Sem negociação não há governo possível

JOTA.Info 2022-03-08

Quando tomou posse, Bolsonaro enfatizou que cumpriria sua promessa de campanha: de que a velha política estaria encerrada. Deixando convenientemente vago do que se tratava esta velha política, o presidente teve a oportunidade de mostrar a que veio: aparentemente confundiu negociação que qualquer presidente deve fazer com o Legislativo com negociatas e conchavos, alvo de amplas críticas públicas nos últimos anos. Passado pouco mais de três anos de mandato, já é possível avaliar a produção legislativa para entender este governo.

Para deixar claro o argumento, é útil abordarmos o papel institucional atribuído ao Poder Executivo, órgão chefiado pelo presidente. Diante de várias características, o Executivo no Brasil tem a capacidade de liderar a produção de leis. A ciência política considera o presidente brasileiro um dos mais poderosos do mundo com base nos instrumentos que possui para aprovar leis que mudem o estado de coisas no país. Através deles, dizemos que o presidente tem a capacidade de promover sua agenda de governo. Mas como isso é feito?

Qualquer ação que o presidente queira implementar precisa se transformar em alguma norma jurídica. Há diferentes tipos de legislação, como as leis ordinárias ou a própria Constituição, e o Executivo tem a capacidade de propor novas ou alterar as existentes. Para isso, há um rito a seguir que passa pelo Legislativo. Em suma, para que o projeto do presidente se transforme em lei, ele pode dar início ao processo e encaminhar sua proposta para o Congresso.

Uma vez no Parlamento, representantes legítimos do povo debaterão a conveniência das proposições e apresentarão suas modificações a elas. O presidente, por sua vez, deve buscar apoio dos parlamentares para alcançar seus objetivos. Para evitar que o presidente precise negociar com o Congresso cada projeto individualmente, é comum que se forme uma coalizão: o Executivo divide com outros partidos seu governo, cedendo algumas pastas ministeriais para partidos que se tornam aliados. Esta aliança, chamada de coalizão, governará e as siglas que a compõem votarão a favor dos projetos do presidente. É assim que o sistema presidencialista multipartidário funciona ao redor do mundo.

Apesar de ter sido deputado por sete mandatos consecutivos, o atual presidente levou bastante a sério a ideia de não compor com o Legislativo, sustentando a interpretação de que qualquer acordo implicaria em corrupção. Porém, esta opção criou custos de negociação para os projetos apresentados, dificultando a promoção de uma agenda que lhe interessasse.

Para ilustrar este cenário, vamos computar os projetos de lei propostos pelo Executivo e que tenham cumprido todos os trâmites até sua aprovação. Cada informação trabalhada aqui reflete um projeto de lei que foi proposto por um presidente e tenha sido aprovado durante o seu próprio mandato. Assim olhamos para os projetos que o Executivo criou e que tem real interesse em que se torne lei. O gráfico a seguir apresenta os dados dos mandatos da Nova República:

Fonte: Banco de dados NECI/Cebrap. Elaboração do autor

No gráfico acima, temos nas barras azuis os números de projeto apresentados por cada presidente do período. Podemos ver que, à exceção dos dois governos Fernando Henrique e do primeiro governo Lula, o atual governo não apresenta número diferente dos demais: são 307 projetos apresentados até o final de 2021. Se considerarmos que ainda há um ano a cumprir do mandato, são pouco mais de 102 projetos por ano de governo. Este número é o maior desde o primeiro mandato de Lula, sendo inferior, em média, a todos anteriores a este. Mostra, assim, alguma capacidade de proposição comparável a dos demais governos.

O que é bastante diferente é a taxa de aprovação destes projetos. As barras alaranjadas mostram o número de projetos aprovados e a linha cinza indica o percentual de aprovação correspondente. A média deste percentual em todo o período é de 77%. Isso mostra que, de cada 4 projetos indicados pelo Executivo, 3 são aprovados, em média, ainda durante seu mandato. Nos governos de maior proposição média de projetos (até o final do primeiro governo Lula), essa média é de 88%.

Porém, o quadro se reverte completamente no atual governo. O percentual de projetos aprovados é o pior da série: somente 35,2%. Apenas 108 projetos tornaram-se leis. Novamente, ainda há um ano de governo e esse número pode se alterar, mas é curioso que seja pouco maior que a metade do penúltimo da lista: no governo Temer, 62,2% dos projetos propostos foram aprovados.

Não é possível cravar a razão de número tão baixo, mas um indicativo é a indisposição de Bolsonaro em formar uma coalizão capaz de aprovar sua agenda. A negociação de projetos individuais é sempre mais custosa e se ainda for feita diretamente com os parlamentares, sem passar pelas lideranças dos partidos, resultaria em números como esses.

Essa indisposição para negociar com o Congresso é revelada por um outro dado importante. Um dos instrumentos de maior força do Executivo são as Medidas Provisórias (MP)[1]. Um projeto deste tipo tem força de lei quase imediata e devem ser apreciadas pelo Legislativo com celeridade. É uma ferramenta que dá ao Executivo capacidade de transformar uma situação específica em curto prazo de tempo. O gráfico abaixo revela o padrão de uso desse instrumento pelos presidentes:

Fonte: Banco de dados NECI/Cebrap. Elaboração do autor

Notamos nas barras amarelas que, novamente até o primeiro governo Lula, a proporção de MPs apresentadas em relação ao total de projetos do Executivo era sempre inferior a 42%. No segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma, elas sobem para valores em torno de 50% do total, e a partir do segundo mandato de Dilma a proporção sobe para perto de 80% – no atual governo representa 73% dos projetos apresentados.

Nota-se assim a menor disposição do presidente em levar ao Congresso outros projetos, optando por um instrumento forte de mudança do status quo. Prefere apresentar Medidas Provisórias, por sua força de lei mais célere. Porém, elas ainda assim precisam de aprovação do Legislativo; caso contrário, perdem validade – é o que tem ocorrido.

Mesmo nestes casos em que a escolha do instrumento indica urgência e, portanto, se entende como indicativo de prioridade do Executivo, o atual mandatário apresenta a menor taxa de aprovação das MPs de toda a série: como indicam as barras marrons do gráfico acima, apenas 42% delas se tornam lei. A média até o final do governo Temer para este dado era de 83% de aprovação. O pior resultado anterior era de Temer, com 61% delas aprovadas.

Ainda que nunca tenha havido uma definição clara de velha política, esses dados indicam que a decisão de abdicar de supostos conchavos que estariam disseminados em Brasília nos levou para uma situação de inoperância: o Executivo não implementa sua agenda.

O presidente aparenta ter aberto mão de negociar com o Legislativo que, por sua vez, se vê desobrigado a apoiar projetos aos quais não poderá, por exemplo, dividir o mérito da elaboração junto a seu eleitor. Como não é possível saber se de fato não há mais corrupção (embora exemplos envolvendo o governo não faltem, como o da compra das vacinas[2], e acreditar que tudo depende apenas do Executivo nos pareça um exagero), estamos no pior dos mundos: os legisladores mantêm supostos esquemas, enquanto o Executivo não implementa sua agenda.

Se não é capaz de convencer o Parlamento brasileiro a votar medidas que lhe interessa, o que dirá de impedir uma guerra do outro lado do mundo? Ambas incapacidades estão explícitas hoje.


[1] Consulte: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/entenda-a-tramitacao-da-medida-provisoria

[2] Vide: https://www.dw.com/pt-br/%C3%A0-cpi-deputado-implica-l%C3%ADder-do-governo-em-esc%C3%A2ndalo-de-vacina/a-58053556