Dados como variável competitiva: qual seria o framework de análise?

JOTA.Info 2022-02-04

Na economia atual, cada vez mais caracterizada pela digitalização, dados têm adquirido uma importância crescente. Nesse contexto, a produção, a coleta e o processamento de dados podem ser variáveis competitivas importantes, de maneira que não surpreende que autoridades antitruste ao redor do mundo estejam cada vez mais atentas às suas implicações concorrenciais.

O tema foi tratado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em poucas ocasiões, o que mostra cautela em sua abordagem. Por exemplo, no ato de concentração n° 08700.002792/2016-47, envolvendo a criação de um bureau de crédito integrado por bancos, o Cade considerou que o acesso a dados seria essencial nesse mercado, e negociou remédios com os bancos requerentes para garantir que o bureau não discriminasse instituições financeiras concorrentes quanto ao acesso a informações de crédito de clientes.

Já o processo administrativo n° 08700.004201/2018-38 foi instaurado para investigar a recusa, por parte de um banco, de acesso a dados bancários de seus clientes por um aplicativo de finanças pessoais. O caso foi encerrado com a celebração de um compromisso de cessação de conduta.

Talvez justamente pelo baixo número de casos examinados até agora, o Cade não teve ainda a oportunidade de estabelecer um framework de análise relativa à coleta e ao uso de dados como variável competitiva. O mesmo pode ser dito sobre autoridades concorrenciais estrangeiras e a literatura especializada, que ainda tentam compreender de que forma tais práticas podem influenciar a concorrência.

Por um lado, especialmente em mercados com efeito de rede, os dados podem gerar os chamados “feedback loops”: mais usuários permitem uma maior coleta de informações, um volume maior de dados permite à plataforma aprimorar seus serviços e personalização, melhores serviços atraem e retêm mais usuários dos quais são coletados mais dados, o que, por sua vez, aumenta as oportunidades de monetização por parte da plataforma.

Por outro lado, tão ou mais importante do que a capacidade de coletar dados é a capacidade de processá-los de maneira efetiva, estabelecendo padrões, correlações e associações que possam ser articuladas para aperfeiçoar estratégias comerciais e desenvolver novos produtos e serviços.

Análise da detenção e uso de dados

É nesse contexto que surgem as discussões sobre como a detenção e uso desses ativos deve ser analisada por autoridades concorrenciais. Modelos de negócios em que usuários finais usufruem serviços a custo zero, mas têm seus dados coletados para viabilizar a monetização via publicidade direcionada, levaram à interpretação de que dados seriam um “preço” não monetário “pago” por usuários na economia digital. Isso, por sua vez, deu origem a uma teoria do dano que equipara o aumento da coleta de dados a aumento de preços como indício de possível abuso de poder de mercado.

Por exemplo, em 2016, a autoridade concorrencial alemã iniciou uma investigação em face de uma empresa do mesmo grupo de uma rede social por condicionar seu uso à coleta de dados de outras fontes, incluindo terceiros, e vinculá-las à conta dos usuários, o que representaria uma violação antitruste por abuso de sua posição dominante no mercado de redes sociais. Após decisões a favor e contra a companhia nos tribunais da Alemanha, o caso foi remetido, em março de 2021, à Corte de Justiça Europeia, que decidirá em definitivo.

Ocorre que há diferenças importantes entre dados e preço que devem ser levadas em consideração antes de se aplicar essa analogia. Assim como há relutância de autoridades concorrenciais em intervir em situações de aumento de preços por conta da extrema complexidade em definir o “preço competitivo”, a coleta supracompetitiva de dados exigiria da autoridade a determinação da quantidade ideal de dados que seria legitimamente obtida pelos concorrentes em um dado mercado.

Além disso, o preço supracompetitivo só é sustentável por parte de uma empresa com poder de mercado (caso contrário, o preço retornaria ao nível competitivo como resultado da diminuição da demanda). O mesmo não parece se aplicar a dados, pois empresas com e sem poder de mercado podem adotar práticas abrangentes de coleta.

Adicionalmente, dados são bens não rivais (a detenção de um certo tipo não impede que outros concorrentes tenham acesso aos mesmos dados), não escassos, de fácil coleta e baixo custo. A coleta de dados também pode ter efeitos ambíguos sobre os consumidores, pois ainda que estes experimentem reduções na privacidade, os dados podem ser utilizados para melhor conhecer suas preferências e, assim, aprimorar produtos e serviços ofertados.

Por fim, como dito acima, dados precisam ser utilizados e processados engenhosamente pelas empresas para que tenham real valor competitivo. É pela criatividade e pelo engenho empresarial que se tornam realmente úteis, e quando isso ocorre as eficiências e vantagens para o consumidor se tornam evidentes. Em outras palavras, a mera coleta não cria vantagem competitiva.

Assim, as autoridades concorrenciais devem analisar principalmente como o processamento de dados integra a estratégia de negócios das empresas, assim como quais inovações efetivamente auxiliam nesse processamento. Analogias diretas entre preços e dados tendem a dificultar uma percepção adequada sobre o mercado ao invés de contribuir para ela. E situações em que novos produtos e serviços são gerados a partir de inovação e eficiência podem acabar sendo reprimidas ao invés de premiadas.

Diante da incipiência de teorias do dano consistentes sobre dados, o Cade faz bem em prosseguir de forma cautelosa como tem feito até agora. Eventuais ajustes na jurisprudência devem refletir de forma equilibrada as diferentes visões sobre o tema. De resto, na ausência de consenso sobre as situações em que o uso de dados pode suscitar preocupações concorrenciais, continuar a usar o framework tradicional de análise parece ser a melhor escolha em benefício da concorrência e do bem-estar dos consumidores.