A prescrição penal e o estatuto do idoso

JOTA.Info 2022-04-09

O artigo baseia-se em dados quantitativos do sistema prisional brasileiro para analisar a oportunidade, ou não, de alterar a idade da prescrição penal do idoso de 70 para 60 anos, definida no Código Penal (CP), quando autor de delitos.

A idade de 70 anos para prescrição no artigo 115 do CP

Esse dispositivo reduz para os maiores de 70 anos, ao tempo da sentença[1], quando autores da conduta delitiva, o prazo prescricional da pretensão condenatória e executória pela metade1. Ao contrário, quando os idosos são as vítimas e possuem mais de 60 anos, as penas de diversos crimes são aumentadas.

Há uma diferença na lei, portanto, para conceituar idoso, em razão de ser vítima (60 anos) ou autor (70 anos). Se for vítima, é visto como frágil, e se for o autor do crime, é visto como menos frágil que a vítima idosa.2 Veja a relação de crimes contra os idosos, com penas aumentadas:

QUADRO 1 – Crimes com penas aumentadasNormahomicídio doloso (artigo 121, §4º)Estatuto do idosofeminicídio (artigo 121, §7º, inciso II)Lei nº 13.771/2018abandono de incapaz (artigo 133, §3º , inciso III)Estatuto do idosocrimes contra a honra, exceto injúria (artigo 141, inciso IV)Estatuto do idososequestro ou cárcere privado (artigo 148, §1º, inciso I)Lei nº 11.106/2005extorsão mediante sequestro (artigo 159, §1º)Estatuto do idosoabandono material (artigo 244)Estatuto do idoso

Ainda, não se aplica a isenção de pena para crimes contra o patrimônio, definida nos termos do artigo 181 do CP, e nem a imunidade relativa, nos termos do artigo 182 do CP, quando suas vítimas tiverem 60 anos ou mais.

Além da diferenciação entre vítima e réu ou condenado, todos os dispositivos do quadro 1 foram incluídos por leis promulgadas após o início deste século, mostrando que estas mudanças decorrem de ideias recentes, relacionadas principalmente à promulgação do Estatuto do Idoso.

A situação dos idosos brasileiros, em números

Com o envelhecimento, ocorrem mudanças no estilo de vida, necessidades e outros fatores que impactam a qualidade de vida de uma pessoa. Tal fato aumenta de importância à medida que a população brasileira envelhece e a expectativa de vida aumenta, impactando nas políticas públicas, principalmente nas ações voltadas à saúde3.

O sistema prisional piora este cenário de deterioração da qualidade de vida, pelas más condições dos estabelecimentos penais4 e pelos abusos da autoridade, como espancamentos, tortura e humilhações, referenciados no relatório4 de inspeção da Penitenciária Coronel Odenir Guimarães, de dezembro de 2021. Nesse caso, em razão de espancamentos, houve até aborto de detenta. Esse fato não tem relação com o idoso, mas comprova os maus tratos no sistema prisional.

Esse evento ilustra o cenário de ausência de controle sobre os agentes do Estado, em detrimento da dignidade e da integridade de presos, inclusive dos mais vulneráveis.

  • Dados demográficos da população carcerária idosa

Veja os dados do Sisdepen, a plataforma de estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, relativos à demografia das pessoas idosas privadas de liberdade:

Tabela 1 – Pessoa idosa presa/ano5Faixa etáriaPessoa privada de liberdade no ano20162017201820192020De 61 a 70 anos5.772 (1,02%)6.772 (1,11%)6.815 (1,06%)8.678 (1,28%)9.811 (1,42%)Mais de 70 anos1.123 (0,2%)1.076 (0,18%)1.284 (0,2%)1.595 (0,23%)1.821 (0,26%)De 61 a mais de 70 anos 6.895 (1,22%)  7.848 (1,29%)  8.099 (1,26%)  10.273 (1,51%)  11.632 (1,68%) Total564.047608.330640.554680.526690.766

A população de presos idosos é maior do que o apresentado na citada tabela, uma vez que mais de um quinto dos estabelecimentos prisionais não possui informações etárias em seus registros ou somente de parte das pessoas encarceradas.

Estima-se ainda que, se a quantidade de presos em âmbito nacional é diretamente proporcional à quantidade de estabelecimentos, a diferença entre os dados e a realidade é de pelo menos 10%. Portanto, a população maior de 60 anos no sistema prisional atingiu aproximadamente 12.700 pessoas em 2020.

Nota-se o aumento, tanto absoluto quanto relativo, do total de pessoas privadas de liberdade nos períodos analisados, em maior proporção que o crescimento da quantidade total de presos. É um indício do envelhecimento daqueles condenados antes dos 60 anos ou do aumento do encarceramento de idosos, fato que necessita de aprofundamento e de análise.

O elevado crescimento da população carcerária de idosos não é recente, pois Ghiggi aponta3 que, entre 2005 e 2010, “o encarceramento desta parcela da população triplicou”.

Além disso, o aumento da população idosa encarcerada não se limita ao Brasil. Outros países como a Inglaterra e o País de Gales tiveram o aumento da quantidade de presos idosos3, demostrando que esse fenômeno possui uma tendência internacional similar, embora com condições de encarceramento distintas entre os países.

  • Quantidade de prisões com alas ou celas exclusivas à população idosa

É preciso maior cautela na proteção à saúde e à integridade da população idosa, com base no preceito fundamental da dignidade humana. Em razão disso, há a obrigação de serem recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal, conforme §1º do artigo 82 da Lei de Execuções Penais.

Os dados do Sisdepem, resumidos pela tabela 2, demonstram a quantidade de estabelecimento prisionais com alas ou celas próprias para pessoas idosas, entre os anos citados.

Tabela 2 – quantidade de estabelecimentos prisionais com cela(s) ou ala(s) exclusiva(s) entre 2016 e 20205Há cela ou ala para idoso?Ano20162017201820192020Não.1.357 (91,63%)1.386 (93,59%)1.395 (94,19%)1.292 (87,24%)1.354 (91,42%)Sim, há ala(s)34 (2,3%)28 (1,89%)35 (2,36%)37 (2,5%)62 (4,19%)Sim, há cela(s)90 (6,08%)87 (5,87%)84 (5,67%)106 (7,16%)123 (8,31%)Total1.4811.5011.5141.4351.539

O crescimento da quantidade de presídios com alas e celas exclusivas para idosos acompanha aproximadamente o crescimento da quantidade de presos acima de sessenta anos. Contudo, esse aumento atende à necessidade dos presos idosos? Obvio que não. Deve-se, ao contrário, analisar a causa para extirpar a prisão desse tipo de pessoa, principalmente com debilidade física elevada e más condições dos locais de aprisionamento.

Tabela 3 – estabelecimentos prisionais com celas ou alas exclusivas por unidade federativa em 2020.5Estabelecimentos prisionaisUnidade da Federação – Estados e Distrito FederalACALAMAPBACEDFESGOMAMGMSMTPAque tem cela(s) ou ala(s) exclusivas para idosos3011571512010487que não tem cela(s) ou ala(s) exclusivas para idosos327111130089529177154416Total62821613711310729187195223Estabelecimentos prisionaisUnidade da Federação – Estados e Distrito FederalTotalPBPEPIPRRJRNRORRRSSCSESPTOque tem cela(s) ou ala(s) exclusivas para idosos911147450433281145que não tem cela(s) ou ala(s) exclusivas para idosos5462978214172713247037990Total637310829182227535798381134

Estão grifados os estados que não tem estabelecimentos prisionais com cela ou ala exclusivas para idosos. São 171, 160 e 108 presos idosos, respectivamente, em Alagoas, Maranhão e Roraima. Logo, nota-se que não há a infraestrutura adequada para os presos idosos nesses estados, pois não são encarcerados em alas ou celas adequadas às suas condições e separados da população carcerária em geral.

  • Infraestrutura e profissionais da saúde nas unidades prisionais

Serviços médicos e odontológicos nas unidades prisionais auxiliam na prevenção de problemas de saúde da população idosa, assegurando a saúde dessas pessoas que, muitas vezes, apresentam-se fisicamente debilitados.

Assim, é esperado que onde há idosos presos, existam consultórios e profissionais para assisti-los. A tabela 5 apresenta os estabelecimentos prisionais, com população carcerária acima dos sessenta anos, e quais possuem consultórios médicos ou não.

Tabela 5 – Existência de consultórios para idosos nas prisões.5Há consultório(s) médico(s) no estabelecimento prisional?Unidade da FederaçãoACALAMAPBACEDFSim5 (62,5%)3 (75%)5 (33,33%)1 (100%)22 (95,65%)7 (100%)5 (83,33%)Não3 (37,5%)1 (25%)10 (66,67%)0 (0%)1 (4,35%)0 (0%)1 (16,67%)Total841512376Há consultório(s) médico(s) no estabelecimento prisional?Unidade da FederaçãoESGOMAMGMSMTPASim19 (61,29%)22 (61,11%)32 (96,97%)88 (55,35%)23 (67,65%)11 (68,75%)16 (59,26%)Não12 (38,71%)14 (38,89%)1 (3,03%)71 (44,65%)11 (32,35%)5 (31,25%)11 (40,74%)Total313633159341627Há consultório(s) médico(s) no estabelecimento prisional?Unidade da FederaçãoPBPEPIPRRJRNROSim18 (45%)16 (57,14%)5 (62,5%)16 (80%)15 (75%)8 (66,67%)21 (72,41%)Não22 (55%)12 (42,86%)3 (37,5%)4 (20%)5 (25%)4 (33,33%)8 (27,59%)Total4028820201229 Há consultório(s) médico(s) no estabelecimento prisional?Unidade da FederaçãoTotalRRRSSCSESPTOSim2 (66,67%)44 (47,31%)38 (82,61%)3 (60%)140 (93,33%)13 (76,47%)598 (68,66%)Não1 (33,33%)49 (52,69%)8 (17,39%)2 (40%)10 (6,67%)4 (23,53%)273 (31,34%)Total39346515017871

Demonstra-se, então, que quase um terço – 31,34% – de todos os presos idosos estão em estabelecimento sem a infraestrutura de saúde necessária. A maioria das unidades federativas tem mais de 60% das suas prisões com consultório médico, com exceção do Amazonas, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Este dado revela que a garantia à saúde nestes estabelecimentos é precária, expondo a população idosa ao adoecimento e, em alguns casos, à possibilidade de falecimento.

Como conciliar o Direito Penal à realidade prisional dos idosos no Brasil?

A proteção deferida às pessoas com idade superior a 60 anos, pelo Estatuto do Idoso, revela que nessa fase da vida a lei reconhece uma redução significativa da resistência física e mental.

Essa condição, iuris et de iuris, aliada à precariedade e à ausência de locais de aprisionamento de pessoas idosas, demonstra a necessidade de o Estado adotar providências para evitar potencialização indireta, injusta e desumana dos efeitos das sanções penais, em detrimento da dignidade da pessoa humana, principalmente em idade de acentuada debilidade do ser humano.

Há várias opções e se pode optar por:

a) acelerar o trâmite de processos com autores idosos ou em idade próxima;

b) dotar o sistema prisional de infraestrutura adequada para esse perfil carcerário;

c) alterar, de modo inovador, a legislação, à similaridade da Lei 14.273/2021, para autorizar que particulares explorem empresarialmente infraestruturas de sistemas prisionais destinados aos idosos, por meios de autorizações concedidas pelo poder público;

d) alterar a legislação e reduzir para 60 anos a idade do prazo prescricional, quando os autores de delitos forem idosos, em linha de coerência com o reconhecimento da fragilidade da vida pelo Estatuto do Idoso, conforme razões supra.

A certeza é de que algo precisa ser feito pelo Estado brasileiro.


 

[1] Que pode ser entendido também como acórdão, em termos de precedentes do STF, a exemplo do HC 107398/RJ, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

1 Greco, R. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Vol. 1, 18ª ed., Ed. Impetus, pp. 867-868.

2NUCCI, G. de S.. Código Penal Comentado. Ed. Forense. 17ª ed, pp. 717.

3GHIGGI, M. P. Envelhecimento e cárcere: Apontamentos sobre o tratamento do idoso preso em documentos do conselho nacional de política criminal e penitenciária. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 2, p. 9320-9332, feb. 2020.

4cf. a notícia deste site: https://ponte.org/comandado-por-um-suspeito-de-torturas-sistema-prisional-de-goias-e-alvo-de-novas-denuncias-de-abusos/.

5 todos os dados das tabelas foram extraídos de: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen.