Sub-rogação do segurador e arbitragem: o que dirá o STJ?

JOTA.Info 2022-04-30

Problema clássico do Direito dos Seguros é definir se o segurador que paga a indenização se vincula à cláusula compromissória do contrato entre seu segurado e o causador do dano. Disputas sobre o tema são comuns em seguros de transporte de carga (nos quais o segurado é o dono das mercadorias, e o autor do dano é o transportador) e em seguros-garantia de obrigações contratuais (cujo segurado é o contratante, e o responsável pelas perdas é o contratado inadimplente, tomador da apólice).

A dúvida surge por conta do art. 786 do Código Civil: essa regra diz que o segurador se sub-roga “nos direitos e ações” do segurado contra o autor do dano até o limite do valor indenizado. A convenção de arbitragem estaria dentre esses “direitos e ações”?

A jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça (STJ) dá fundamentos para responder nos dois sentidos. Pela eficácia direta da cláusula contra o segurador, há quem invoque o julgado proferido na Sentença Estrangeira Contestada nº. 14.930-EX como precedente[1]. Nele, a Corte Especial examinou sentença de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional que estendeu ao segurador sub-rogado cláusula compromissória prevista em contrato de fornecimento. O relator, ministro Og Fernandes, votou pela homologação.

O ministro João Otávio de Noronha abriu a divergência e votou por indeferir o pedido: segundo ele, o direito brasileiro veda a eficácia automática da arbitragem ao segurador com base na tão-só sub-rogação legal; por isso, a sentença estrangeira ofendeu a ordem pública. Ao fim, o voto do relator venceu. Isso poderia dar a entender, numa leitura ao contrário, que o STJ teria endossado a corrente pela vinculação do segurador à arbitragem a partir do art. 786 do Código Civil.

Ocorre que a decisão não é verdadeiro precedente vinculante – ao menos não sobre esse ponto específico. Para homologar sentenças estrangeiras, o STJ as submete ao chamado juízo de delibação: é análise sob viés estritamente formal e de possível afronta à ordem pública (arts. 38 e 39 da Lei 9.307/96, a Lei de Arbitragem). Vale dizer: o mérito apreciado no tribunal não era a “eficácia da cláusula compromissória sobre o segurador”, e sim a “ofensa à ordem pública” que uma sentença estrangeira poderia causar – estivesse ela certa ou errada no que decidiu[2]. São planos distintos e independentes do crivo judicial – a despeito das observações que os ministros fizeram em obiter dictum sobre a matéria de fundo.

No segundo sentido – pela ineficácia da cláusula ao segurador – é o Recurso Especial nº. 1.962.113-RJ, publicado recentemente no Informativo de Jurisprudência nº. 730[3]. Também aqui, o acórdão não enfrentou o problema de forma direta. O caso versava sobre a extensão dos efeitos de cláusula de eleição de foro ao segurador que ressarciu o segurado. Vingou a seguinte tese: “A cláusula de eleição de foro firmada entre a autora do dano e o segurado não é oponível à seguradora sub-rogada em ação regressiva na qual pleiteia o ressarcimento do valor pago ao segurado”.

A ratio desse entendimento está expressa no voto da relatora, ministra Nancy Andrighi: “a sub-rogação transmite tão somente a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida. […] questões processuais atinentes ao credor originário não são oponíveis ao novo credor […]” (destaques adicionados). Como a cláusula de eleição de foro é ajuste sobre típica matéria processual – a competência em função do território –, o STJ concluiu que ela não se transfere ao segurador pela via da sub-rogação.

A rigor, esse raciocínio vale para a cláusula compromissória. Veja-se: assim como a escolha de foro judiciário, a convenção de arbitragem gera sua eficácia no plano processual; é espécie de negócio jurídico processual. O STJ costuma se referir à sua “natureza híbrida”: contratual na origem e jurisdicional nos efeitos[4]. O objeto do acordo não é o direito material em si, mas sim o método que as partes terão que usar para resolver conflitos em torno dele (atuais ou futuros). Em nada se confunde com figuras de direito material como transação, disposição ou renúncia. As partes abdicam somente do recurso ao Estado-juiz – e não das posições jurídicas nascidas da relação contratual de base.

Pode-se aí dar um passo além: se a razão de decidir do STJ foi a de que a sub-rogação não transfere nenhum dos elementos processuais atrelados à obrigação, por coerência do sistema normativo ela deveria se aplicar também aos casos envolvendo cláusula compromissória. Afinal, institutos da mesma natureza jurídica merecem receber soluções iguais.

Numa visão realista, cabe agora ao STJ seguir um de dois caminhos em julgamentos futuros. Primeiro: o tribunal pode afirmar a ineficácia da cláusula compromissória ao segurador, pelos mesmos motivos que guiaram o precedente sobre eleição de foro. Ou segundo: pode reacender o debate travado nos obiter dicta da SEC 14.930-EX e fincar – em exame de mérito propriamente dito – que a sub-rogação legal transmite a convenção de arbitragem firmada pelo segurado no respectivo contrato, ao lado do crédito. Essa segunda linha, porém, traz o ônus argumentativo de efetuar o distinguishing entre casos. O STJ deve mostrar qual é a diferença juridicamente relevante entre cláusulas de eleição de foro e de arbitragem para justificar, do ponto de vista dogmático, que o segurador se vincule a uma e à outra não.

Em qualquer cenário, o ponto fundamental é que o problema seja levado e resolvido em definitivo no STJ, a quem compete uniformizar a interpretação das leis infraconstitucionais, trazendo a necessária segurança jurídica aos agentes do mercado.


[1] SEC nº. 14.930-EX, Corte Especial, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 27.06.2019.

[2] Essa circunstância foi inclusive destacada no voto do relator: “Uma última consideração há de ser feita: não está firmando neste voto precedente sobre a ampliação ou a restrição dos direitos do sub-rogado em contratos de seguro, em função do disposto no § 2º do art. 786 do Código Civil, até porque este não é o objeto desta lide e nem a tanto se poderia chegar neste procedimento, cujo exame é restrito, como citado alhures.”

[3] REsp 1.962.113-RJ, Terceira Turma, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, DJe 25.03.2022.

[4] Nesse sentido: REsp 606.345-RS, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 08.6.2007.