Câmara dos Deputados merece mais atenção do que a corrupção no MEC
JOTA.Info 2022-06-23
Hoje os olhos da opinião pública estão sobre a corrupção que teima em sair do tapete sob o qual o governo tenta sem sucesso acomodar. A prisão do ex-ministro da Educação e pastor Milton Ribeiro ocorre em um momento de fragilidade do Executivo e de altíssima rejeição do presidente Jair Bolsonaro. Por mais trágica e lamentável que seja a notícia para o país, ela não é nem de longe a mais preocupante que temos hoje. Como todo castigo para brasileiro é pouco, o maior drama em curso no país é o papel que a Câmara dos Deputados tem cumprido, em especial na figura do presidente da Casa, Arthur Lira, na deterioração da nossa democracia.
Na última década, a política brasileira não tem vivido momentos tranquilos. Há muitas especulações sobre o motivo de sucessivas crises, sempre se retoma o debate da suposta fragilidade de nossas instituições políticas. Por esta lógica, o sistema político seria o principal vilão da democracia brasileira e não os agentes políticos que agem sobre ele. A discussão é antiga.
No artigo seminal “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, publicado há mais de três décadas, Sérgio Abranches fincou os primeiros pilares para a interpretação do sistema político brasileiro que surgia na Nova República. Durante o período de transição política e da promulgação da Constituição de 1988, havia uma diversidade de prognósticos sobre o presidencialismo no Brasil, muitos dos quais apontando para a fragilidade institucional do sistema e para a suscetibilidade a crises, dadas as suas características institucionais. Todas essas características culminariam, portanto, numa inevitável instabilidade do regime democrático.
A pesquisa inovou por mostrar que o funcionamento do sistema presidencial brasileiro se caracterizava pela organização do Executivo com base em grandes coalizões partidárias construídas a partir da maioria das cadeiras no Congresso, além de que os governos seriam compostos no Brasil por critérios partidários e regionais de forma a criar maioria no Congresso e apoio em diferentes estados da federação.
A partir desse trabalho, outros tão importantes quanto o de Abranches surgiram e abriram as portas para investigações inéditas na ciência política nacional. Este novo campo chamava especialmente atenção sobre a relação entre o Legislativo e o Executivo brasileiro, destacando os determinantes desta relação, ao mesmo tempo em que propunha metodologias de análises e contribuições originais para o funcionamento das instituições políticas. Autores como Argelina Figueiredo, Fernando Limongi, Fabiano Santos, entre outros, foram fundamentais para inaugurar este debate e estabelecer o novo campo de estudos da ciência política brasileira.
Um dos principais resultados das pesquisas é que caía por terra o mito de uma instabilidade inerente ao sistema democrático brasileiro. Modelos teóricos que se amparavam na ideia de que as instituições políticas brasileiras seriam suscetíveis a crises de governabilidade não se sustentavam nas evidências empíricas desses pesquisadores. A relação entre Executivo e Legislativo, portanto, não era necessariamente conflitiva, já que haveria incentivos para a integração entre os Poderes como mecanismos de estabilidade do sistema. No início dos anos 2000, acumulava-se um estoque de conhecimento sistematizado sobre o presidencialismo multipartidário brasileiro que demonstrava, ao contrário do que se afirmava anteriormente, funcionalidade e estabilidade.
Cabe dizer que esse equilíbrio do sistema era permitido pela introdução de instrumentos como a distribuição do poder, criada a partir da Constituição de 1988, francamente favorável ao Executivo. Este poder teria capacidade garantida constitucionalmente de controlar a agenda, além de escolher o melhor momento e o conteúdo para serem implementadas nos trabalhos legislativos. Isso, porém, não quer dizer que o chefe do Executivo poderia submeter o Congresso a seu interesse ou que o ambiente era perfeito, não! Mas existiam diferenças fundamentais e positivas para as instituições brasileiras: havia incentivos à negociação com os partidos e a relação entre os Poderes buscava mais a cooperação do que a retaliação, como tem sido visto hoje.
Há quem ainda afirme que nosso sistema político é o motivo pelo ambiente tumultuado por crises sucessivas, mas o fato é que este sistema tem sido desrespeitado e subvertido pela atuação de atores políticos que hoje detêm autoridade para decidirem. Desde que Lira foi eleito, a dinâmica da relação da relação entre Executivo e Legislativo no Brasil tem sido bem diferente do que se espera.
Até o Orçamento, que tradicionalmente seria de prerrogativa do Executivo, foi entregue como moeda de troca para manter o governo longe de ameaças como o impeachment. Lira atropela ritos e põe em votação projetos que sequer são negociados com os demais deputados, amparando-se em coalizões pouco comprometidas, pontuais, sem transparência e pouco cooperativas. Dentre todas as tragédias que a sociedade brasileira tem vivido, pouca coisa tem sido mais deletéria e corrosiva para a democracia brasileira do que a atuação do atual presidente da Câmara.