Pêndulo regulatório no mercado de capitais

JOTA.Info 2021-06-24

Facilitar o financiamento de agentes econômicos via mercado de capitais é o objetivo declarado das propostas de reformas legislativas e regulamentares que circulam atualmente no Brasil. Dentre estas propostas estão mudanças na lei societária, com a admissão do voto plural, a captação por meio das Special Purpose Acquisiton Companies (SPACs) e a iniciativa de reforma da regulamentação que trata das ofertas públicas de valores mobiliários, em audiência pública na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Estas propostas refletem um movimento de competição regulatória, com a finalidade de atrair novas ofertas para captações de recursos no mercado de capitais. É uma situação diferente da observada no final da década de 1990 e início dos anos 2000, quando também havia competição por recursos, em especial entre os mercados emergentes, mas o que estava em jogo era a comparação da capacidade dos sistemas jurídicos em proteger os investidores. Comparando este período com o atual, pode-se falar em um pêndulo regulatório: se agora tende para a facilitação da captação, antes estava em direção à proteção dos investidores.

No caso do voto plural, uma classe de ações acumula direito de voto superior às demais, o que é expressamente vedado pela Lei das S.A. vigente. A ideia seria rever essa vedação e incluir no nosso ordenamento jurídico uma maneira de concentração do poder de controle, em um acionista ou em grupo de acionistas, sem se guardar proporcionalidade com o volume de investimentos na companhia.

Sob certo ponto de vista, não seria propriamente uma novidade. Esta situação de concentração já é possível com a utilização, isolada ou conjunta, de ações preferenciais, “superpreferenciais”, acordos de acionistas e estruturas piramidais. Estas possibilidades, no entanto, já estiveram associadas à noção de falta de proteção dos acionistas e baixos padrões de governança corporativa. No passado, chegaram a constituir incentivo para medidas de contenção, com a bem-sucedida iniciativa da criação do Novo Mercado.

A proposta de admissão do voto plural traz consigo um toque de modernidade e inovação, pois é uma estrutura de capital utilizada por importantes empresas de tecnologia, tais como Google, Facebook, LinkedIn, Snapchat entre outras. Por ser permitido no mercado norte-americano, a possibilidade de dual class foi apontada como uma das razões para a escolha dos EUA como referência de abertura de capital. Este foi o caso do Alibaba que preferiu a NYSE à bolsa de Hong Kong e também da XP Inc., em detrimento da B3 – dentre outras.

Na ponta da oferta, circulam ideias de que captações no Brasil poderiam usar as estruturas de Special Purpose Acquisition CompaniesSPACs, como alternativa às formas tradicionais de Initial Public Offerings – IPOs, ou até mesmo de ofertas de cotas de Fundos de Investimentos em Participações – FIPs. As vantagens incluiriam menor burocracia e maior agilidade. Trata-se de mecanismo pelo qual se levanta recursos por meio de um IPO de uma companhia recém-constituída, com o propósito específico de realizar a aquisição de alguma empresa que será posteriormente incorporada e passará a ter ações negociadas em bolsa. A estrutura é simplificadamente equiparada a dar um “cheque em branco” ao gestor, que posteriormente irá avaliar as opções à disposição e usar os recursos captados por meio da SPAC para realizar os investimentos.

Com a proposta de reforma dos regimes de ofertas das Instruções CVM n.º 400/2003 e n.º 480/2009, objeto da Audiência Pública SDM n.º 02/2021, o objetivo é “modernizar, harmonizar e consolidar o arcabouço regulatório”, por exemplo, com aumento das hipóteses de ofertas públicas com rito automático. A intenção é dar mais agilidade aos ofertantes e intermediários e reduzir o custo de observância. Menciona-se que não há o descuido com as informações essenciais para a tomada de decisão de investimentos pelo público, que faz (ou pelo menos deveria fazer) uso das informações disponibilizadas.

O que há em comum nestas três propostas é o objetivo de fomentar a captação, tanto com a criação de novas alternativas, como com uma simplificação regulatória. O discurso é o de modernização e afastamento de barreiras desnecessárias e custosas.

Ninguém irá divergir de mudanças que tenham esses objetivos. É de grande importância reduzir custos de observância que se mostram inapropriados e viabilizar inovações que facilitem o financiamento de empreendimentos. Por outro lado, sabe-se que, em geral, a lei e a regulação impõem obrigações com vistas a corrigir falhas de mercado, diminuir assimetria informacional e atender ao interesse público. Sem a adequada reflexão, a flexibilização das regras de captação tem o potencial de enfraquecer, de alguma maneira, a proteção dos investidores e o funcionamento eficiente do mercado.

Quando se busca inspiração em mercados mais desenvolvidos (como o norte-americano), é preciso lembrar que regras jurídicas e operações não existem no vácuo. Estão imersas em um ambiente distinto, o que influencia o resultado final. Por exemplo, a existência de um forte sistema de enforcement, seja para punição de condutas inadmissíveis, seja para ressarcimento de prejuízos originados em práticas ilícitas e fraudulentas. E, neste ponto – exigência e cumprimento de normas jurídicas, talvez haja consenso de que o Brasil ainda precisa evoluir.

Um relatório recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que, em matéria de efetividade de mecanismos de proteção, o Brasil deve tornar mais eficiente o sistema de ações derivadas contra os administradores e o mecanismo da arbitragem.  Ao mesmo tempo, um trabalho da pesquisadora Ana Carolina Rodrigues (da FGV Direito SP) indica uma baixíssima utilização das ações de responsabilização da administradores de companhias. Por sua vez, os relatórios de acompanhamento das atividades de enforcement publicados pelo Núcleo de Estudos em Mercados Financeiro e de Capitais da FGV Direito SP (“MFCap”),relativos aos anos de 2019 e 2020, mostraram poucos casos com punições de administradores ou intermediários em ofertas públicas.

Assim, a eventual adoção do voto plural precisa vir acompanhada de maior clareza e segurança sobre mecanismos para mitigar questões com conflitos de interesses e operações entre partes relacionadas. Auxiliaria no processo um padrão na atuação da CVM, para a punição exemplar de condutas irregulares de administradores e controladores. As novas penas trazidas com a Lei n.º 13.507/2017 e as referências para a dosimetria da Instrução CVM n.º 607/2019 precisam ser aplicadas para sinalizar a inadmissibilidade de abusos nesse campo.

Cabe a mesma questão no caso das SPACs, que nos Estados Unidos tiveram um grande crescimento no volume de captações a partir de 2017 (ainda que seja uma alternativa disponível há um bom tempo). Em 2020 houve uma verdadeira explosão no número de operações, com 256 operações com SPACs captando US$ 79,3 bilhões[1]. O mecanismo merece atenção não apenas pelas suas inúmeras virtudes, mas também pelas questões que desperta em matéria de proteção dos investidores.

Aqueles que se debruçaram sobre as SPACs apontam desafios em termos de avaliação por investidores não profissionais da remuneração a que faz jus o sponsor, conflitos de interesse na sua atuação (em especial quando se aproxima a data limite para a realização da operação de M&A) e transparência em relação às condições financeiras da própria SPAC e da companhia-alvo. Diversos reguladores e autorreguladores como FCA, Singapore Exchange e mesmo a SEC têm se dedicado ao tema.

O mecanismo tem suas particularidades, que se somam às questões já ordinariamente presentes nas ofertas públicas de valores mobiliários, agora em processo de revisão. A temática é complexa e envolve o papel das instituições intermediárias, dos deveres fiduciários dos administradores, de observância do suitability e do adequado tratamento das situações de conflitos de interesses.

As cada vez mais constantes crises financeiras sugerem que iniciativas reformistas liberais e que se fiam em mercados eficientes e racionais precisam de devida cautela. As eventuais salvaguardas existentes (que, em alguns casos, podem ser fonte de outras ineficiências) precisam ser removidas com cuidado. Se for o caso, com a sua substituição por outros mecanismos que tragam efetividade à proteção do público investidor.

No caso brasileiro, para ter um mercado com produtos diversificados e complexos, é imprescindível reconhecer que ainda precisamos fazer a tarefa de casa de ter um forte enforcement, mais supervisão e atenção ao papel e responsabilidade dos agentes.

Este ponto tem especial relevância com a entrada em massa de pessoas físicas em investimentos de risco, muitos motivados por uma onda de influenciadores das redes sociais. Outro aspecto a ser considerado é a baixa liquidez de parte dos ativos no mercado brasileiro, o que não permite o famoso “voto com os pés”, em caso de descontentamento com a decisão anterior de investimento.

Em conclusão, espera-se que as reformas sejam acompanhadas, com a mesma intensidade, por reflexões e propostas que diminuam as dúvidas sobre a efetividade dos limites aos conflitos de interesses, práticas abusivas e ilícitas. Retomando a ideia do pêndulo regulatório, espera-se que ele dê lugar ao equilíbrio entre as preocupações de captação e a proteção dos investidores, para um desenvolvimento saudável do mercado de capitais brasileiro no longo prazo.

Este artigo e as opiniões nele contidas não refletem necessariamente as posições da Fundação Getúlio Vargas, da Comissão de Valores Mobiliários e de outras instituições com as quais os autores tenham vínculos.

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[1] OECD on SPACs: trends and issues, 10 June 2021.