A Vantagem da Desvantagem

JOTA.Info 2021-07-16

““Idiotas pensam que você cura a ganância com dinheiro, o vício com substâncias, problemas de especialistas com especialistas, bancos com banqueiros, economia com economistas e crises de dívidas com gastos de dívidas”.

Nassim Nicholas Taleb

 

O embaixador Fernando Guimarães Reis, quando professor no Instituto Rio Branco, sempre alertava para os riscos de o diplomata se tornar uma espécie de boi-de-piranha universal. Costumava citar, para ilustrar o ponto, a acidez de Ortega y Gasset, para quem “esses homens da carrière são o universal ´quase´: quase elegantes, quase aristocratas, quase funcionários, quase inteligentes e quase Don Juans”. Raramente, contudo, esses pobres aprendizes de Maquiavel conseguem se livrar do adjunto adverbial, tornando-se verdadeiramente gênios, via de regra em alguma outra área não relacionada. Certamente nisso ajudados pelo olhar afiado que uma vida instável e de constantes mudanças lhes impõe. A carreira é repleta de ironias.

 

Um desses raros casos é o do diplomata britânico Alfred Mitchell-Innes (1864-1850). Mitchell-Innes teve uma carreira ao mesmo tempo banal e inusitada. Ingressou no Serviço Diplomático Britânico em 1890 e teve seu primeiro posto na cidade do Cairo no ano seguinte, em 1891. Suas habilidades como economista não devem ter passado desapercebidas, porque, apenas 5 anos mais tarde, em 1896, deixou o serviço de Sua Majestade para tornar-se assessor financeiro do Rei Rama V de Sião, atual Tailândia. Em 1899, Mitchell-Innes foi nomeado Subsecretário de Estado para Finanças do Egito, posição em que permaneceu até 1908. No Cairo, Mitchell-Innes fundou o prestigioso clube de futebol Al Ahly, em 1907. Jogada de craque. No ano seguinte, retornou para o serviço, atuando como conselheiro da Embaixada em Washington até 1913. Por fim, encerrou sua carreira diplomática em um último posto, como Ministro-Conselheiro da Embaixada Britânica em Montevidéu, poucos anos depois, em 1919. Não chegara a embaixador, nem percorrera o Elizabeth Arden, diriam os mais cínicos.

Andemos com calma. Nem tudo o que reluz é ouro. Teria sido, de fato, uma carreira um tanto morna, não fossem os dois artigos sobre teoria monetária que Mitchell-Innes publicou para o Banking Law Journal, redigidos durante seu período em Washington, provavelmente racionalização madura de sua experiência prática na área de economia e finanças em Sião e no Egito. Repare, cara leitora, que Mitchell-Innes não estava para brincadeiras: o Banking Law Journal é uma das mais tradicionais revistas acadêmicas em direito bancário e financeiro nos EUA, fundada em 1889 e ainda hoje em circulação. “What is Money?“(1913) e “The Credit Theory of Money” (1914) são consideradas entre as principais obras em teoria monetária no século XX, tendo recebido avaliação positiva até mesmo de John Maynard Keynes – o que para alguns é um capitis deminutio. Não se pode agradar a todos.

Mitchell-Innes, assim, é um dos autores seminais da chamada “teoria creditícia da moeda”, segundo a qual a moeda nada mais é do que a unidade contábil de um crédito ou um débito, dependendo da perspectiva a partir da qual se observe o fenômeno. Essa escola se opõe à “teoria quantitativa da moeda”, segundo a qual a moeda teria um valor intrínseco e a quantidade de moeda em circulação afetaria somente as variáveis nominais da economia, como preços, renda e juros, fenômeno esse batizado de “neutralidade monetária”. Mitchell-Innes argumentava que o nível da oferta de moeda em uma economia seria irrelevante, uma vez que a real base monetária seria a quantidade de crédito/débito em uma economia, maximizada, por sua vez, pelo funcionamento do chamado shadow banking system, isto é, pelas operações não-regulamentadas de instituições quase-financeiras, como fundos de hedge e sistemas de pagamento, que gravitam ao redor do sistema bancário oficial e regulado. Para Mitchell-Innes, “moeda é crédito e somente crédito”. Ponto.

Parece uma frase de efeito, cara leitora, mas não o é. Trata-se, de fato, de uma afirmativa que, se estiver correta, poderia acarretar enormes consequências para a economia internacional nestes tempos de pandemia. A pandemia de Covid-19 se acometeu sobre o mundo em um momento de transição do sistema capitalista internacional, de um sistema baseado na produção e na poupança para um sistema baseado no consumo e no endividamento. Esta nova fase do capitalismo elegeu como setor privilegiado o mercado imobiliário, no qual se assenta a babel de uma inflação e de um endividamento constantes, que se tornaram o motor frágil das diversas economias nacionais. Neste sistema, a festa não pode parar, ainda que ninguém mais tenha renda para comprar uma quitinete à vista. É como uma dança das cadeiras eterna: se a música parar, vai tudo para o beleléu.

As medidas de isolamento social implementadas ao redor do globo para fazer face ao avanço da pandemia foram um duro golpe nesse sistema, em especial no setor comercial do mercado imobiliário. Para compensar isso, seria necessário aumentar o crédito para o setor residencial, sob risco de ver-se o castelo de cartas ruir.

Essa é uma das muitas razões que levaram os bancos centrais ao redor do mundo a praticarem políticas massivas de quantitative easing (QE), como jamais vistas na história financeira da humanidade, o que nada mais é do que injetar dinheiro do banco imobiliário para as pessoas se endividarem ainda mais e comprarem mais imóveis, cada vez menores e de pior qualidade. Esse modelo pode aguentar tudo, menos uma depressão global, com um processo deflacionário dos imóveis, porque isso levaria a uma quebradeira geral e, talvez, traria a economia global para o nível real de produção e poupança. Isso ninguém quer, cara leitora.

Neste ponto, o debate sobre a natureza da moeda é crucial. Se Mitchell-Innes estiver correto, e a moeda nada mais é do que crédito, o maior QE da história conhecida não levaria apenas a um aumento da quantidade de moeda em circulação, o que em si seria irrelevante e, no máximo, geraria inflação, algo até certo ponto positivo, dado o cenário atual e o novo modelo de capitalismo creditício. O fundamental, da maneira como o QE vem sendo operacionalizado pelos bancos centrais, seria o fato de que, por estimular a oferta de crédito global, essa política levaria a uma expansão da base monetária real da economia, via o shadow banking system, mantendo controlado o nível de inflação dos ativos reais, como commodities e imóveis, que são a base do sistema de crédito das economias, hoje baseadas em uma espiral de consumo e endividamento, que funciona como um encanto para quem pode ouvi-lo. Uma jogada de gênio? Quem aguentar para além dos 90 minutos de jogo verá.

Essa estratégia enfrenta, pelo menos, dois problemas fundamentais. O primeiro é a instabilidade do shadow banking system, que, por não ser regulado, pode levar a quebras, com potenciais efeitos sistêmicos, exatamente como ocorreu na crise do subprime em 2008. Um exemplo recente são as perdas do Grupo Bitcoin Banco[1], que, por não ser uma entidade regulada, não participava do sistema bancário e não poderia, portanto, ser socorrido por suas estruturas de recuperação. Parece haver uma necessidade desse sistema atual, cara leitora, de maior regulação do shadow banking system. Nos próximos anos, certamente assistiremos a uma clivagem ainda maior entre o direito e as finanças.

O segundo problema fundamental, e talvez mais importante, seja o fato – não ignorado por Mitchell-Innes –  de que, em uma dada economia, há sempre várias moedas em circulação ao mesmo tempo concorrendo entre si. As moedas oficiais, contudo, gozariam do privilégio de serem o valor unitário de referência obrigatório para o pagamento de tributos, o principal vetor do sistema de crédito/débito em uma economia nacional. Na época de Mitchell-Innes, as moedas nacionais concorriam com as moedas bancárias, tais como notas promissórias e outros títulos de crédito. Atualmente, além das moedas bancárias, elas também concorrem com as criptomoedas privadas, em um movimento global que arrisca tirar o controle dos bancos centrais da política monetária dos estados nacionais. Uma sinuca de bico.

É nesse contexto, portanto, que se pode analisar, ao menos teoricamente, o acordo celebrado no âmbito do G20 para estabelecer um imposto global sobre os lucros de empresas multinacionais. Segundo a teoria creditícia da moeda, um imposto global de tal magnitude, ao gerar uma relação global de crédito/débito, geraria uma expansão da base monetária internacional, com efeitos reais sobre o nível de preço de ativos globais e a manutenção de uma taxa constante de crescimento, pressuposto mesmo de viabilidade do sistema. Além disso, um tal imposto funcionaria como um verdadeiro esteroide para as moedas nacionais, cuja demanda em muito se fortaleceria em relação às criptomoedas privadas. Resta em aberto, contudo, a real viabilidade de concretização dos corolários necessários dessa proposta, que parecem ser, primordialmente, a instituição de uma govcoin global e a implementação de um sistema-padrão obrigatório de contabilidade internacional. Isso sem mencionar os possíveis impactos sobre a liberdade econômica individual. Ou seja, ainda vai dar muito pano para a manga.

Um último ponto de interesse, cara leitora, em relação à obra de Mitchell-Innes: a sua paixão pelo Direito. O diplomata publicou um artigo muito interessante em 1913, intitulado “Love and The Law: a Study in Oriental Justice”, no qual comparava os parâmetros de justiça no oriente e no ocidente, ressaltando a falta de um instituto jurídico para a “compaixão” neste último. Bom economista que era, transpôs para o âmbito jurídico a famosa Lei de Gresham,[2] estabelecendo que no mundo do direito “as pessoas sem compaixão afastam aquelas com compaixão”. Brutti tempi.

Noves fora o acerto ou não da teoria creditícia da moeda, o fato é que Mitchell-Innes conseguiu afastar, isto sim, o adjunto adverbial que amaldiçoa todo o diplomata. Deixou de ser um quase qualquer coisa para se tornar um verdadeiro gênio da economia e das finanças. Se a sua análise estiver correta, a mescla de políticas monetárias expansionistas e fiscais restritivas em âmbito global terão contribuído para evitar um armagedon econômico internacional. Se, ao contrário, a apreciação monetária no longo prazo não for uma lei universal da economia e o esforço de QE e tributação global tampouco forem capazes de evitar uma longa depressão internacional até o final da década, que o historiador do futuro não culpe o diplomata. Por dever de ofício, ele apenas lançara a dúvida. O erro de análise, por conseguinte, terá sido ele todo cometido pelo economista. Como diria Johan Cruyff, “toda a desvantagem tem a sua vantagem”.

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[1] https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2021/07/05/rei-do-bitcoin-e-preso-pela-pf-suspeito-de-desviar-r-15-bilhao-em-golpe.ghtml

[2] Já tivemos a oportunidade de analisar a Lei de Gresham neste mesmo espaço: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-de-gresham-as-govcoins-e-as-criptomoedas-18062021