O que nos mostram as Cartas pela Democracia

JOTA.Info 2022-08-09

No próximo dia 11, quinta-feira, estão marcadas as leituras públicas de duas manifestações em favor da democracia no país: a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros, promovida por professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e o Manifesto da Fiesp em defesa da Democracia. Ambos os documentos reforçam a necessidade de mostrar ao poder político constituído que a sociedade civil não apoiará tentativas de romper com a ordem institucional vigente. Não mencionam grupos políticos, nem criticam nomes específicos, sugerindo a disputa em torno de valores e ideias caros ao país. Colocam-se como documentos suprapartidários que ressaltam conquistas do país.

Apesar disso, a direita acusou o golpe. Com evidente receio dos efeitos eleitorais destas ações, grupos políticos favoráveis ao presidente reagiram, inclusive o próprio. Em particular, o Movimento Advogados de Direita Brasil redigiu um “Manifesto à Nação Brasileira” em que tenta explicitamente defender as ações do presidente em nome da liberdade e do equilíbrio entre Poderes. Usa de termos semelhantes às cartas anteriores, mas claramente protege o presidente do que seriam ataques que não foram nominalmente endereçados a ele.

Este movimento conseguiu, com o que parecem ser robôs e perfis falsos, número impressionante de assinaturas em curto período de tempo. Nenhuma figura pública parece apoiar a iniciativa que, por enquanto, parece restrita à rede de apoio já consolidada em torno de Jair Bolsonaro. A pergunta que fica desse contexto é por que depois de quase 40 anos de término do regime autoritário, não vemos apoio popular massivo e incondicional à democracia no país e sentimos que ela ainda corre riscos?

Ao que me parece, o problema é fundamental. Ele se situa nos termos que nos dividem politicamente e que permeiam o discurso público e o contexto em que as manifestações são feitas. É preciso resgatar elementos que criaram este ambiente para pensar como avançaremos.

A eleição de 2018 marcou a ascensão ao poder de um grupo de extrema direita. Ainda hoje este grupo usa o discurso de privilegiar valores tradicionais como família, Deus e a liberdade de forma autoritária e de defender o país do comunismo, que se representaria em seu antagonista eleitoral, o PT. O discurso antipetista funcionou porque coincidiu com a criminalização das gestões do partido, envolvendo a prisão do ex-presidente Lula e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Tudo isto criou a impressão de que era preciso salvar o país e que a democracia já estava em risco. Podemos dizer que, para uma parcela da população, os crimes cometidos pelo PT já estavam atacando a democracia. Nestes termos, não haveria novidade nas críticas feitas à Bolsonaro. O argumento de que suas atitudes colocam a democracia brasileira em risco não encontra eco para aqueles que compram o discurso antipetista. É um argumento incompreensível para aqueles que veem Lula como o líder de um grupo organizado cujo único fim estava em roubar os cofres públicos. A Lava Jato representava a luta em defesa do país e, ao mesmo tempo, não haveria diferença em termos da ameaça que ambos representariam à democracia. Se esta interpretação estiver correta, o discurso público diverge em termos muito fundamentais sobre o que se entende por democracia, portanto.

Sem dúvida um dos conceitos mais caros da ciência política, democracia possui diferentes concepções. Em todas elas, dois aspectos centrais aparecem com diferentes graus de importância e merecem destaque. O primeiro elemento, já discutido em outro texto aqui, se volta à existência de eleições regulares e justas. O segundo é a primazia do Estado democrático de Direito. As leis devem prevalecer sobre as percepções individuais e valer para todos, sem distinção. Assim, se de um lado as eleições precisam ser garantidas, de outro os crimes devem ser punidos de acordo com os ritos do Judiciário de forma a garantir igualdade perante a lei.

Ambos os elementos sempre podem ser melhorados, mas não há indícios hoje de que o sistema eleitoral brasileiro produza injustiças. A alternância no poder ocorre – caso contrário, Bolsonaro sequer teria sido eleito. Quem são os operadores deste sistema de deturpação da vontade popular? Tudo é vago e permanece apenas no imaginário, sem nenhuma evidência objetiva.

Já em relação ao nosso sistema legal de forma ampla, os avanços talvez sejam mais urgentes. Ainda assim, se há indícios de que Lula, Bolsonaro ou qualquer um de nós cometeu um crime, devemos ser julgados de acordo com o que diz a lei. É o que esperamos. Se temos dificuldades em fazer isso, é preciso aperfeiçoar o sistema e não o dispensar. Ainda, se há críticas sobre a maneira como o STF atua, não é entrando em uma disputa com seus ministros que se resolverá o problema. Enfim, nossa capacidade de fazer as leis prevalecerem é fundamental para que a democracia alcance seu potencial por aqui.

Estas considerações nos colocam na seguinte situação: de um lado, parcela da população entende que Lula cometeu crimes. Ele seria um ladrão. Isto os levaria a repudiar o ex-presidente. De outro lado, outra parte das pessoas veem em Bolsonaro alguém cujos valores são autoritários e imorais, para dizer o mínimo, e que critica instituições sem fundamentação. Onde está a democracia aí?

A mim, crimes previstos em lei devem ser punidos como tal. O processo legal importa e deve valer para qualquer pessoa – o que claramente os operadores da Lava Jato não o fizeram. A despeito dessa dimensão importante, os atos criminosos de que Lula é acusado podem ser antirrepublicanos, já que violam recursos que são públicos, que são de todos, mas podem e devem ser tratados dentro do Estado democrático de Direito.

Aliás, qualquer democracia deve conseguir lidar com crimes deste tipo para que funcione bem. Afinal, um governante pode agir de maneira incorreta e deve ser punido se o fizer. Se não conseguirmos punir quem age assim, certamente teremos uma democracia frágil. Mas um ponto deve ficar claro: o crime em si não implica em romper com a ordem democrática; nossa capacidade de seguir com as regras vigentes, sim. Crimes assim são graves, e um teste para o regime está em nossa capacidade de enfrentá-los.

Já atacar sem provas as eleições ou entender que há crimes contra a vida que possuem algum lado positivo não previstos em lei são ações contra valores fundamentais da democracia. Não é possível pensar em validade das leis se o povo não pode escolher seus governantes ou se defende-se que alguns eleitos tenham poderes quase ilimitados por uma suposta soberania da vontade do povo. As leis são claras sobre as divisas entre os Poderes e romper com estas demarcações é também romper com os limites da democracia. Forçá-los sob o argumento de que outros também estão forçando é caminhar para a derrocada do regime democrático.

Resumindo, crimes são previstos em lei e devem ser tratados dentro do rigor da lei. Defender que os tribunais melhorem em sua capacidade de atuação, que seja mais justa e igualitária, é muito honroso e válido, em geral, e no caso do Brasil, mais do que necessário. Se algum partido e seus membros cometeram crimes, devem responder por eles. Tudo isto não ameaça aspectos fundamentais da democracia. Ao contrário, o julgamento dentro dos rigores da lei a reforça, pois precisamos ser capazes de fazer as leis valerem.

A impunidade e a desigualdade perante a lei, sim, são ameaças. Deve-se exigir que os ritos sejam os mesmos porque porventura poderemos ser nós um dia a estar no banco dos réus e o desejo é que o mesmo direito seja garantido a todos. Se há falhas neste processo, devemos exigir melhorias. Assim se fortalece a democracia.

Atacar os princípios do Estado democrático de Direito não torna ninguém defensor da democracia. E justificar estes ataques em razão de crimes cometidos pelo “outro lado” não a promove, tampouco. É exatamente o contrário. Não há justificativa para descumprir o que está previsto em lei porque alguém a descumpre ou atacar o sistema eleitoral sem provas em nome de se buscar justiça. Como diz o ditado popular, dois erros não fazem um acerto. O Brasil passa por um período de forte estresse de suas instituições democráticas. Levaremos ainda tempo até que o debate público se torne mais fértil e voltado a problemas reais que o país enfrenta. E levará ainda mais tempo para entendermos como as linhas sobre o que entendemos por democracia ficaram tão distantes. Mas sua defesa deve ser constante.