Passaporte da vacina e eleições: exercício do direito ao voto seguro?

JOTA.Info 2022-02-04

O ministro Luís Roberto Barroso negou a informação de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estaria considerando exigir a apresentação de comprovante de vacinação nas eleições deste ano. As medidas adequadas, segundo o presidente do TSE, serão analisadas e adotadas em “ocasião própria”. Significa que, mesmo sem considerar essa possibilidade no momento, a Justiça Eleitoral poderá avaliar a exigência do chamado passaporte da vacina à luz da opinião futura de especialistas – como de fato fez em 2020. Isso implica reconhecer a importância de se iniciar o debate jurídico-normativo que se avizinha, permitindo que potenciais decisões futuras sejam adotadas com a observância do ordenamento jurídico e com a devida reflexão pública e amadurecida na sociedade civil.

Já em 2020, em meio à explosão da pandemia, o TSE precisou enfrentar o desafio de assegurar a realização segura, do ponto de vista sanitário, das eleições municipais em todo o território nacional. Evidentemente, não se podia falar em exigência de vacinação diante da inexistência de imunizantes disponíveis. Com o surgimento de múltiplas vacinas cuja eficácia e segurança já estão cientificamente comprovadas, o quadro mudou, já permitindo que estados e municípios exigissem, mais recentemente, o comprovante de vacinação como condição para a circulação e para a permanência dos cidadãos em determinados espaços (v.g. restaurantes, cinemas, museus etc.). A questão é: seria o caso de se incluir, também, as zonas eleitorais entre os espaços que exigem esta imunização?

Por um lado, as zonas eleitorais se assemelham aos restaurantes e museus como espaços fechados que, na data da eleição, produzem aglomerações potencialmente propícias à circulação do coronavírus. A exigência de vacinação, nestas hipóteses, não trata apenas de evitar a morte de pessoas vacinadas – cujo risco é reduzido substancialmente graças ao imunizante –, mas também de limitar a circulação e potencial mutação do vírus, permitindo o fim de uma pandemia cujas consequências desastrosas já se fazem sentir. Nesse sentido, já se pronunciou o STF acerca da ponderação entre o direito fundamental à saúde (individual e coletiva) e eventuais direitos à liberdade em colisão, para avalizar a exigência em geral do passaporte da vacina, por exemplo, em universidades.

De outro lado, sob uma perspectiva jurídico-normativa, a exigência da comprovação de vacinação para acesso às zonas eleitorais em específico se distingue, ao menos em parte, das restrições impostas a outros espaços abertos ao público na medida em que incide, materialmente, sobre o exercício do direito ao voto (art. 14, Constituição Federal). Trata-se de direito central ao Estado democrático de Direito, inaugurado pela Constituição de 1988 e que consubstancia uma das principais expressões da cidadania e da dimensão pública do direito à liberdade. Considerando, ainda, sua natureza de cláusula pétrea, é exigível das instituições que adotem a máxima cautela na adoção de medidas capazes de restringi-lo.

Isso não significa, contudo, que conformações ao direito de voto não sejam regularmente aplicadas em outras matérias, sem gerar maiores resistências em nossos tribunais. Alguns exemplos dessas conformações incluem limites temporais ao exercício de tal direito (art. 67, Lei 4.737/65), limites administrativo-procedimentais impostos aos eleitores (ADPF 541) e até mesmo exigências sanitárias adotadas em 2020 como condição para o livre e regular desenvolvimento das eleições (art. 245, Resolução TSE 23.611/19).

Tem-se, portanto, que o direito brasileiro vem reconhecendo a constitucionalidade da exigência em geral do passaporte da vacina como condicionante do acesso a ambientes sujeitos à aglomeração; e que o mesmo direito avaliza diversas hipóteses de conformação do direito ao voto.

Isso não responde, contudo, se e em que condições seria constitucionalmente legítimo excluir das eleições parcelas relevantes da população que rejeitam a vacina. Responder isso exige considerar os riscos inerentes à vacinação; compreender a vacinação como direito e dever de solidariedade social; e não descartar a legitimidade do exercício da desobediência civil, indissociável de suas consequências.

Primeiramente, é preciso destacar que a vacinação não é medida mais gravosa que outras adotadas no curso da pandemia. Qualquer conclusão diversa só poderia estar fundamentada na desinformação ou em discursos anticientíficos que não encontram abrigo constitucional à luz do dever do Estado de promover o direito à saúde. Mais que isso, sendo as vacinas seguras, eficazes e gratuitas para o cidadão, a imunização individual é substancialmente menos custosa – ou seja, menos gravosa, em termos de proporcionalidade – que a própria aquisição e uso de máscaras (estas sequer relevantemente distribuídas pelo poder público). Aliás, a legitimidade da vacinação obrigatória como medida de combate à pandemia é confirmada pela expressa autorização legal contida no artigo 3º, III, “d”, da Lei 13.979/20, cuja constitucionalidade foi reafirmada pelo STF por ocasião do julgamento da ADI 6.625.

Disto decorre, em segundo lugar, que a imunização individual se apresenta tanto como direito do cidadão – que pode exigi-lo perante o Estado –, quanto como dever de cidadania e solidariedade social, voltado à proteção coletiva da população. Nesse sentido, as vacinas se assemelham juridicamente a outras proibições e mandamentos legais, como a vedação ao fumo em lugares fechados (art. 2º, Lei 9294/96) ou a exigência de uso de cinto de segurança por motoristas (art. 65, Código de Trânsito Brasileiro).

Por fim, nenhuma dessas conclusões afasta a possibilidade de que indivíduos optem por não se vacinar por razões ideológicas – ainda que anticientíficas. Não há, em nosso ordenamento, a possibilidade de obrigar manu militari que alguém se vacine. Dada a natureza legalmente obrigatória da vacinação, no entanto, tal recusa consistiria em hipótese – ainda que alguns considerem ingrata – de um direito à desobediência civil.

Estes grupos dissidentes não podem esquecer, no entanto, que o exercício da desobediência civil pressupõe o ônus de suportar suas consequências. Na história, os que trilharam este caminho suportaram a violência do Estado, a prisão e a perda de direitos como forma de transmitir suas mensagens. Também os negacionistas, que em nada se assemelham materialmente àquelas figuras históricas, deverão realizar suas próprias escolhas entre recusar a cooperação social e exercer um direito de participação na vida democrática.

Em favor daqueles que optem pela segunda alternativa, é preciso considerar, ainda, quais elementos empíricos devem estar presentes para assegurar que a exigência de imunização individual não produza o risco da supressão do voto. Uma “lista de requisitos” que assegure a legitimidade do passaporte da vacina nas eleições merece ser debatida publicamente, nos diferentes espaços e por diversos especialistas, caso essa providência venha a ser adotada pela Justiça Eleitoral.

Essa lista não poderá prescindir, no entanto, de alguns elementos básicos. Primeiro, a garantia de ampla divulgação prévia, nos diferentes meios de comunicação, da exigência do comprovante de vacinação. Segundo, a garantia de que os cidadãos e cidadãs tenham efetivo acesso à vacinação – um acesso que ainda é discutível quando se trata da população brasileira periférica e marginalizada. Terceiro, que qualquer exigência de comprovação de imunização individual venha acompanhada de regras claras quanto ao momento em que a imunização deve ocorrer, quanto a se o esquema vacinal deve ou não estar completo e quanto aos documentos que podem ser exigidos dos cidadãos como forma de comprovar o atendimento a esta condição de eleições sanitariamente seguras.

Sair da pandemia exige enfrentá-la com seriedade, sem teorias conspiratórias e, principalmente, com atenção aos ditames máximos da Constituição Federal de 1988. As eleições de 2022 serão centrais, ainda, para que o povo brasileiro possa decidir os caminhos que pretende seguir para superar as consequências do caos sanitário instalado desde 2020. O que não se pode imaginar, entretanto, é que aqueles que se negam a cumprir seus deveres como cidadãos possam converter a chamada “festa da democracia” em uma “festa da pandemia”. Caberá aos agentes sanitários, à Justiça Eleitoral e à sociedade definir os meios para impedir isso.

Este artigo expressa a opinião dos autores, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.