Primeiro, nos tiram o ar; depois, a dose de esperança

JOTA.Info 2021-05-04

A criatividade que as pessoas têm para praticar crimes e burlar regras é estarrecedora. Pouco mais de um ano de pandemia foi tempo suficiente para que a sociedade inovasse também na prática criminosa. Para uma nova realidade, novos crimes. Enganou-se quem apenas pensou que seriamos mais solidários, empáticos e que evoluiríamos enquanto seres humanos nesse período amargo. Aconteceu também. Porém, na contramão da esperança, alguns enxergaram na crise uma oportunidade e, sem hesitar, miraram o novo objeto de desejo da sociedade global: a vacina contra a Covid-19.

Até o momento da última revisão deste artigo, a doença matou aproximadamente 3,2 milhões de pessoas no mundo e 409 mil pessoas no Brasil que, tristemente, está atrás apenas dos Estados Unidos em números absolutos de mortes no mundo.

Diante deste aterrorizante cenário pandêmico, a vacina passou a ser esperança para a humanidade. O seu verdadeiro valor está na proteção à vida, já que é o único meio capaz de nos tornar imunes ao coronavírus. Além disso, trata-se de produto de comercialização restrita, escasso e com altíssima demanda.

Como todo bem de valor, a vacina chamou a atenção daqueles que pretendem cometer crimes patrimoniais e tornou-se objeto material[1] dos crimes de furto e de roubo. É tanto que, desde o início do programa de vacinação no país, temos visto notícias de diversos destes casos.

É neste contexto que os deputados federais Alexandre Frota (SP) e Rafael Motta (RN) e o senador Styvenson Valentim (RN) apresentaram projetos de lei que visam robustecer a resposta estatal para os crimes de furto e roubo de vacinas imunizantes da Covid-19. Embora os três projetos possuam o mesmo pano de fundo, as propostas se diferenciam no aspecto técnico legislativo, na quantidade de pena e na redação.

O Projeto de Lei nº 114/21[2], apresentado pelo deputado Alexandre Frota em 03 de fevereiro de 2021, pretende criar uma lei penal especial, sem alterar a redação já existente no Código Penal para os crimes de furto e roubo.

Deste modo, os artigos 155 e 157 do Código Penal não se aplicariam para os casos em que o furto e o roubo fossem de vacinas imunizantes de coronavírus, mas sim o tipo específico previsto na legislação que se pretende. O projeto de lei prevê, ainda, pena diferente para o “novo crime”: 10 a 15 anos de reclusão, em regime fechado.

Aqui importa observarmos a menção na ementa do PL nº 114/21 de que o regime de cumprimento de pena para estes crimes será “diferenciado”[3]. Não se sabe o que pretendeu o legislador com a utilização deste termo técnico, já que o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), previsto no artigo 52 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), tem natureza jurídica de sanção disciplinar (art. 52, caput, da LEP) ou de medida cautelar (art. 52, §1 e §2), e jamais de regime de cumprimento de pena, por não estar previsto no artigo 33 do Código Penal. Além disso, não conhecemos outro “regime diferenciado” que possa fazer sentido da forma como foi empregado no texto do projeto.

Ressalte-se que, enquanto sanção, o RDD é medida determinada na hipótese de o condenado cometer fato entendido como crime doloso que ocasione a desordem e a indisciplina no presídio (essa determinação ocorrerá na fase de execução) e, enquanto medida cautelar o RDD será aplicado aos condenados que apresentarem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade ou àqueles contra quem recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta grave.

Destarte, de acordo com o princípio da taxatividade[4], o Redime Disciplinar Diferenciado só poderá ser empregado nas hipóteses mencionadas na Lei de Execução Penal, de forma que a expressão empregada pelo legislador merecerá reparo, caso prospere.

Na sequência, o senador Styvenson Valentim propôs o PL nº 1.004/2021[5], pretendendo aumentar as penas previstas para os crimes de furto e roubo quando forem de vacinas imunizantes da Covid-19. O projeto prevê a inclusão de novos incisos nos artigos 155 e 157 do Código Penal com a seguinte redação: “se a subtração for de vacina para a Covid-19”. De acordo com esta proposta, o furto “ganharia” mais uma figura qualificada (reclusão de 2 a 8 anos e multa) e, o roubo, mais uma causa de aumento de pena de 1/3 até a metade (reclusão, de quatro a dez anos, e multa somada a fração da causa de aumento).

O último a apresentar a proposta foi o deputado Federal Rafael Motta, por meio do Projeto de Lei nº 1.081/2021[6] que, assim como o senador Styvenson visava alterar os artigos 155 e 157 do Código Penal. O Deputado, contudo, propôs alterações diversas daquelas propostas pelo Senador.

A ideia é incluir a expressão “se a coisa subtraída for vacina, insumo ou qualquer outro bem destinado ao enfrentamento de emergência de saúde pública” tanto no crime de furto, quanto no de roubo.

Aqui, ao contrário do que consta na ementa do PL, não se trata de incluir “causa de aumento de pena” aos crimes de furto e roubo, mas sim uma qualificadora no furto (porque a alteração consiste na inclusão de novo parágrafo que altera os patamares mínimo e máximo da pena previstas para o furto) e uma causa de aumento de pena no roubo.

Enquanto na última o juiz tem o poder de aumentar a pena do caput de 1/3 até a metade, na qualificadora os patamares da pena já são estabelecidos acima do que prevê o caput[7].

Temos testemunhado uma chuva de Projetos de Lei. O aumento da produção legislativa pelo Congresso em matéria penal é reflexo da constante mudança da realidade social e do crescimento e sofisticação da criminalidade.

Ocorre que “antes de redigir a lei, é preciso pensá-la” (Jean-Daniel Delley apud), e pensar a lei é legislar com qualidade. Nesse sentido, deve-se primeiro considerar o ordenamento jurídico vigente e, se no arcabouço normativo instituído não houver dispositivo que atenda a determinadas demandas sociais a novidade legislativa se imporá.

Em princípio, o ferramental jurídico de que dispomos hoje seria suficiente para a resposta estatal (punição) dos furtos e roubos que se apresentam de maneira específica.

Os crimes de furto (art. 155) e roubo (art. 157) são, a prima facie, os dois tipos que se aplicariam aos casos de subtração de vacina. Quando a subtração ocorrer sem violência configurar-se-á o furto e quando ocorrer com violência ou grave ameaça, então o crime será o roubo.

Além disso, a depender da maneira como for perpetrada a empreitada criminosa, incidirão as qualificadoras ou as causas de aumento destas figuras. O objeto furtado, no caso a vacina contra a Covid-19, não desnatura a qualidade dos crimes.

Indo além, se a subtração de vacinas for praticada por funcionário público, o caso concreto se subsumiria à figura do crime de peculato, prevista no artigo 312 do Código Penal[8] e não nas figuras de furto ou roubo, sem prejuízo, é claro, das penas correspondentes à violência (caso ocorra).

Afora isto, vale lembrar que o Código Penal prevê, como agravante genérica, o fato de o agente ter cometido o crime em ocasião de calamidade pública, o que permitiria ao juiz o agravamento de pena no momento da condenação dos autores da subtração de vacinas. O momento da ação criminosa deverá ocorrer enquanto reconhecida a calamidade.

Prosseguindo na análise do Código Penal, o Título VIII, Capítulo III, traz os crimes contra a saúde pública que, apesar de aparentemente poderem abarcar os casos de subtração de vacinas, não se aplicam nestes casos. Isto porque entre os crimes previstos nos artigos 267 a 285 não há nenhuma conduta que descreva a subtração, violenta ou não, de vacinas e/ou insumos hospitalares. Tampouco se aplica o crime de infração de medida sanitária preventiva[9] nestes casos.

Embora não configure nenhum dos crimes contra a saúde pública, o agente que pratique furto ou roubo de vacinas poderá ser punido como incurso nos crimes patrimoniais (furto e/ou roubo), em concurso formal[10] com o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 do Código Penal), previsto no Título que trata dos crimes contra a pessoa, já que, com sua conduta, o agente, além de atentar contra o patrimônio alheio, expôs a vida ou a saúde das pessoas que tomariam as doses de vacina furtadas ou roubadas a perigo direto e iminente[11].

O caminho percorrido até aqui nos mostra que o Estado possui meios para punir os agentes que subtraiam vacinas imunizantes da Covid-19. Não obstante, a pergunta que se faz é se estes meios atendem, de maneira eficaz e proporcional, à finalidade do Direito Penal incriminador.

A criminalização desenfreada de condutas sociais que já são tratadas pela lei penal não é salutar. Além disso, o legislador é, muitas vezes, seduzido pela falsa necessidade de criar novos tipos ou de endurecer as penas anteriormente previstas, dando voz à vontade popular (soberana) de vingança e cultivando sua imagem política.

Ocorre que, às vezes, a inovação legislativa em matéria penal é não só necessária, mas também a melhor forma de dar ao caso concreto uma resposta estatal proporcional.

Atos que comportam certa peculiaridade reclamam, sim, respostas estatais específicas. Vivemos um estado de exceção em decorrência da pandemia e o ato de furtar ou roubar vacinas imunizantes da Covid-19 afronta não apenas o patrimônio ou a Administração Pública, mas também saúde e vida humanas.

Mais que isso, condutas como estas prejudicam o regular andamento do programa de vacinação nos municípios, estados e em âmbito Nacional. É por isso que a voz da sociedade, revelada em última instância em projetos de lei, deve, nestes casos, ecoar.

De qualquer forma, uma nova figura penal que tenha a intenção de criminalizar o roubo e o furto de vacinas deverá observar, além da Constituição Federal e do ordenamento jurídico infraconstitucional, a melhor técnica legislativa, os bens jurídicos ofendidos e os que o Estado pretende tutelar. O que se pretende proteger com a nova lei é o patrimônio? A saúde pública? A incolumidade pública, especificamente o bom andamento de programas de saúde?

Não parece que surtirá todos os efeitos desejados um tipo penal que preveja especificamente a expressão: “furto de vacinas imunizantes da Covid-19”, melhor seria se a redação optasse pelo termo genérico “vacinas”, na intenção de abarcar futuras condutas como estas, mas que podem não ser de imunizantes da Covid-19 e sim de outra doença.

O regime de pena deve observar atentamente ao que prevê o Código Penal – especialmente nos artigos 33 a 37 – não se pode pretender recrudescer o regime de pena à revelia da lei.

Por fim, o legislador precisa entender se o melhor a fazer é criar um tipo autônomo, uma causa de aumento de pena ou uma qualificadora de tipo já existente, todas essas figuras representam resultado diverso no momento da condenação e, por isso, devem ser ponderadas, estudadas e pensadas antes de se concretizarem. A punição deve ser proporcional ao crime que se destina.

Incorreções como as que comportam os três Projetos de Lei mencionados dificultam a aplicação do Direito e fazem com que a lei penal não cumpra a sua função de proteção de bens jurídicos penalmente relevantes e de controle social.

O Congresso desempenha o importante papel de fazer com que as normas acompanhem a evolução social, mas para que isso ocorra de maneira eficiente e para que o furto e o roubo de vacinas imunizantes da Covid-19 sejam punidos de maneira proporcional é necessário, além da identificação do problema, que as Leis preservem sua qualidade.

new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm(); setTimeout(function(){ const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n") const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knhwxg2c") btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; check.addEventListener("click", function() { if (check.checked){ btn.disabled = false; btn.style.opacity = 1; } else { btn.disabled = true; btn.style.opacity = 0.7; } });}, 3000);


[1] Objeto material é o produto sobre o qual recai a conduta criminosa.

[2] Texto do Projeto de Lei nº 114/21: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1959843>.

[3] Ementa do PL nº 114/2021: “Quem cometer os crimes de furto, roubo ou falsificação de qualquer vacina que imunize da doença causada pelo coranavirs – Covid 19, terá regime diferenciado de pena”.

[4] Princípio da Taxatividade da Lei Penal: art. 5º, XXXIX “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

[5] Texto do Projeto de Lei nº 1004/2021: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8943713&ts=1617133511997&disposition=inline>.

[6] Texto do Projeto de Lei nº 1.081/2021: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1981333>.

[7] Caput ou forma não qualificada do crime.

[8] Código Penal. Peculato. Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.

[9] Código Penal. Infração de medida sanitária preventiva. Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.

[10] Código Penal. Concurso formal. Art. 70 – Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

[11] Código Penal. Perigo para a vida ou saúde de outrem. Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente.