Rousseau e o bolsonarismo

JOTA.Info 2022-04-30

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teve como uma de grandes preocupações a separação entre a civilização e a barbárie, sob os mais diferentes aspectos (não precisamente usando os termos barbárie e civilização, que ficaram sedimentados muito mais pela obra de Sigmund Freud). Procurou propor um modelo de sociedade em que as pessoas pudessem viver conjuntamente e de forma harmônica.

Em sua obra mais conhecida, Do Contrato Social, de 1762, Rousseau propõe um modelo de Estado baseado em concessões e consensos. Nele, os indivíduos, livres e racionais, expressariam suas vontades e interesses, de forma paritária e igualitária, e chegariam a consensos quanto às regras básicas que deveriam reger o convívio entre as pessoas, os quais proviriam de renúncias voluntárias a parcela das liberdades individuais. Em enorme e injusto resumo, o contrato social seria o resultado de uma renúncia voluntária e racional de parcela das liberdades individuais para viabilizar o convívio coletivo harmônico e pacífico.

Com o modelo previsto no contrato social, Rousseau propõe uma dinâmica pública em que não prevalece a vontade do mais forte, que se impõe sobre os demais à base da coerção. Prevalece uma vontade geral horizontal, construída com a participação de todos e concessões recíprocas de todos.

No entanto, imaginar que as pessoas terão, automaticamente, a capacidade de abrir mão de parcela de suas liberdades e buscar consensos para viabilizar a coletividade é algo, no mínimo, otimista. Implica a necessidade de deixar de olhar apenas para si e passar a olhar para o todo; implica deixar de pensar apenas em seus interesses individuais e passar a olhar para os da coletividade; implica, enfim, deixar de pensar apenas no bem-estar individual e pensar no bem-estar de todos. Deve-se ir contra a natureza humana em seu estado primitivo.

Não por outro motivo, outra das obras mais fundamentais de Rousseau é Emílio, também de 1762. Nela, o autor apresenta uma das principais obras de pedagogia já escritas. Há uma rica teoria de como nasce o ser humano e como deve se desenvolver para que a ideia de vontade geral manifestada no contrato social possa ser, efetivamente, concretizada.

Em Emílio, Rousseau demonstra a importância da educação na formação do ser humano, como processo de transformação do indivíduo solitário para o indivíduo comunitário. Apresenta uma teoria pedagógica de como deve ser a formação de uma criança para que ela se torne um adulto apto a viver em sociedade. Também em um resumo muito injusto, o Emílio apresenta os passos que devem ser cumpridos para que o ser humano deixe de pensar apenas em si e passe a pensar no coletivo, viabilizando a vida em sociedade.

Toda essa introdução, baseada no genial e atemporal Rousseau, tem como objetivo assentar uma premissa fundamental: o Estado viável depende da educação, como deixa claro o eterno iluminista. É impossível ter um Estado funcional sem educação, pois jamais haveria a transformação do indivíduo centrado apenas em si (bárbaro) para o indivíduo ciente de sua parte na coletividade (civilizado).

E exatamente aí chego ao meu ponto principal: o bolsonarismo é a antítese de Rousseau. Tudo o que foi teorizado por Rousseau como essencial para viabilizar o contrato social e o Estado harmônico e viável é negado e desprezado pelo bolsonarismo (e, claro, pela atual extrema direita que aparece em diversos países).

Explico-me. A viabilidade do espaço público, harmônico e igualitário, pressupõe a capacidade de olhar o coletivo, de deixar de pensar apenas em si e pensar no todo. E é precisamente essa capacidade que o bolsonarismo trabalha arduamente para destruir todos os dias.

A tal da liberdade pregada por Jair Bolsonaro e seus seguidores nada mais é do que o abandono da ideia de coletividade. É o foco na satisfação pessoal, em detrimento do coletivo. Ao pregar uma valorização máxima do que erroneamente chama de liberdade, o bolsonarismo prega que as pessoas façam apenas o que lhes convém, esquecendo-se dos demais cidadãos, independentemente disso poder gerar mortes – vide a gestão governamental da pandemia e o boicote à vacinação como exemplos claros –, aumentar a pobreza – vide a indiferença do governo quanto à crescente inflação, sobretudo diante da catástrofe fiscal construída diariamente com vistas à reeleição – e, principalmente, inviabilizar a arena pública tão vital ao Estado contemporâneo, como bem assenta o jurista italiano Sabino Cassese.

Como demonstração máxima de sua ignorância bárbara, o bolsonarismo destrói a ideia de liberdade pregada por um dos maiores liberais da história: o mesmo Rousseau. Como se pode claramente inferir do contrato social, Rousseau escreve sua teoria para viabilizar, na máxima extensão possível, as liberdades individuais, ciente de que liberdade incondicional e ilimitada é barbárie. A construção dos espaços de liberdade, para Rousseau, nada mais é do que o resultado da expressão da vontade livre.

O bolsonarismo, por negar o coletivo, deturpa a ideia de liberdade e transforma o que denomina de liberdades individuais em chave de destruição da civilização. O homem livre, na lógica perversa do bolsonarismo, é o homem individualista, que faz o que quer, sem se importar com o todo. Não à toa, a ideia de armamento da população é tão central no bolsonarismo, pois é a uma das formas de fazer prevalecer a vontade do mais forte, esquecendo-se o Estado horizontal e igualitário de Rousseau.

E, para impor suas ideias, o bolsonarismo percorre um caminho inverso daquele de Rousseau: primeiro, destrói o Estado para, depois, destruir o indivíduo. Quando eleito, Bolsonaro e sua equipe rapidamente puseram em marcha um plano de destruição de todos os ministérios responsáveis por políticas públicas metaindividuais: meio ambiente, direitos humanos, saúde, educação e cultura.

Tudo foi feito para sobrepor o individual sobre o coletivo: no meio ambiente, prevalece o extrativismo sobre a preservação; na educação e nos direitos humanos, são destruídas todas as políticas públicas existentes para dar lugar à imposição de uma visão de mundo limitada de um pequeno grupo de indivíduos; na saúde, é desmantelada a complexa engrenagem federativa existente baseada na ciência, para dar lugar ao caos fisiológico.

Destruída a estrutura estatal coletiva, passa-se para a esfera individual, com a legitimação da falta de educação e decoro. Ao incentivar a violência, o antagonismo, o despudor e o desrespeito com os outros (em todos os sentidos), destrói-se a urbanidade do espaço coletivo, gerando a barbárie. Tudo o que se prega, desde Emílio, sobre o processo de educação do indivíduo para sua inserção na sociedade, é destruído. O correto passa a ser não educar o indivíduo para concessões em prol do coletivo, mas, sim, educá-lo para desprezar quem tem um interesse diferente e tentar ao máximo impor-se pela força.

O bolsonarismo não é apenas a valorização do “tio do pavê”. Não é a manifestação bufa de uma ignorância que se torna cômica, de tão trágica. É um processo horrendo de corrosão da civilidade, operado de forma organizada e com a larga utilização de bens e espaços públicos para transformar civilização em barbárie. Por mais obscuro que seja, o bolsonarismo não é ignorante. É organizado e destinado à destruição consciente e procedimentalizada da civilização. É tão organizado quanto ao raciocínio de Rousseau, só que em sentido oposto.

Ao invés de utilizar a estrutura do Estado para promover a educação nos moldes de Emílio e viabilizar a civilização do espaço público, utiliza-se a estrutura pública de criação de políticas e implantação de programas para destruir o processo de transformação necessário para a civilização. O indizível torna-se não apenas aceitável, como a regra promovida pelo Estado; a violência, em todas as suas formas, torna-se a forma de construção de vontades, com o beneplácito dos órgãos públicos.

A experiência do mundo ao longo dos últimos 200 anos demonstra que a evolução vem com a implantação das lições de Rousseau. A educação do indivíduo para o homem coletivo é a base para a construção do Estado funcional. Os 1.300 anos compreendidos antes de Rousseau e após o fim do Império Romano mostram que as trevas pré-iluministas não conseguiram construir sociedades justas e equilibradas, mas apenas coletivos oprimidos e desiguais.

Tanto é assim que as bases jurídicas dos Estados contemporâneos constroem o Estado sobre garantias individuais (direitos fundamentais individuais) e direitos coletivos (direitos fundamentais sociais). Um não existe sem o outro e ambos devem ser equilibrados a partir de ponderação e proporcionalidade. E, por óbvio, somente poderá haver ponderação e proporcionalidade se os indivíduos que formam o Estado (i.e., o povo) tiverem a capacidade de realizar escolhas racionais e livres, cientes de seu papel no todo, com a capacidade de não apenas buscar suas satisfações pessoais, mas buscar também a satisfação do todo.

Ao que parece, a deformação bolsonarista terá impactos muito severos sobre a sociedade brasileira. Será necessário um enorme esforço de reversão, pois terá que ser recriado um processo de educação para a reformação do homem coletivo. Valores basilares do convívio em sociedade e de formação de um Estado saudável terão que ser retomados, afixando-se o homem bárbaro incentivado pelo Estado bolsonarista.

Parece uma missão difícil. E é. Porém, é a única solução para o Estado brasileiro. Mais do que nunca se torna imperiosa a retomada de um Estado que eduque seus cidadãos para a vida em sociedade, reprimindo-se os instintos de busca apenas pelo individualismo. Para tanto, basta que sejam respeitados e aplicados os artigos 6º, 196, 201, 205, 215, 225 e tantos outros da Constituição Federal de 1988. E, mais ainda, é necessário reforçar os meios de controle da Administração Pública para proteger o Estado daqueles que o querem ver destruído.

No Estado contemporâneo, não há liberdade sem respeito ao coletivo e ao público. Essa foi uma das principais lições que os iluministas, como Rousseau, deixaram. Preservar o individualismo selvagem do bolsonarismo é retroceder às trevas e, pois, substituir a civilidade pela barbárie.