Lei 14.326/22, interseccionalidade e as lutas pela humanização do parto

JOTA.Info 2022-04-30

No dia 12 de abril de 2022 foi sancionada a Lei 14.326/22 que altera a Lei de Execução Penal (LEP) para inserir a garantia de tratamento humanitário durante o ciclo gravídico-puerperal à mulher em situação de cárcere que esteja em período gestacional ou no pós-parto, estabelecendo, ainda, a assistência integral a sua saúde e do recém-nascido a ser prestada pelo poder público. A normativa foi consequência do projeto apresentado pela senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE) que pautou a necessidade de maior proteção à saúde sexual e reprodutiva em casos de privação de liberdade dada a fragilidade do acesso e do exercício de tais direitos em sistemas prisionais brasileiros.

A regulação da gestação e da maternidade no cárcere não é, no entanto, uma novidade da Lei 14.326/22. A LEP já reconhecia à mulher presa o direito de amamentar e cuidar de seus filhos até, no mínimo, os 6 meses de idade (artigo 83, §2); preceituava espaços específicos ao cuidado materno-filial em penitenciárias de mulheres, incluindo-se creches (artigo 89); e, também, estabelecia o benefício do regime aberto em residência particular para a gestante com condenação e filho infante ou que seja pessoa com deficiência.

Além disso, outras legislações já discorriam sobre o tema, como, exemplificativamente, as Regras de Bangkok da ONU, a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (Portaria Interministerial do Ministério da Justiça e da Secretária de Políticas para Mulheres n. 210 de 16 de janeiro de 2014) e, ainda, as previsões constitucionais dos direitos fundamentais à saúde e à proteção da maternidade (artigo 6º, caput) e do planejamento familiar (artigo 226, §7).

Desta forma, qual a relevância da citada Lei para o ordenamento jurídico brasileiro? Mesmo que a referida normativa apenas traduza em outra terminologia direitos já assegurados no campo jurídico, ela avança ao alertar que os dispositivos já existentes não têm sido capazes de superar a realidade de infraestrutura precária, pobreza menstrual e as práticas disciplinares, de (ausência de) segurança e sanitárias que causam riscos e sofrimentos físicos, psíquicos e morais às mulheres e aos recém-nascidos. Ademais, ao utilizar-se da expressão humanização do parto, a normativa mobiliza diversas questões levantadas pelos movimentos por justiça reprodutivo, adquirindo o potencial de trazer consigo diversas implicações [1].

Humanizar o cuidado no ciclo gravídico-puerperal significa, segundo explica a pesquisadora Carmen Simone Grilo Diniz [2], dentre outras medidas, a garantia de uma assistência ancorada 1) na medicina baseada em evidências; 2) no acesso e no exercício de direitos ao longo deste período, sobretudo, o da autonomia das gestantes e parturientes; 3) na legitimidade epidemiológica, isto é, na prestação desde uma dimensão coletiva e de saúde pública; 4) no uso contundente e adequado dos recursos e modelos de assistência; e, também, 5) no direito a uma maternidade segura, amparada e livre de sofrimento.

Possível perceber, portanto, que a citada lei acaba por mobilizar um cenário silenciado de violência obstétrica. Aquele que ocorre no interior de uma vida estigmatizada pelo punitivismo social, pela precariedade de recursos e direitos e, ainda, pela perversa e arcaica concepção moral de que mulheres em situação de cárcere não atendem às exigências da figura materna, forjada na ideia de reprodução como destino social da mulher e como prerrogativa de mulheres que se enquadrem em um perfil imposto de docilidade e benevolência[3].

Importa observar, neste sentido, que, em um cenário no qual o índice de violação de direitos no ciclo gravídico-puerperal é tão alto como no Brasil, estabelecer a obrigatoriedade de humanização do tratamento conferido durante este período da vida à pessoa capaz de gestar torna-se, também, um incremento do amparo jurídico em problemas estruturais que demandam a interseccionalidade como uma lente de análise e desenho de políticas e normativas. Não há como negar as interferências da seletividade penal e das vulnerabilidades sociais nos índices de encarceramento no Brasil.

Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen rastreiam o perfil majoritário da mulher presa no país: são mulheres jovens (25,22% possuem entre 18 e 24 anos e 22,11% entre 25 e 29 anos, totalizando quase metade da população carcerária feminina); são mulheres negras (63,55% se autodeclaram pretas ou pardas); são mulheres de baixa escolaridade e, consequentemente, com menor acesso a informações em saúde sexual e reprodutiva (62,4% não completou o ensino médio, sendo que, deste universo, 44% sequer terminou o ensino fundamental) [4].

Assim, ao se realizar o cruzamento dos dados mencionados com as pesquisas de ocorrência de violência obstétrica no Brasil, que apontam sua predominância com relação a este mesmo grupo social[5], nota-se que a previsão de tratamento humanitário no ciclo gravídico-puerperal à mulheres privadas de liberdade alcança a interseccionalidade na medida em que incide em uma realidade de entrecruzamento de opressões múltiplas – étnico-racial, de gênero, de sexualidade, de classe, de desigualdade educacional e de habitar um corpo preferencial na mira do poder punitivo.

Neste sentido, a Lei 14.326/22 possui o potencial de visibilizar e impactar no cenário de violência obstétrica e desumanização do cárcere desde uma ótica interseccional. Há que se ressaltar, contudo que os desafios remanescem árduos e alguns já podem ser apontados. O primeiro deles é a compreensão de que existem corpos capazes de gestar, o que implica compreender que o debate está para além das mulheres cisgênero e deve acobertar, sobretudo, as pessoas trans. O segundo transita na questão prática e instrumental: como implementar e monitorar estas medidas, especialmente, face à descontinuidade de serviços em saúde sexual e reprodutiva a qual assiste-se nos últimos anos? E, ainda, desde o princípio desta discussão, em que foram apontadas diversas normativas voltadas à temática, são leis que nos faltam para a concretização de direitos?

Em que pese seja imprescindível pontuar a relevância da lei em termos de aproximação da realidade social e de interlocução com atores que estão na dianteira das reivindicações por saúde sexual e reprodutiva, há que se ressaltar que as legislações precisam transcender a letra de lei e seu aspecto simbólico. É preciso, fundamentalmente, que haja incidência das medidas na concretude fática da sociedade, sob pena de se tornar a sofisticação de um discurso de proteção vazio.


 

[1] A situação de violação dos direitos sexuais e reprodutivos no cárcere é melhor detalhada na seguinte pesquisa: DIUANA, Vilma et. al. Direitos reprodutivos das mulheres no sistema penitenciário: tensões e desafios na transformação da realidade. Ciência e Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/RvQTNVx7QgtrWDM5WwqWNBh/abstract/?lang=pt.

[2] Para compreender melhor sobre o tema, acesse: DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciência e Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/JQVbGPcVFfy8PdNkYgJ6ssQ/?format=pdf&lang=pt.

[3] Mais reflexões sobre os estigmas sociais que atravessam a maternagem e a situação de cárcere podem ser encontradas em: REIS, Carmila Azevedo dos; ZUCCO, Luciana Patrícia. Saúde sexual e saúde reprodutiva no cárcere: Uma discussão necessária para garantia de direitos das mulheres privadas de liberdade. Fronteiras: Revista Catarinense de História, n. 33, 2019. Disponível em: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/FRCH/article/view/10827.

[4] Consulte as informações em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen.

[5] LEAL, Maria do Carmo et. al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, n. 33, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/LybHbcHxdFbYsb6BDSQHb7H/abstract/?lang=pt.