De onde vem o ‘poder’ do TCU para barrar desestatizações?
JOTA.Info 2022-02-02
É fato: com base em norma interna, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem realizado controle prévio de processos de desestatização. Há pouco, por exemplo, deu sinal verde para a concessão da Companhia Docas do Espírito Santo depois que o governo acatou seus apontamentos (Acórdão nº 2.931/2021).
Há intenso debate sobre a conveniência do controle prévio em contratações públicas. De um lado, há quem sustente que o modelo diminui a capacidade dos gestores de tomar decisões, transformando-os em braço quase mecânico do controle. A tendência de acatar o que o TCU propõe decorre de um mix de instinto de sobrevivência (temor de responsabilização), pragmatismo (para agilizar, melhor aceitar) e esperteza (acatar os apontamentos para partilhar riscos). De outro, há quem sustente que ele é fundamental para prevenir modelagens contratuais equivocadas e aperfeiçoar trabalhos técnicos insuficientes e defeituosos.
Mas o direito brasileiro atribui ao TCU o poder de realizar controle prévio de contratações públicas?
A Constituição optou pelo controle a posteriori como regra (ver aqui e aqui). A reconstrução dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte corrobora essa conclusão [1]. Especificamente em relação a contratos, a Constituição de 1988, repetindo a fórmula que passou a ser adotada pela Constituição de 1967, não conferiu ao TCU qualquer poder de veto prévio.
É sedutora a retórica segundo a qual a intervenção prévia seria condição para a efetividade do controle. Por essa lógica, a atuação ex-ante seria necessária para proteger o erário de maus gestores e de órgãos com deficiências estruturais de capacidade regulatória. Mas o limite do controle externo não pode ser redesenhado para além das fronteiras da Constituição. A própria concepção do Estado de Direito contém em seu núcleo a proteção de meios para evitar sua subversão pelos fins.
No plano legal, a Lei 8.666/93 autoriza o controle de editais de licitação, mas apenas após sua publicação (artigo 113, §2º). A Lei 14.133/21, por sua vez, autoriza o tribunal a “suspender cautelarmente o processo licitatório” (artigo 171, §1º). Ao fazê-lo, o diploma não se referiu à fase preparatória, claro, mas ao que vem depois do edital — do contrário, seria incompatível com a Constituição.
Normalmente apontado pelo TCU como base legal para controle prévio de desestatizações, o artigo 18, VIII, da Lei 9.491/97, diz tão somente que compete ao gestor do Fundo Nacional de Desestatização “preparar a documentação dos processos de desestatização, para apreciação do Tribunal de Contas da União”.
A lei se limita a afirmar que o Tribunal irá apreciar (e não aprovar previamente) os documentos relativos a processo de desestatização; não lhe confere poder adicional aos que previu a Constituição [2]. O dispositivo, aliás, vigora há 31 anos (desde o artigo 21, XIII, da Lei 8.031/90). Se dele se extraísse competência para controle prévio, teria o TCU se eximido de exercê-la até 1995, quando editou a primeira norma interna sobre o tema (IN 10)?
O TCU pode emitir opinião quando quiser sobre temas de gestão pública. Mas em matéria contratual, sua opinião prévia não é impositiva, não tem força jurídica. No que tange ao controle prévio de contratações, o TCU agigantado não é escolha do Direito.
[1] Ver André Rosilho. Tribunal de Contas da União – competências, jurisdição e instrumentos de controle. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 74 e ss.
[2] Cf. Eduardo Jordão. “A intervenção do Tribunal de Contas da União sobre editais de licitação não publicados: controlador ou administrador?” (capítulo 11). Tribunal de Contas da União no Direito e na Realidade. São Paulo: Almedina, 2020, p. 349.