo sentido, o Despacho IBAMA nº 6409091/2019-GABIN determinou a necessidade de comprovação de ciência de fraude para responsabilização administrativa de adquirente de material florestal com irregularidade perante o sistema DOF. Na prática, essa exigência amplia a demanda por madeira ilegal, já que retira a obrigação de diligência do comprador.

Além dessas questões, outras alterações normativas recentes têm agravado os desafios enfrentados pela fiscalização. Um exemplo é o Decreto Federal nº 9760/2019 que alterou as condições para processamento de autos de infração pelos órgãos com poder de polícia ambiental. Esse decreto criou uma série de etapas preliminares obrigatórias no âmbito do processo de autos de infração, impondo a realização de audiência de conciliação como condição para a fluência do prazo para apresentação de defesa.

O Núcleo de Conciliação Ambiental pode decidir conceder descontos de até 60% do valor das multas e converter as sanções pecuniárias em projetos de recuperação de áreas degradadas. Porém, o Núcleo de Conciliação Ambiental só pode realizar a audiência de conciliação após pronunciamento da Procuradoria Federal junto ao órgão ambiental sancionador. Nesse meio tempo, o processo de imposição de sanção em face da infração ambiental fica sobrestado.

A dificuldade de cobrança de multas seria uma justificativa razoável para a criação desse novo procedimento. Caso a conciliação permitisse rápido reconhecimento de culpa em troca de descontos generosos, poderia ser uma alternativa eficiente para garantir o pagamento efetivo da maior parte das multas e uma grande economia de recursos públicos no processamento de recursos administrativos e judiciais.

Porém, o funcionamento atual do mecanismo não parece gerar esse efeito visto que não houve nem uma fração das audiências necessárias, tendo sido realizadas apenas cinco audiências até outubro de 2020 no IBAMA e nenhuma no ICMBio[5]. Isso porque a imposição de etapas preliminares ao processamento dos autos infracionais exige imensa estrutura institucional tanto das procuradorias quanto dos Núcleos de Conciliação para realização de um grande número de audiências, o que não foi efetivado. Assim, o novo rito apenas multiplicou a fila de processos administrativos, dificultando a cobrança.

Outro aspecto que pode ser destacado é o questionamento de instrumentos jurídicos para fins político-eleitorais. Exemplo disso foram as recentes manifestações públicas de autoridades governamentais contra as medidas de inutilização de maquinário envolvido em crime ambiental. Deve-se pontuar que a destruição de produtos e bens, como máquinas e equipamentos, utilizados para a prática de crimes ambientais apreendidos em processos de fiscalização é medida autorizada pela Lei de Crimes Ambientais e seu decreto regulamentador, bem como na Instrução Normativa nº 19/2014 do IBAMA. Assim, a autorização legal de inutilização do maquinário é concedida quando não é possível retirá-lo do local que foi apreendido. Segundo nota explicativa do Ibama, a medida é aplicada em menos de 2% do total de apreensões, o que faz a medida ser excepcional, sendo aplicada sempre em áreas como unidades de conservação e terras indígenas, onde desmatamento e garimpo são proibidos, sendo certo que a destruição dos equipamentos não é ato aleatório e todos os termos de apreensão e destruição são registrados em processos administrativos formais.[6] A destruição de maquinário utilizado para a prática de desmatamento é considerada medida eficaz para impedir que os equipamentos sejam reutilizados pelos infratores, o que não é incomum de acontecer após a apreensão. Apesar desta comprovada eficácia, em 2019 o número de apreensões caiu quase pela metade em relação ao ano anterior[7]

Diante de tantos problemas, existe dificuldade de aplicação de sanções e muitas possibilidades para a reversão de sanções impostas, incluindo anulação dos autos de infração e prescrição das multas.

Reações possíveis: o papel das instituições financeiras e novos projetos de lei

As instituições financeiras estão cada vez mais exercendo um papel-chave no combate ao desmatamento ilegal, na medida em que, enquanto financiadoras e, portanto, viabilizadoras das atividades, podem contribuir para a descontinuação de tais condutas ao se absterem de liberar recursos para empresas e propriedades irregulares sob a ótica legal ambiental.

Pensando nisso, o Banco Central editou as Resoluções 3.545/2008 e 4.427/2015 – que orientam as instituições financeiras em relação aos documentos que devem ser analisados para fins de concessão de financiamento agrícola no bioma Amazônia. Em linhas gerais, tais resoluções estipulam (i) que o interessado na obtenção do crédito deve apresentar, dentre outros documentos, cópia do recibo de inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e (ii) que compete à instituição financeira confirmar a inexistência de embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel, conforme divulgado pelo IBAMA. Estes dois pilares pensados pelo Banco Central para orientar a atuação das instituições financeiras em prol do combate ao desmatamento se ancoram em políticas públicas governamentais – as quais, como passaremos a expor, apresentam falhas.

Em relação ao CAR – previsto na Lei Federal 12.651/2012 (Código Florestal) e pensado como instrumento de integração das informações ambientais dos imóveis rurais, é possível identificar uma desarticulação dessa política – iniciada pela sistemática prorrogação do prazo final para inscrição (prazo este atualmente inexistente) – tamanha que, até hoje, não se tem a validação total dos registros, que são auto declaratórios, pelos órgãos ambientais.

Segundo dados trazidos pela publicação do Instituto Centro de Vida em parceria com o Observatório do Código Florestal, até 2019 apenas 3,4% dos imóveis inscritos no CAR haviam sido analisados pelos órgãos estaduais. Isso significa não apenas que as informações declaradas nesse sistema ainda não foram validadas, mas também que pouco se avançou na identificação de passivos ambientais existentes nesses locais[8]. Ou seja, o CAR ainda não serve aos fins iniciais para os quais foi pensado e, por consequência, ainda não se mostra eficiente como documento de auxílio às instituições financeiras em relação ao combate ao desmatamento ilegal.

Somado a isso, os reflexos já anteriormente mencionados em relação ao reconhecimento do caráter subjetivo da responsabilidade ambiental na esfera administrativa pelo IBAMA também podem repercutir sobre o levantamento de embargos em áreas efetivamente desmatadas de forma ilegal. Em decorrência disso, as irregularidades ali existentes também deixam de ser capturáveis pela análise das instituições financeiras; perdendo-se, por tudo isso, um importante aliado para o combate do desmatamento ilegal.

Convém destacar que o risco de responsabilização ambiental das instituições financeiras por danos decorrentes das atividades financiadas é um dos fatores que tem levado a uma maior preocupação no âmbito das concessões de crédito com as questões ambientais.

A esse respeito, o Projeto de Lei (PL) 6230/2019 – o qual está em tramitação – merece atenção. Além de trazer algumas disposições que objetivam a prevenção de desmatamentos e a regularização de propriedades rurais, o PL estabelece que os financiadores não aprovarão crédito de qualquer espécie para: (i) atividade agropecuária ou florestal realizada em imóvel que tenha áreas embargadas; e (ii) empreendimento que comprovadamente tenha adquirido ou adquira produto oriundo de áreas embargadas. Mais do que isso, o projeto expressamente enquadra como criminosa – incidindo no artigo 68 da Lei de Crimes Ambientais – a conduta de financiar atividades em área embargada e estabelece que o agente financeiro público ou privado se tornará corresponsável solidário pela regularização ambiental do imóvel e reparação do dano ambiental nele realizado.

Ademais, referido PL propõe aumento das penas relacionadas a crimes envolvendo desmatamento ilegal. De acordo com a justificação do projeto, hoje esses crimes são caracterizados como de menor potencial ofensivo, sendo facultado o benefício da transação penal e, portanto, a conversão de penalidade para pagamento de cesta básica[9].

Em adição ao PL 6230/2019, podem ser identificados diversos outros Projetos de Lei que visam a combater o desmatamento ilegal.O PL 3020/2020, por exemplo, visa a aumentar até o dobro as penalidades da Lei de Crimes Ambientais quando os crimes forem cometidos na vigência de reconhecimento de estado de emergência ou de calamidade pública em decorrência do aumento da degradação ambiental durante a pandemia. Na mesma linha, o PL 2328/2020 proíbe a realização de queimadas na Amazônia Legal no período em que perdurar o estado de calamidade pública originada pela pandemia de Covid-19, ressalvados casos especiais.

O PL 4531/2020, por sua vez, dispõe sobre a proibição de supressão de vegetação nativa na Amazônia Legal por 5 anos, excetuando-se casos como a supressão decorrente de manejo florestal sustentável aprovado pelo órgão ambiental competente. Além disso, o projeto estabelece a obrigatoriedade de o poder público federal apresentar, em até 180 dias da entrada em vigor da Lei, os Planos de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento por bioma.

Outro exemplo é o PL 415/2020, que objetiva a instituição por lei do Fundo Amazônia como uma associação civil sem fins lucrativos, com personalidade jurídica de direito privado, cujo intuito é destinar o valor das doações recebidas em espécie para a ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal.

A rigorosidade no combate tende a prevalecer

Essa pluralidade de projetos de lei aponta para um possível aumento da rigorosidade do combate ao desmatamento ilegal pelo Poder Legislativo, ainda que as ações atuais do Poder Executivo tendam ao sentido contrário. Tais medidas combativas podem se dar tanto pela atuação direta do poder público quanto pela regulamentação dos atores privados, mas o foco é único: assegurar que o desmatamento ilegal deixe de ser um negócio que compensa no Brasil. E com a sempre crescente urgência climática, o sucesso dessas medidas será determinante para o futuro político-econômico-diplomático brasileiro.

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[2]Fonte:http://www.observatoriodoclima.eco.br/wp-content/uploads/2019/11/OC_SEEG_Relatorio_2019pdf.pdf. Acesso em: 23.11.2020.

[3] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/03/sob-bolsonaro-multas-ambientais-caem-34-para-menor-nivel-em-24-anos.shtml. Acesso em: 23.11.2020

[4] Fonte: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-76122015000501121&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em: 23.11.2020.

[5] Fonte: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,com-nucleo-de-conciliacao-multa-ambiental-trava-no-pais-partidos-pedem-extincao-de-decreto-no-stf,70003484766. Acesso em: 23.11.2020.

[6] Fonte: Nota de esclarecimento do Ibama de 07 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.ibama.gov.br/notas/1357-nota-de-esclarecimento-sobre-discurso-no-senado-em-relacao-aos-procedimentos-do-ibama. Acesso em 21.11.2020.

[7] Fonte: https://theintercept.com/2020/04/27/bolsonaro-destruicao-maquinas-crimes-meio-ambiente/. Acesso em: 21.11.2020.

[8] Fonte https://www.icv.org.br/drop/wp-content/uploads/2020/01/publicacao-ValidaCar-Site.pdf. Acesso em 21.11.2020.

[9] Fonte: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8049455&ts=1594037675908&disposition=inline. Acesso em: 23.11.2020.