TCU e o ressarcimento de dano ao erário

JOTA.Info 2022-08-24

A Constituição de 1988, em reação ao arbítrio praticado no governo militar, estabeleceu substanciais proteções à liberdade dos administrados frente ao Estado. Vedou, em regra, processos persecutórios de duração indeterminada, sujeitando-os a prazos de prescrição. As exceções são explicitadas pela própria Carta, como o crime de racismo, que é imprescritível (artigo 5º, XLII). 

Contudo, a efetivação dos mandamentos constitucionais, na prática, tem encontrado resistências. É o caso da pretensão de ressarcimento ao erário pelo Tribunal de Contas da União (TCU) – a qual, segundo o próprio órgão, seria imprescritível (súmula 282/2012). 

A controvérsia é antiga. Antes de 1988, o TCU já defendia o “princípio da imprescritibilidade” em favor do erário (ata 79/1977-P). A tese era que a dívida ativa do Estado, como regra geral, seria imprescritível, devido à inalienabilidade do patrimônio público. Assim, “nada justifica que o tempo venha a sanar a irregularidade que não foi (…) objeto de julgado da Corte, tampouco legitimar o locupletamento ou a conduta culposa” (ata 83/1976-P).  

Nas décadas seguintes, importantes reformas alteraram o panorama jurídico. Em 1980, a Lei 6.830 previu regras de prescrição para a dívida ativa da fazenda. Em 1988, a Constituição fixou que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos (…) que causem prejuízos ao erário, ressalvadas [apenas] as respectivas ações de ressarcimento”, fundadas em “atos de improbidade” (artigo 37, §§ 4º e 5º). Em 1999, a Lei 9.873 introduziu prazos de prescrição para a ação punitiva da administração. 

As inovações não foram suficientes para que o controle externo superasse a tese da imprescritibilidade. 

O TCU passou a sustentar que não se sujeitaria a regras gerais de prescrição, sendo regido por normas autônomas: sua “esfera de atuação (…) configura uma faixa exclusiva de competência, regida por normas de direito público” (ata 28/1993-P); haveria um “processo de controle externo”, com regras próprias (ata 20/2016-P). 

Contudo, recentes decisões do STF têm explicitado o descasamento da tese da imprescritibilidade com o atual ordenamento jurídico. O tribunal reconheceu, por exemplo, a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão do TCU (tema 899/2018), e que a imprescritibilidade só alcança o ressarcimento ao erário fundado em ato tipificado na Lei de Improbidade (tema 897/2022).  

No cenário atual, o TCU tem buscado sustentar a imprescritibilidade da constituição de débito como uma espécie de “direito adquirido”. O entendimento deveria ser mantido em vista: da jurisprudência dominante do TCU; da homenagem ao princípio do colegiado; de não haver razão para alterar entendimento já consolidado. 

A Constituição de 1988 buscou proteger a sociedade contra arbitrariedades do Estado. A resistência do TCU em superar a ideia de imprescritibilidade do débito ao erário não apenas contraria esse preceito, como ignora várias décadas de evolução do nosso ordenamento jurídico. O Estado não tem direito adquirido à arbitrariedade, e o controle externo também não pode tê-lo em relação à imprescritibilidade.