O que é isto: a vulnerabilidade?

JOTA.Info 2021-04-29

Durante o período de pandemia, tornou-se lugar comum o uso do termo “vulnerabilidade” enquanto categoria a designar diferentes situações de fragilidade social. O vocábulo serviu para apontar localidades mais propícias à propagação do vírus, a situação de escassez de leitos e insumos nos serviços de saúde e a existência de grupos populacionais mais suscetíveis à infecção, indicando também os impactos negativos suportados pelas bolsas de valores, a fragilização da social-democracia em governos autoritários, além da exposição de dados pessoais no mercado de consumo.

Mas quando reproduzimos a vulnerabilidade em nossos textos e contextos, será que estamos todos falando a mesma língua? Dito de outro modo: antes de qualificar distintas situações da vida social como vulnerabilidades, não deveríamos discutir previamente o que é isto: a vulnerabilidade? Em suma, o que implica dizer que algo ou alguém é vulnerável perante o Direito?

Sinteticamente, essas são algumas das reflexões que ofereço aos qualificados leitores do JOTA em meu primeiro texto nesta coluna.

Na realidade, todo ser humano é vulnerável. Esta afirmação acompanha a humanidade desde os primórdios da civilização. O mito de Aquiles, por exemplo, conta a história do herói grego que se tornou imortal após ser mergulhado por sua mãe nas águas do Rio Estige. Ao auxiliar os aqueus na famosa Guerra de Tróia, Aquiles encontrou o seu breve fim ao ser atingido por uma flecha na única região de seu corpo não banhada pelo rio. Desde então, o ponto vulnerável por onde alguém pode ser atingindo permanece conhecido como calcanhar de Aquiles.[1]

Igualmente, na obra Ética à Nicômaco, Aristóteles aborda a questão sob a ótica da mortalidade humana. Segundo o pensador ateniense, a vulnerabilidade seria uma virtude responsável não apenas por estabelecer uma consciência acerca da própria finitude, mas também por revelar uma fragilidade humana após a morte. Daí a razão inclusive de investirmos na busca de uma vida virtuosa.[2] Da mesma forma, no Império Romano, Sêneca dedicou boa parte de seus discursos à brevidade da vida, relacionando o fato de sermos vulneráveis com a fatalidade do tempo.[3]

Todos estes escritos antigos levam a uma inevitável conclusão: a vulnerabilidade preexiste às relações sociais! Para muitos autores, aliás, ela constitui a razão pela qual os seres humanos se unem socialmente, espécie de remédio a espantar os riscos predatórios de uma vida em solidão. Em síntese, o homem só poderia ser encarado como ser social em razão de uma vulnerabilidade natural pré-existente (“la vulnérabilité de l’homme précède l’esprit des lois”).[4]

Paradoxalmente, a fuga deste estado bravio rumo ao Estado de Direito relegou à humanidade outras situações de vulnerabilidade, estas reproduzidas em meio à gramática social dos conflitos humanos.

Durante o Estado Liberal, a convivência sob um regime imune às vicissitudes sociais ofereceu terreno fértil para o crescimento de novas vulnerabilidades decorrentes não apenas da desigual distribuição de bens e recursos, mas da imposição de um padrão de vida liberal-burguês, inflexível às particularizações sociais. Somado a isso, discriminações eram naturalizadas pelo Direito Privado, como a incapacidade jurídica atribuída a determinados grupos sociais (mulheres, pessoas com deficiência etc.) e a objetificação de pessoas escravizadas, contribuindo para o cultivo de uma era de desigualdades.[5]

Já no século XX, é possível notar uma metamorfose operada sobre o conceito de vulnerabilidade. Se antes vista como um fato natural, responsável por impulsionar uma igualdade formal à luz de um Estado de Direito, com o fim da II Guerra Mundial ela passa a ser encarada como um poderoso indicador de fragilidades envolvendo indivíduos e grupos marginalizados. Migra-se, nesta fase, de uma certa vulnerabilidade (natural) para uma vulnerabilidade certa(social).[6]

Vista com estas lentes, a vulnerabilidade transforma-se em uma importante ferramenta epistemológica,capaz de simultaneamente embasar distintas abordagens disciplinares, oferecendo, ao mesmo tempo, uma plasticidade conceitual que permite a designação de muitos aspectos da realidade social.

Inserida em uma sociedade de risco[7], ela acaba se infiltrando gradualmente na medicina, na economia, na biologia e na política internacional, passando a denominar o isolamento de uma pessoa idosa, a concorrência de uma empresa no mercado financeiro, o risco terrorista, o hackeamento de um sistema informático, a fragilidade de uma área geográfica ou o risco de extinção de uma espécie animal.[8]   

Esta interdisciplinariedade vivenciada pela vulnerabilidade fez desta categoria um importante dispositivo heurístico,[9] imbuído de um potencial prospectivo a permitir tanto a explicação de novas situações experimentadas na interação, quanto o questionamento de dogmas anteriores. Essa é a razão pela qual a categoria vem sendo largamente utilizada para designar distintos fenômenos contemporâneos nos mais diversos ramos do saber.

Todavia, apesar de suas nítidas vantagens conceituais, a vulnerabilidade vê-se constantemente exposta a um paradoxo: o uso corriqueiro ou rotular acaba tornando o seu conceito igualmente… vulnerável, ao menos em uma perspectiva epistêmica. Em outras palavras: “se tudo é vulnerabilidade, nada pode ser vulnerabilidade”, até por uma questão de lógica.

Nesse contexto, em que pese o acerto das ciências naturais ao afirmar que toda pessoa é biologicamente vulnerável, tal reflexão diz muito pouco perante uma ordem de valores juridicamente compartilhados. Ora, se a vulnerabilidade atinge a todos os seres humanos de igual maneira, crível supor esteja ela incorporada ao discurso jurídico e à produção das leis, não atraindo qualquer atenção específica do Direito.

Contudo, tal visão é incorreta por desconsiderar a geometria que a vulnerabilidade pode ostentar no plano da interação social. Nesse sentido, os múltiplos estados pessoais de suscetibilidade tendem a atrair um olhar específico para algumas experiências sociais, projetando uma vasta gama de ações, políticas e medidas para a sua identificação e adequado tratamento jurídico.

Trata-se de considerar não a vulnerabilidade natural, comum a todos os seres humanos, mas uma vulnerabilidade particular, impactante ao Direito. A ciência jurídica deve focar suas energias, portanto, nesta segunda noção de vulnerabilidade, transformando-se em instrumento voltado à reversão de eventos suscetíveis de tornar algumas pessoas mais vulneráveis que outras.

Assim, se o Direito reconhece que determinados segmentos sociais suportam desproporcionalmente situações de risco na interação, uma proteção jurídica específica deve ser reivindicada a partir daí, justificando ações, políticas e medidas para superação desta condição. Deontologicamente, cumpre ao Direito um papel bastante específico frente ao fenômeno da vulnerabilidade: responder normativamente aos diferentes impactos que os estados de fragilidade causam na experiência intersubjetiva entre os cidadãos.

Firme nessas premissas, sustentou-se em trabalho anterior o seguinte conceito de vulnerabilidade: trata-se de uma situação de predisposição a um risco social, ostentada por um sujeito ou grupo, a qual, em razão de determinantes históricas, econômicas ou culturais, favorece uma condição específica de violação de direitos humanos, reprodutora de situações de desrespeito, subjugação, assimetria de poder ou diminuição da cidadania, ofendendo a existência digna.[10]

Desse conceito, extrai-se que toda condição vulnerável invariavelmente irá se caracterizar por uma situação de risco social, reprodutora de uma violação de direitos humanos. É possível perceber, ademais, um princípio progressivo associado a toda forma de vulnerabilidade, que orienta um agir constitucional voltado à superação desta condição de fragilidade nos Estados Democráticos.

Como veremos adiante, estes elementos são indispensáveis para uma adequada compreensão do Direito dos Grupos Vulneráveis, em especial para o estudo sistematizado das regras protetivas, base de toda e qualquer ação afirmativa.

Antes disso, porém, será necessário discutir algumas premissas científicas contemporâneas que fundamentam o estudo jurídico da vulnerabilidade. Esse é o tema de minha próxima coluna. Até breve!

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[1] VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 95-97.

[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 21-25.

[3] SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. Trad. William Li. São Paulo: L&PM, 1993, p. 14.

[4]c’est parce que l’homme est par nature un être vulnérable qu’il est un être social et c’est parce qu’il est un être social qu’il a recours aux règles de droit […] la vulnérabilité de l’homme précède l’esprit des lois“. FIECHTER-BOULVARD, La notion de vulnerabilité et as consécration par le droit. In: COHET-CORDEY, Frédérique (org.). Vulnérabilité et le droit: le developpement de la vulnérabilité et ses enjeux en droit.Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2000, p. 16.

[5] “o paradigma individualista e voluntarista que emerge do direito privado moderno rejeitando a identificação da vulnerabilidade (vulnus, vulnerare: aquele que pode ser ferido), fraqueza de indivíduos ou grupos, ainda que em muitas situações não se tenha hesitado em conferir mesma eficácia de incapacidade em razão do sexo (assim o status jurídico da mulher no direito privado clássico), ou a identificação de um não sujeito nas hipóteses de escravidão de humanos, como no Brasil se estabeleceu em razão do critério de raça”. MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Cláudia Lima. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 25.

[6] BARBOZA, Heloisa Helena. Vulnerabilidade e cuidado: aspectos jurídicos. In: PEREIRA, TÂNIA da; OLIVEIRA, Guilherme de (coord.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p. 7.

[7] BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.

[8] BLONDEL, Marion. La personne vulnérable en droit international. Droit. Université de Bordeaux, 2015, p. 15.

[9] PERONI, Lourdes ; TIMMER, Alexandra. Vulnerable groups: The promise of an emerging concept in European Human Rights Convention law, International Journal of Constitutional Law, vol. 11, n° 4, Oxford University Press and New York University School of Law, 2013, p. 1.059.

[10] O conceito foi originalmente trabalhado na obra: AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para adequação procedimental – a adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI, 2021.