Streaming: como funciona a arrecadação e distribuição de direitos autorais?

JOTA.Info 2022-05-02

Em fevereiro, uma das maiores plataformas de streaming de música, o Spotify, divulgou que, ao final do último ano, contava com cerca de 406 milhões de usuários ativos[1]. Destes, cerca de 180 milhões compõem o grupo de assinantes premium da plataforma. Contudo, apesar do alto alcance deste tipo de serviço, houve uma movimentação de diversos artistas para a retirada de suas obras do catálogo de plataformas de streaming. O caso mais famoso talvez seja o da cantora Taylor Swift, que em 2014 retirou todas as suas obras do catálogo do Spotify, retornando somente em 2017.

Ora, se há milhares de usuários destes serviços, qual seria a razão pelo descontentamento dos artistas? A resposta se encontra na distribuição dos royalties por cada reprodução das faixas. De acordo com a revista Forbes[2], o Spotify paga cerca de US$ 0.0033 a US$ 0.0054 por cada reprodução. Isto significa que são necessários 250 streams para o artista receber US$ 1.

Para compreender por que esses valores são tão baixos, é necessário analisar a forma como é realizada a distribuição dos royalties. O sistema de gestão coletiva de direitos autorais é responsável por garantir que os autores e titulares de direitos recebam pela reprodução de suas obras quando executadas em locais de frequência coletiva, tais como bares, restaurantes, cinemas e teatros.

Este sistema foi pensado quando as obras e fonogramas passaram a ser facilmente transmitidos por meios tecnológicos. A partir do momento em que a música passou a ser difundida em larga escala, em especial via radiodifusão, os autores e titulares de direitos observaram a necessidade de encontrar uma forma de manter o controle de onde e como suas obras estavam sendo reproduzidas.

Os artistas e demais titulares passaram a se reunir em associações de gestão coletiva, as quais servem como espécies de mandatárias dos seus associados, sendo responsáveis por cobrar e fiscalizar os usuários de música e depois distribuir os valores arrecadados entre os associados.

No Brasil, a gestão coletiva de direitos autorais se encontra regulada na Lei de Direito Autoral, em seus artigos 97 a 100. Ressalta-se que esta configuração da lei ocorreu em 2013, com a Lei 12.853/13, dispondo de maneira mais específica e detalhada acerca do sistema de gestão coletiva no Brasil.

Importante destacar que o país possui uma especificidade única no mundo: para além das tradicionais associações de gestão coletiva (sete ao total), ainda há o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).

O ECAD é composto pelas associações de gestão coletiva, sendo responsável por unificar a arrecadação de direitos autorais advindos da execução pública das obras e fonogramas. Deste modo, o ECAD arrecada os valores, repassa para as associações de gestão coletiva que, por sua vez, repassam aos associados.

A Lei de Direito Autoral dispõe que a cobrança deve ser proporcional ao grau de utilização das obras e fonogramas pelos usuários, considerando a importância da execução pública no exercício de suas atividades, e as particularidades de cada segmento (art. 98, §4º).

Para além da Lei de Direito Autoral, o ECAD ainda possui regulamentos de Arrecadação e Distribuição[3] estabelecidos em assembleia geral do escritório. O Regulamento de Arrecadação detalha os critérios utilizados para a fixação das licenças, tais como grau de utilização, tipo de usuário, grau socioeconômico da região que foi realizada a execução pública, a natureza das emissoras de rádio, entre outros.

O Regulamento de Distribuição, por sua vez, estabelece os critérios utilizados para a distribuição dos valores arrecadados. Para isto, o ECAD separa os diferentes usos nas chamadas rubricas. No caso do streaming, o serviço possui sua rubrica própria, dentro dos chamados serviços digitais.

O Regulamento de Distribuição estabelece que a distribuição das rubricas streaming de música e audiovisual será realizada de forma direta (para as associações), com base na programação encaminhada por cada usuário responsável (no caso as plataformas de streaming), por meio de arquivo eletrônico, e contemplará os titulares de direito de autor e conexo conforme contrato estabelecido com a plataforma (art. 43) e a identificação das execuções musicais será realizada por um processo de identificação automática (§1º).

A distribuição ocorrerá trimestralmente (§2º) e será composta pelo montante arrecadado de cada usuário, que será agrupado em duas rubricas no máximo, considerando plano gratuito e plano pago, e rateado pelas execuções musicais relativas às competências liquidadas aplicando-se a linha de corte de R$ 1,00 (§3º). Importante ressaltar que esta distribuição está condicionada ao cadastro das obras e dos fonogramas.

Apesar das disposições legislativas e do próprio ECAD, muito se discute acerca da maneira com que se arrecada e distribui os direitos autorais advindos da execução pública. Um bom exemplo é o julgado da Rádio Oi FM e o ECAD. O STJ considerou o streaming como uma forma de execução pública, o que seria um novo fato gerador à cobrança do ECAD[4].

Conforme o julgado do REsp nº 1.559.264/RJ, “o que caracteriza a execução pública de obra musical pela internet é a sua disponibilização decorrente da transmissão em si considerada, tendo em vista o potencial alcance de número indeterminado de pessoas”. A decisão é muito criticada por estender o conceito de local de frequência coletiva ao ambiente digital, divergindo da própria Lei de Direito Autoral, em seu art. 68, §3º.

No caso do streaming, deve-se somar à já complexa equação outros intermediários, tais como as distribuidoras digitais, agregadores e as próprias plataformas. Isto sem contar os valores devidos aos acordos com gravadoras, editoras e as taxas referentes às associações de gestão coletiva e o ECAD (aproximadamente 15%). Essa quantidade de intermediários é diferente do que se imaginava no início da popularização da internet, quando se vislumbrava o aumento dos ganhos dos criadores e diminuição da presença de intermediários na indústria da música.

Deste modo, compreendendo o funcionamento deste sistema, não causa tanta estranheza o descontentamento dos artistas com os ganhos advindos das plataformas de streaming. Apesar do alcance deste tipo de serviço, é necessário um trabalho colossal de marketing e publicidade para as receitas compensarem a disponibilização do catálogo ao público.

Cabe ao Poder Judiciário e ao Estado a fiscalização tanto da arrecadação quanto da distribuição dos direitos advindos da execução pública de obras e fonogramas, devendo sempre se atentar à transparência da gestão coletiva, visando à garantia da compensação financeira para os titulares de direitos e autores das obras musicais. Em que pese o caráter sui generis deste sistema, com a presença de entes privados, não se pode ignorar o interesse público da gestão de direitos autorais, haja vista que se trata de desenvolvimento e disseminação da cultura na sociedade.


[1] Disponível em: https://investors.spotify.com/financials/press-release-details/2022/Spotify-Technology-S.A.-Announces-Financial-Results-for-Fourth-Quarter-2021/default.aspx

[2] Disponível em: https://www.forbes.com/sites/marisadellatto/2022/03/24/spotify-says-it-paid-7-billion-in-royalties-in-2021-amid-claims-of-low-pay-from-artists/?sh=24f8d88a0dba

[3] Disponível em: https://www3.ecad.org.br/eu-uso-musica/Documents/Regulamento%20da%20Arrecadacao%20Abril_2021.pdf e https://www3.ecad.org.br/eu-faco-musica/Documents/regulamento_de_distribuicao.pdf

[4] Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2017/2017-02-09_17-46_Servicos-de-streaming-de-musicas-deverao-pagar-direitos-autorais-ao-Ecad.aspx