Disfunção do Poder Executivo na regulamentação do teletrabalho

JOTA.Info 2022-05-02

A edição sucessiva de Medidas Provisórias durante a pandemia cumpriu a missão de regular interesses – especialmente de âmbito trabalhista – durante o estado de emergência. Mas, agora, a continuidade de MPs sem discussão transparente com os representantes da sociedade demonstra uma disfunção por parte do Poder Executivo. Afinal, as Medidas Provisórias são normas com força de lei editadas pelo presidente da República em situações de relevância e urgência, com efeitos jurídicos imediatos, mas obrigatória apreciação pelas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado) para se converter definitivamente em lei ordinária. Portanto, devem ser medidas para situações excepcionais.

MPVs como as do teletrabalho (1108 e 1109), recém-publicadas, desvirtuam o uso desse instrumento pelo Executivo. Aos líderes, cumpre desenvolver políticas de desenvolvimento econômico e social, capazes de gerar mais e melhores empregos, dignamente remunerados. Para os organismos de Estado, há muito o que fazer na fiscalização das normas, especialmente das leis advindas do Congresso Nacional, cujos integrantes representam os anseios da sociedade, sejam quais forem. E, sobretudo, da aplicação das decisões judiciais, que mediam interesses da relação capital/trabalho.

Assim, essas medidas são duas coisas. Institutos do tipo ônibus, que pegam por algum caminho outros interesses correlacionados para construir uma tentativa de mudança abrupta de situações consolidadas entre empresas, funcionários e seus representantes sindicais. E normativas que confundem, atrapalham, com aspectos negativos, mesmo quando tratam, de modo importante, situações que têm sido registradas nas operações com funcionários trabalhando de casa.

O primeiro de 11 aspectos negativos dessas MPs é a sua existência. Por que o governo tem de se preocupar com a modalidade de trabalho remoto realizado em qualquer local fora da dependência física de empresas, por meio de dispositivos telemáticos de uso pessoal?

O segundo é quanto a aspectos formais. Ambas as medidas provisórias violam a Lei Complementar 95/1998, alterada pela Lei Complementar 107/2001, na qual se estabelece que “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único assunto” e que “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto, ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.

O terceiro aspecto ruim é que as medidas provisórias tratam também de inúmeros outros temas, como auxílio-alimentação, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados, entre outros.

O quarto é o texto tratar da definição, conceituação ou distinção de institutos jurídicos, como o faz a MP 1108, ao positivar a diferença entre teletrabalho e telemarketing ou teleatendimento. O uso das terminologias trabalho remoto e teletrabalho não simplificam também a vida do intérprete, tendo em vista que a primeira é uma subcategoria da segunda, de forma que simplificaria a utilização de um único termo.

Quinto. As disposições de que a aquisição, manutenção e fornecimento de equipamentos tecnológicos devem constar de contrato escrito podem trazer desequilíbrio para trabalhadores subordinados hipossuficientes. Em termos comparativos, o Código de Trabalho de Portugal tem norma que presume ser do empregador os custos com os equipamentos de tecnologia e comunicação utilizados no trabalho, tendo em vista ser do empregador o risco do negócio.

Sexto ponto negativo. A liberdade de o empregador poder, a seu critério, alterar o regime de trabalho, independente de acordos individuais ou coletivos, dispensando o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho, também não se mostra o melhor caminho para o equilíbrio e segurança nas relações de trabalho. Para comparar com o que é bem positivo: o Código de Trabalho da França, por exemplo, de forma diametralmente oposta, exige aditivo contratual escrito, por considerar ser um ato voluntário e consensual.

Sétimo. A legislação é omissa quanto à saúde e segurança do trabalho, pois nada estabelece em relação ao tema. E, ainda nos valendo de comparação com o direito francês, é digno de registro que a regulamentação trabalhista nesse país exige que o empregador informe ao teletrabalhador as regras de segurança aplicadas aos trabalhadores presenciais, especificamente no que tange ao uso de computadores e recomendações ergométricas, além da organização de uma entrevista anual para tratar de tais temas.

Oitavo aspecto negativo e que poderá causar grande insegurança jurídica se refere à previsão de aplicação da lei brasileira para o empregado admitido no Brasil que optar pela realização de teletrabalho fora do território nacional. Nesse tópico, a medida provisória excetua para essa situação as disposições constantes da Lei 7.064/82. Ocorre que tal lei prevê que nas hipóteses de trabalhador contratado no Brasil e transferido para o exterior deve ser aplicada a norma mais benéfica para o obreiro. E há, ainda, nessa legislação, a previsão para aplicação da lei do local da prestação para o trabalhador contratado por empresa estrangeira para laborar no exterior. A contradição na regulamentação da matéria, pois, é patente.

Nono. A previsão de o tempo de uso de equipamentos tecnológicos e de infraestrutura, assim como softwares, ferramentas digitais ou internet não constituírem período à disposição do empregador, regime de prontidão ou sobreaviso merece uma melhor regulamentação, especialmente no tocante ao direito à desconexão, que precisa ser devidamente reconhecido diante dos muitos casos de irritabilidade, depressão, exaustão e outros problemas de saúde física e mental já diagnosticados com o crescimento do trabalho remoto durante a pandemia.

Décimo. A permissão de regime de teletrabalho e trabalho remoto para estagiários e aprendizes. Para a formação desses profissionais, o convívio presencial com supervisores é fundamental.

Por fim, outro ponto ruim. A previsão de que “acordo individual poderá dispor sobre os horários e os meios de comunicação entre empregado e empregador, desde que assegurados repousos legais”. É retrocesso, pois a Lei 13.467/2017 não submeteu o teletrabalhador ao controle de jornada.

Em relação a pontos meritórios se tem a impossibilidade de redução salarial e vedação de diferenças salariais entre trabalhadores que desempenham suas atividades de forma presencial ou remota, a imposição de constar no contrato individual de trabalho a modalidades de trabalho remoto ou teletrabalho, a prioridade pelas vagas de teletrabalho para trabalhadores com deficiência ou com filhos até quatro anos de idade, bem como a previsão de o empregador poder fornecer equipamentos em regime de comodato e custear os serviços de infraestrutura, sem que se caracterize tal benefício como verba de natureza salarial, além da possibilidade de reembolso dos gastos com energia elétrica, internet e demais equipamentos necessários. Ainda assim, ficariam melhor como práticas positivas em construção pelo mercado e alinhadas às normas trabalhistas promulgadas pelo Poder Legislativo. Assim, de canetada, até o que é bom fica num contexto de mal concebido.

O tema, portanto, deve ser mais profundamente debatido, objeto de legislação que possa regulamentar de forma segura, razoável e equilibrada para empresas e funcionários.