O corpo caído que nos olha

JOTA.Info 2022-02-04

O assassinato do jovem Moïse Mugenyi Kabagambe, capturado por câmeras de segurança no Rio de Janeiro, estarreceu a todos. É impossível não se sensibilizar com a história do refugiado congolês que escapou do conflito em seu país para morrer de forma brutal no Brasil, em retaliação à sua busca por direitos básicos não reconhecidos.

O corpo de Moïse nos confronta com a fragilidade do nosso sistema protetivo para refugiados, apátridas e migrantes, e com tragédias semelhantes, sejam elas as cotidianamente enfrentadas pela juventude negra periférica ou pelos povos indígenas em situação de refúgio colonial em seu território[1]. Esse cadáver que nós olhamos nos olha também. Ele porta a verdade sobre o nosso próprio tecido social e a linha violenta que o costura.

No ano de 2016, Eddy Mamo, refugiado apátrida que se beneficiou de visto humanitário e acolhimento em nosso país em função da guerra na Síria, morreu assassinado no Brasil. Sua irmã Maha Mamo nos lembra desse percurso em sua biografia[2], ressaltando que entre os primeiros documentos oficiais obtidos estava sua certidão de óbito. Ela dedica hoje a sua vida a uma campanha global por pertencimento.

Mas como pertencer quando as condições de possibilidade para a inclusão estão baseadas em uma forma precária de vínculo? Estrangeiros com status irregular, refugiados sem direito de cidadania, cidadãos sem teto, sem terra, subempregados, famintos. Moïse trabalhava para conseguir sobreviver com o pouco dinheiro recebido a cada dia em um emprego informal entre a praia carioca e um quiosque, dependente da informalidade do laço e da palavra do outro.

Esses casos revelam a falta de uma solidariedade mínima que nos assegure proteção e sentido de comunidade. A marginalização dos corpos diferentes, como são os dos refugiados, apátridas e migrantes, marca talvez uma impossibilidade de pertencimento que nos é constitutiva. Há algo disso que nos remete à violência original que deu o nome ao nosso país e que permanece marcando os outros que podem morrer sem que a nossa ordem social se altere.

Quem de nós é um habitante original dessas terras e fala em língua própria? Se somos parte de uma sociedade chamada Brasil, lembremos que a emergência do nosso Estado está baseada na exploração das terras e seus frutos, na escravidão, aculturação e domínio violento contra povos indígenas e africanos desterrados e escravizados.

A mãe que reclama justiça por Moïse mostra que nós vivemos numa sociedade em guerra e que vozes subalternizadas permanecem refugiadas dentro dela, ainda que o seu status legal pareça oferecer uma resposta diferente. Mas, contra aquilo que emerge como violência subjetiva e aparente exceção, precisamos ser capazes de ver o traço de repetição, o sintoma da nossa patologia social. Precisamos enxergar a violência objetiva, estruturante, aquela que garante a nossa arquitetura social e a própria percepção de normalidade.

Por isso, esse refugiado, negro, africano, silenciado, assassinado, nos diz respeito. Construir um outro país será a única maneira de honrar seu nome e lhe fazer justiça. Por ele e por todos que caíram. Não existe república possível em que um sujeito diferente não possa existir e ser igual.


[1] Ver artigo de Gabriel Gualano de Godoy entitulado “Refugiados indígenas: entre o passado e o futuro do regime de proteção internacional”. In: 70 anos da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951-2021): perspectivas de futuro. Organizadores: André de Carvalho Ramos; Gilberto M. A. Rodrigues; Guilherme Assis de Almeida. Brasilía: ACNUR Brasil, 2021, p. 279-299. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/12/70-anos-projeto-WEB.pdf

[2] Ver livro: Maha Mamo: a luta de uma apátrida pelo direito de existir, por Maha Mamo e Darcio Oliveira. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020.